3/15/2025

A Camponesa e o Limpador de Chaminés (Hans Christian Andersen), por Monteiro Lobato



 A CAMPONESA E O LIMPADOR DE CHAMINÉS

Conhecem vocês desses velhos armários, enegrecidos pelo tempo e todo cobertos de arabescos e figuras entalhadas em alto relevo? Pois era um desses que havia na sala de jantar, e como fosse móvel de estimação a família conservava-o cuidadosamente. Tinha rosas, tulipas, cabeças de animais e bem no centro uma figura grotesca, que não se sabia se estava rindo ou fazendo careta. Era um homem com pés de cabra, chifres e barba longa. As crianças da casa diziam que era o Tenente-Coronel-Cabrito-Perna-Torta, um nome comprido que poucos coronéis possuem. Estava ele sempre a olhar fixamente para a mesa em sua frente.

Sobre essa mesa morava uma pastora de porcelana, de sapatinhos dourados, vestido enfeitado de rosas, chapéu também dourado; na mão trazia um cajado. Sem favor nenhum a pastora de porcelana era realmente linda. A seu lado via-se um limpador de chaminés, preto que nem carvão e também de porcelana. Mas apesar de preto, era limpo e delicado, porque a mesma porcelana de que fora feito servia até para fazer anjos e príncipes.

Lá estava ele a suster elegantemente a sua escadinha e com as faces tão claras e rosadas que mais se assemelhavam às de uma menina. E isso era um defeito, pois sendo limpador de chaminés também o seu rosto devia ser preto. Como tivesse sido colocado junto à pastora, tornaram-se com o tempo bons amigos, e não demorou muito que essa amizade desse em noivado. Eram ambos moços, frágeis e feitos da mesma porcelana, formando assim um par bem combinado.

Fazia-lhes companhia um velho chinês, também de porcelana e três vezes maior do que eles. Este chim tinha a propriedade de mover a cabeça e talvez por esse motivo dizia sempre que era avô da camponesa, embora não o pudesse provar. E garantia que como avô tinha o direito de governá-la. Assim, quando o Tenente-Coronel-Cabrito-Perna-Torta pediu a pastora em casamento, ele sem vacilar moveu a cabeça dando o seu consentimento.

— Você terá um marido que suponho ser de mogno, que é madeira muito preciosa, disse o chinês à sua pupila. Virará a senhora do Tenente-Coronel-Cabrito-Per-na-Torta, dona de um armário cheio de pratos, para não falar no que deve existir dentro das gavetas.

— Não quero morar naquele armário escuro, protestou a pastora. Já ouvi dizer que há lá dentro onze mulheres de porcelana.

— Pois fica sendo a décima segunda. Hoje à noite, ao primeiro estalo da madeira do velho armário terá início o seu casamento; e as cerimônias hão de realizar-se, tão certo quanto ser eu chinês. E isto dizendo moveu a cabeça e ferrou o sono.

Não se conformando com a sorte que a esperava, a pequena pastora pôs-se a chorar. Em seguida teve uma idéia e voltando-se para o noivo, o limpador de chaminés, convidou-o para fugirem juntos, já que estava firmemente decidida a não obedecer as ordens do chinês.

— Com você serei feliz em qualquer parte, respondeu o limpador de chaminés. Partamos já, sem perda de um minuto. Creio que poderei mantê-la com o meu trabalho.

— Só ficarei descansada quando me vir longe daqui. Oh! como quero conhecer o mundo!...

Com o auxílio do noivo a pastora conseguiu descer ao chão, apoiando-se nas saliências duma perna da mesa. Mas ao olharem para o armário viram que algo de anormal nele se passava. As figuras de animais moviam as cabeças, agitadas, e o Tenente-Coronel-Cabrito-Perna-Torta gesticulava como um possesso, a berrar para o chinês:

— Eles estão fugindo! Eles estão fugindo!

Amedrontados, o amoroso par escondeu-se na gavetinha de uma banqueta, onde foram encontrar vários baralhos incompletos e um teatrinho de boneca. A peça que se achava em cena era uma em que todas as damas, tanto as de espadas como as de copas, de paus e de ouros, se sentavam na primeira fileira e se abanavam com as suas tulipas; os valetes ocupavam segunda fileira e tinham o busto em sentido contrário, como é nos baralhos. O enredo da peça era o caso de dois namorados que, embora se amassem doidamente, não tinham permissão para se casar. A pobre pastorinha não pode conter as lágrimas ao compreender que também com ela se dava o mesmo.

— Não quero mais ver isto! exclamou. Vamo-nos embora daqui.

Mas nem bem haviam saído, viram o velho chim já desperto, a tremer de cólera, preparando-se para descer da mesa.

— O chinês vem vindo, disse a pastora com voz trêmula, caindo de joelhos, já sem forças para manter-se de pé.

— Tenho um plano, lembrou o limpador de chaminés. Entremos na jarra de perfumes que está naquele canto. Ficaremos sobre rosas e alfazemas e quando o chinês chegar jogaremos sal nos olhos dele.

— De nada adiantará. Ele e a jarra já foram noivos, e apesar de terem desfeito o noivado é provável que ainda reste alguma amizade entre os dois. Nada mais temos a fazer senão abandonar esta casa, saindo pelo mundo afora.

— Você tem coragem de correr mundo comigo? Já refletiu que o mundo é imenso e que nunca mais voltaremos para aqui?

— Já, e estou pronta a acompanhá-lo, respondeu a pastora.

— Pois bem, meu caminho é pela chaminé, continuou o outro, tornando-se muito sério. Se tiver a coragem suficiente para entrar no fogão de inverno e galgar a chaminé, poderemos fugir. Quando lá fora, saberei o que fazer. No telhado da casa já ninguém nos perseguirá.

— E os dois entraram juntos no fogão, que pareceu à pastora escuro e sujo. Logo depois subiam pela chaminé.

— Veja, lá em cima está brilhando uma estrela! disse ele.

De fato, uma estrela de verdade projetava a sua luz por dentro da chaminé, como pronta a guiar o parzinho amoroso. Vagarosamente, vencendo grandes dificuldades, foram os dois subindo. Ele ia à frente, segurando a pastora pelas mãos e mostrando-lhe os melhores lugares onde pudesse colocar os delicados pezinhos de porcelana; e assim conseguiram atingir o alto da chaminé, em cujo topo se sentaram, cansadinhos.

No céu brilhavam milhares de estrelas e embaixo a casaria da cidade perdia-se de vista. Os dois olharam em torno, até onde podiam enxergar. Mas a pobre pastorinha ficou desiludida com o mundo. Não era o que havia imaginado, e recostando a cabeça ao ombro do companheiro chorou, chorou amargamente a sua desilusão.

— Isso é muito para mim, soluçava. É mais do que posso suportar. O mundo é muito grande. Ah, se pudesse estar outra vez sobre a minha mesa... Só me sentirei de novo feliz quando voltar. Acompanhei-o aqui por amor, e agora, também como prova de amor, você deve levar-me de volta.

O limpador de chaminés tentou dissuadi-la, mostrando-lhe o destino que a esperava nas mãos do chinês e do Tenente-Coronel-Cabrito-Perna-Torta; mas a pastorinha soluçava tão doridamente e beijava-o com tanta doçura que não teve outro remédio senão fazer-lhe a vontade.

Com grande dificuldade e mil cautelas desceram os dois pela chaminé e foram parar no fogão, ficando lá atentos, a fim de ver se percebiam o que se passava na sala. Tudo era silêncio. Resolveram espiar e a primeira coisa que viram foi o chinês no chão, quebrado em três pedaços. Caíra da mesa ao tentar persegui-los.

O Tenente-Coronel-Cabrito-Perna-Torta, porém, continuava no lugar de sempre e parecia imerso em cismas.

— Que horror! balbuciou a pastorinha torcendo as mãos. Meu velho avô chinês quebrou-se todo por culpa nossa! Creio que não posso sobreviver a uma tal desgraça!

— Ele poderá ser consertado, acudiu o limpador de chaminés, Não se aflija tanto. Com um pouco de cola ficará bom novamente e voltará a nos repreender, como de costume.

— Acha que será fácil?

— Sem dúvida.

Em seguida os dois voltaram à mesa que haviam abandonado.

— Tanto sacrifício sem nenhum proveito! suspirou o limpador de chaminés.

— Só quero ver o meu avô consertado, murmurou consigo a pastora. Em quanto ficará essa cura?

No dia seguinte uma pessoa da casa consertou o chinês com um pouco de grude, espetando-lhe no pescoço um prego para manter a cabeça em posição. E o chim voltou a ser o velho rabugento que sempre fora. Só que agora não podia mais mover a cabeça, como antes da queda.

— Noto que o senhor tornou-se orgulhoso depois do desastre, comentou o Tenente-Coronel-Cabrito-Perna-Torta, dirigindo-se a ele. Não vejo razões para tal mudança. Afinal de contas, concede-me ou não a mão da sua neta?

O limpador de chaminés e a pastora olharam ansiosos para o chinês, com medo que ele movesse a cabeça em gesto de assentimento. Mas o pobre chim achava-se impossibilitado de movê-la e não lhe ficaria bem confessar a tão importante personagem como o Coronel a razão da sua imobilidade. E fingiu nada ter ouvido. Desse modo o par de namorados de porcelana continuou a viver em paz e viveram até o dia em que o destino deu a morte usual dos objetos de louça serem feitos em pedaços por alguma criança reinadeira.


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

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