12/29/2023

Um homem de letras (Crônica), de Graciliano Ramos


UM HOMEM DE LETRAS

O primeiro romancista que vi foi Domingos Barbosa, sujeito miúdo e sério, residente nos carros de segunda classe da Great Western. Se não residia neles, passava neles grande parte da vida, aí concebida e provavelmente rascunhava as histórias que se encerravam em folhetos magros, vendidos a dez tostões nas cidadezinhas do interior.

Desembarcava em uma delas, conversava com o agente do correio e o tabelião, ficava algumas horas oferecendo os seus produtos às autoridades e aos comerciantes, sem falar em preço, contentando-se apenas com um óbolo, expressão que lhe augurava boa paga, superior à dos poetas, autores de folhetos mais delgados, impressos em papel ordinário, em geral expostos nas feiras.

Visitada a freguesia importante, baixava à gente secundária, percorria as pontas de rua, digno e apressado, econômico de palavras, valorizando-se no silêncio, impondo-se à admiração das velhas e das crianças com a apresentação modesta: “Domingos Barbosa, homem de letras.” Esses viventes ingênuos soletravam-lhe o nome na capa da brochura, como tinham soletrado os nomes de Joaquim Manuel de Macedo, Escrich e José de Alencar em brochuras mais encorpadas. E viam o ser espantoso, um romancista vivo, uma glória em carne e osso, que relacionavam com as outras glórias, guardadas no fundo das arcas, junto a pacotes de cânfora, por causa das traças.

Obtidos esses pequenos êxitos — as células do funcionalismo e do comércio, as interjeições e os níqueis do bairro pobre —, o artista recolhia-se ao hotel, mudava a camisa, jantava, cochilava e, com a maleta de viagem aliviada, ia arrumar-se no trem da Great Western, saltar em outra cidade, levar à clientela o escasso fornecimento de sonho.

Na literatura Domingos Barbosa se revelava pouco mais ou menos como no exterior: botinas cambadas e de elástico, roupa negra coberta de nódoas, chapéu duro, também enodoado, guarda-chuva, barba crescida e caspa. Ave de arribação, não podia arranjar direito as suas histórias, lavá-las, esfregá-las, vesti-las convenientemente, cortar-lhes as unhas, os cabelos e os calos. E talvez julgasse inúteis limpezas excessivas. É possível até que não tivesse conhecimento dessas exigências. Criatura simples e direita, organizava os seus livros com o favor de Deus, evitando as embromações dos escritores comuns, lorotas que só servem para estirar e encarecer o trabalho. Realmente, se ele conseguia narrar um caso em trinta páginas e vendê-lo por dez tostões, por que haveria de espichá-lo em trezentas páginas e explorar o comprador? Domingos Barbosa, novelista consciencioso, só dizia as coisas absolutamente necessárias. 

Na verdade seria incapaz de se deter em pormenores e engendrar um negócio longo. Em consequência desprezava habilidades e enchimentos. A sua arte era uma arte infusa, surgida como revelação de chofre. Nada havia feito para alcançá-la — e isto a tornava preciosa. Um dom. Exatamente como se lhe tivesse vindo ordem para profetizar. Sentira-se chamado a uma grande missão — tinha de levar aos homens a mensagem, como se diz hoje.

Examinando-se, percebia honestamente que, afastadas as complicações e os artifícios, não lhe sobrava muito para transmitir. Recheava, pois, as suas narrativas de exemplos comoventes, bons conselhos, máximas, excelente moral exposta, sem vaidade, na sintaxe dos noticiários.

Nem sempre se manifestava com bastante clareza. Às vezes deixava passagens obscuras e incompletas, que depois elucidava e alongava em conversas. Se Domingos Barbosa construísse romances de trezentas páginas, tivesse posição e amigos, os críticos se encarregariam das interpretações e dos enxertos. Como lhe faltava tudo isso, forjava ele mesmo comentários e justificações. Foi assim que O brado da consciência e A heroica alagoana, obras meio escritas e meio orais, entraram nos espíritos.

As personagens desse meu conterrâneo esquecido não eram a deplorável mistura de virtudes e vícios que utilizamos: eram tipos absolutamente bons ou absolutamente ruins. Os justos recebiam prêmio, os malandros findavam no castigo e no remorso, como deve acontecer. O prêmio tinha o apelido de galardão, sem o qual os heróis não se julgariam devidamente recompensados, e aplicavam-se aos maus xingações terríveis. Uns réprobos. A ternura dessa gente se exibia em amplexos e ósculos, e comparavam-se os peitos e os cabelos das mulheres a substantivos esquisitos: o alabastro, o jaspe, o ébano, a asa do corvo.

Domingos Barbosa nunca tinha visto nada disso, mas aprendera o vocabulário nos jornais da capital, em discursos, especialmente nas composições de Pedro Leandro, veterano da ficção, caído em desprestígio por causa de algumas leviandades. Manufaturando uma cena de ímpeto, Leandro, no entusiasmo que o fato exigia, perdera os estribos e escrevera: “A mulher abraçou-se ao cadáver louco do filho.” Procurando em vão defender-se, gemendo, lastimando-se, o infeliz ganhara a alcunha de cadáver louco, de que nunca se livrara, e, num imenso desgosto, passara o resto da vida aguentando remoques. Porque os leitores da roça, no começo do século, tinham rigores que atualmente, graças a Deus, não existem.

Domingos Barbosa se considerava superior a Leandro, que tinha sido um mestre, e fortalecia-se com esta certeza, achava nela razão para trabalhar, desenvolver a sua técnica e as suas qualidades. Sem o confronto, certamente mudaria de profissão, desanimado. Mas como via alguém abaixo dele, prosseguiu. Enquanto andou na terra, ofereceu ao público novelas sisudas, de proveito.

Deve estar morto há muitos anos. O brado da consciência e A heroica alagoana esgotaram-se, perderam-se. E Domingos Barbosa não figura entre os romancistas do meu Estado.

 

Rio de Janeiro, maio de 1942.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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