12/29/2023

Um homem notável (Crônica), por Graciliano Ramos


UM HOMEM NOTÁVEL

Residia no interior e tinha duas qualidades que lhe adoçaram a vida, e eximiram de inquietações: era branco e analfabeto.

Se não fosse branco, nivelar-se-ia à canalha da roça, mais ou menos cabocla, mais ou menos preta, sentir-se-ia pequeno, disposto à obediência. Se não fosse analfabeto, consumir-se-ia em exercícios inúteis à lavoura do algodão e da mamona, leria romances e telegramas da Europa, alargaria pelo mundo, à toa, pensamentos improdutivos.

Mas como dispunha de olhos azuis, pele clara e cabelos de gringo, viu com desprezo as figuras chatas, encarapinhadas, foscas e oblíquas dos arredores, convenceu-se de que possuía requisitos para dominá-las e arrogou-se direitos muito superiores aos delas. E como não esbanjava tempo nas cogitações distantes que os livros sugerem, observou solícito as coisas próximas e necessárias, as que se podiam juntar e levar ao mercado.

Em consequência prosperou. Passados alguns anos na plantação, largou a fazenda e estabeleceu loja na cidade, onde os negócios lhe correram bem. Cresceu, enferrujou a cara, endureceu a voz, roncou alto aos indivíduos comuns que se avizinhavam do balcão. Não precisando curvar-se a uma banca, estragar a vista em cima de papéis, chegou à velhice sem usar óculos, o espinhaço direto como um fuso.

Evidentemente fugiu de obrigações no selo, o que o isentou da chicana. E impossibilitado de vender a crédito, por não confiar na arte dos guarda-livros, seduziu os fregueses que se esquivavam dos outros negociantes, torciam caminho para evitar o capital e os juros tocaiados em carteiras perversas, em bojudos volumes de escrituração.

Construiu uma casa vistosa, com frontaria de azulejos, encheu-a de móveis complicados e gozou a existência comendo e bebendo em excesso.

Satisfeitas as necessidades fundamentais, adquiriu outras de ordem mais elevada — e vestiu-se nas melhores alfaiatarias da capital, limpou as unhas, expôs no dedo um brilhante caro e graúdo, segurou o relógio com enorme cadeia de ouro, que saía do bolso esquerdo do colete e ia mergulhar no bolso direito, exibindo na casimira negra uma curva amarela de grande efeito.

Esse apuro lhe trouxe modificações interiores: misturou a roupa, o anel e a cadeia às qualidades que lhe tinham rendido a fortuna — e sentiu-se limpo, areado, faiscante.

As exigências de comunicação levaram-no a escolher alguns amigos, convidá-los para longos jantares, abrir-lhes a alma, narrar-lhes o preço dos objetos valiosos que lhe adornavam a residência e a pessoa.

Certos hábitos sociais e econômicos obrigaram-no a ligar-se a uma secretária diplomada pela escola normal. Casou-se com ela e, conseqüentemente, arranjou aptidão para subscrever-se, desenhando as letras em cinco minutos com labor, rasgando a folha, quebrando a pena. Ficou por aí, e nunca percebeu o valor dos símbolos que lhe representavam o nome. Na verdade submeteu-se ao casamento por causa deles. Precisava relacionar-se com o banco, não queria deixar o numerário mofar no cofre, estéril. À falta de miseráveis rabiscos num cheque, prejuízo de tantos por cento.

Havia também a perseguição das cartas. Quando mal se precatava, em conversa com visitantes ou fregueses, erguendo à luz o dedo e o brilhante, fazendo tilintar a corrente de ouro, recebia um envelope e murchava. Abria-o, chateado, procurava em todos os bolsos os óculos inexistentes, fingia examinar a antipática literatura, aproximando-a, afastando-a, desviando-se dos indiscretos, porque receava que ela estivesse de cabeça para baixo. Afugentava o portador:

— Está bem. Depois respondo.

Mas não dava a resposta nunca, para não revelar a estranhos a sua insuficiência, e ficava a matutar no que pretendiam dizer-lhe de longe, numa forma de expressão antinatural e estúpida. Sem se ter familiarizado com ela, manejava centenas de contos em bens de raiz, mercadorias e papel-moeda, o que não sucedia ao juiz, ao promotor e aos escrivães, tipos inferiores.

Casou — e todas as dificuldades se sumiram. Para bem dizer, tornou-se proprietário dos conhecimentos da mulher. Considerou-os coisas dele, como o brilhante, a cadeia, o relógio, os móveis, os semoventes e os imóveis.

Aumentou o vocabulário e começou a utilizar frases desconhecidas, com bastante impropriedade. Esse passatempo deu-lhe satisfação. Livre do desgosto que os bilhetes e as cartas lhe proporcionavam, a caderneta do banco a engordar no cofre, julgou-se perfeitamente feliz e assinou jornais, que à noite escutou, fumando o charuto, a pálpebra cerrada, grave, erguendo a mão esperta, a aprovar, a desaprovar. O seu julgamento era decisivo e enérgico. Presumiu-se dono da prosa dos jornais e das ideias existentes nela. E manifestou-se com rumor e aparato.

Fez discursos, derramou-se em afirmações definitivas, explicou mistérios, não deixou em polêmicas nenhum ponto obscuro. Os homens respeitaram-no, elogiaram-lhe a inteligência.

— Como diabo conseguiu ele tanto dinheiro sem saber ler? Com certeza possuía miolos admiráveis. A condição de analfabeto elevou-o.


Rio de Janeiro, maio de 1943.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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