3/14/2025

A Gata Borralheira (Charles Perrault), por Monteiro Lobato



A GATA BORRALHEIRA

Era uma vez um gentil-homem que se casou em segundas núpcias com uma das mulheres mais orgulhosas que ainda existiram. Essa mulher trouxe duas filhas que puxaram por ela em tudo e o gentil-homem tinha uma menina que era duma bondade e doçura sem exemplos.

Logo depois de realizado o casamento, o mau gênio da mulher mostrou-se, pois não podia suportar as boas qualidades da enteada, visto como essas boas qualidades ainda mais realçavam a ruindade das suas filhas. Em vista disso pôs em cima da coitadinha os mais grosseiros serviços da casa, como lavar as panelas e o assoalho. A mísera dormia num recanto do sótão, sobre um montinho de palha, enquanto as outras se regalavam em aposentos tapetados, com lindas camas e guarda-roupas de espelhos nos quais podiam mirar-se a toda hora. Mas a pobre menina tudo suportava com paciência infinita e sem queixar-se ao pai, o qual já andava completamente dominado pela nova esposa.

Quando concluía o seu serviço, ia ela sentar-se junto ao fogão sobre um montinho de cinzas — e daí lhe veio o apelido de Gata Borralheira. Mas apesar de tudo a desprezadinha não deixava de ser mil vezes mais bela que as duas emproadas, ainda que se vestissem como princesas.

Ora aconteceu que o filho do rei deu um grande baile para o qual convidou toda a gente importante da cidade — e as duas filhas da mulher má também receberam convites. Puseram-se incontinenti a preparar-se, a escolher vestidos e penteados, enquanto a Borralheira só tinha licença de espiar de longe, lá do seu cantinho.

— Eu, dizia a mais velha, vou com o meu vestido de veludo cor de romã, e com aquela gola de renda da Irlanda.

— Eu, dizia a mais moça, vou com o meu manto de flores de ouro e o barrete de brilhantes.

Foi chamado o melhor cabeleireiro para armar os penteados, que naquele tempo eram enormes e de canudinhos, e depois fizeram vir a Borralheira para dar opinião, visto que a pobre menina tinha muito bom gosto.

E ela deu sua opinião com toda franqueza, corrigindo certos defeitos dos penteados de modo a realçá-los mais.

Enquanto isso as duas lhe perguntavam, por caçoada:

— Borralheira, você tinha vontade de ir ao baile?

— Quem sou eu? respondia a pobrezinha — e as outras gargalhavam, dizendo que realmente seria um absurdo, que uma gata do borralho fosse ao baile do príncipe.

A alegria das duas era tamanha que passaram dois dias sem comer. Não havia tempo. O tempo todo era para se mirarem e remirarem ao espelho.

O dia da festa chegou afinal — e lá se foram elas, muito lampeiras, seguidas pelos olhares tristes da pobre gatinha do borralho. Logo, porém, que as viu desaparecerem ao longe a menina começou a chorar. Nisto apareceu-lhe sua madrinha, que era fada, e lhe perguntou porque chorava.

— Eu queria... eu queria... começou a menina, mas o choro não a deixava concluir.

— Já sei, disse a madrinha. Querias ir ao baile, não é?

— Ai de mim! suspirou a menina. Quem sou eu?

— Pois irás, minha filha eu te farei ir, e isto dizendo levou-a para o quarto onde disse: “Vai à horta e traze uma cidra."

A menina foi e trouxe a mais bela cidra, sem saber como tal fruta pudesse levá-la ao baile. A madrinha cavou a cidra de modo a deixar só a casca e depois a bateu com a sua varinha de condão. Imediatamente a cidra oca se transformou numa belíssima carruagem dourada.

Em seguida a madrinha foi a uma ratoeira armada perto da despensa e tirou dela seis ratinhos vivos, e foi dando um toque de vara em cada um à medida que os tirava — e eles viraram imediatamente em lindos cavalos, que correram a atrelar-se à carruagem. Faltava o cocheiro.

— Vai ver, menina, se não há ainda algum rato na ratoeira.

A menina foi e encontrou mais três, que imediatamente foram virados em três cocheiros.

— Vai agora ao jardim e traze seis lagartixas que moram debaixo da tina d’água — e a menina foi e trouxe as lagartixas, e a fada as transformou em seis lacaios, os quais subiram à carruagem como se nunca tivessem feito outra coisa na vida.

— Muito bem, disse a madrinha. Tens agora meios de ir ao baile. Estás contente?

— Sim, respondeu a menina, mas como poderei ir a tal festa nestes trajes? A resposta da madrinha foi dar-lhe um toque de vara, e imediatamente apareceu o mais maravilhoso vestido que ainda se viu no mundo, e também um par de sapatinhos de cristal. A menina vestiu-se, calçou os sapatinhos e subiu à carruagem. No momento de partir a fada lhe recomendou que abandonasse o baile antes de bater meia-noite, porque se não a carruagem se viraria outra vez em cidra, os cocheiros e lacaios em ratos e lagartixas e o seu rico vestido em trapos imundos.

A menina prometeu que faria assim e lá se foi, tinindo de alegria. O filho do rei, ao ser avisado da chegada de uma grande princesa desconhecida, correu a recebê-la, tomando-lhe a mão, introduziu-a na sala. Fez-se no recinto grande silêncio, porque a beleza da menina havia deslumbrado a todos. Só se ouviam comentários: "Como é formosa! Que lindos olhos tem!" O rei, apesar de velho, também maravilhou-se e confessou à rainha que nunca tinha visto uma criatura de tal beleza. E as fidalgas da corte não tiravam os olhos do seu penteado e do seu vestido, com ideia de copiar tudo aquilo no dia seguinte.

O príncipe veio tirá-la para dançar — e a menina dançou com tamanha leveza e graça que ainda cresceu de vários pontos a admiração geral. Quando foram servidos doces e refrescos, o príncipe nada quis, de tão absorvido que estava na contemplação da maravilhosa princesa.

A menina foi sentar-se ao lado das suas irmãs e lhes fez mil cortesias e louvores, chegando a repartir com elas os doces dados pelo príncipe, e as duas muito estranharam isso, pois não a reconheceram.

Mas o tempo ia passando e afinal soou as onze e três quartos. A Gata Borralheira, imediatamente se levantou, fez uma reverência para todos e saiu apressada. Ao chegar à casa tudo contou à madrinha e disse que recebera amável convite do príncipe para comparecer ao baile do dia seguinte. Estava nisto, combinando o que havia de ser, quando chegaram as duas emproadas e bateram. A menina correu a abrir, e fingindo que estivera no melhor dos sonos, disse-lhes, bocejando:

— Como se demoraram!

E elas responderam:

— Se você tivesse ido ao baile não estaria agora bocejando. Foi uma beleza! Entre as convidadas apareceu uma desconhecida, linda como os amores. E falou-nos, sabe? e fez-nos mil gentilezas, dando-nos até doces que o príncipe lhe ofertara.

A menina perguntou se sabiam do nome da tal desconhecida.

— Não sabemos, nem ninguém sabe e o príncipe está tão apaixonado que dará tudo quanto possui para sabê-lo.

— Mas era linda mesmo? perguntou a menina sorrindo, com ar de dúvida. Oh, como vocês são felizes de a terem visto! Deixem-me vê-la também! Deixem-me ir ao baile, com aquele vestidinho velho de rendas creme! As moças caíram na gargalhada.

Tinha graça! exclamaram. Era só o que faltava...

Mas a menina ficou bem contente com a resposta, porque se elas houvessem consentido seria uma grande atrapalhação.

No dia seguinte as duas irmãs foram de novo ao baile e logo depois a Borralheira fez o mesmo — e dessa vez foi com um vestido ainda mais lindo que o da véspera. O filho do rei veio ter com ela e não a largou um só minuto ; e tão entretidos estiveram os dois na conversa que a menina esqueceu-se da recomendação da fada. Só quando soou a primeira pancada da meia-noite é que se lembrou, e teve de sair mais rápida que uma veadinha. O príncipe correu para agarrá-la, mas não pode. Só pode apanhar um dos seus sapatinhos, que ao atravessar o jardim lhe escapou do pé.

Borralheira chegou à casa mais morta do que viva do susto e da carreira, sem carruagem, sem cocheiros e lacaios, sem o vestido maravilhoso. Só lhe ficara de tecla aquela magnificência, um pé de sapatinho de cristal.

O príncipe indagou dos guardas do portão se não havia passado por ali uma princesa, e eles responderam que só tinham visto uma menina andrajosa a correr, que mais parecia uma cozinheira.

Quando as duas irmãs chegaram do baile a menina foi abrir-lhes a porta e de novo perguntou se se haviam divertido muito e se a tal princesa maravilhosa havia aparecido. Elas responderam que sim, que aparecera e mais linda ainda que na véspera, mas que fugira ao soar da meia-noite, e com tanta precipitação que havia deixado no jardim um pé de sapatinho. O príncipe o havia tomado e viera experimentá-lo no pé de teclas as moças presentes, sem que servisse em nenhum. E que durante todo o resto do baile Me ficara jururu num canto, porque estava perdido de amor pela dona do sapatinho.

Era verdade tudo aquilo. No dia seguinte o filho do rei fez proclamar pela cidade que desejava casar-se com a dona do sapatinho, fosse ela quem fosse. E começou a investigação. Um emissário do príncipe ia de casa em casa para experimentá-lo em todos os pés de moça, começando pelas princesas, passando depois para as duquesas e marquesas e baronesas. Não serviu no pé de nenhuma, e então começou ele a experimentá-lo no pé das moças comuns.

Afinal chegou a vez das duas irmãs. A carruagem do emissário parou à porta e ele entrou com o sapa-linho na mão. As duas irmãs vieram prová-lo e tudo fizeram para calçá-lo. A Gata Borralheira, que estava num cantinho espiando a cena, murmurou:

— Eu também queria ver se me serve!

As duas irmãs caíram na gargalhada; mas o emissário do príncipe não fez o mesmo — achou que ela tinha razão, pois a ordem de seu amo era provar o sapatinho em todas. E chamando a menina fê-la sentar-se e deu começo. Maravilha! O sapatinho entrou naquele pé como um dedo entra num anel.

O assombro das duas irmãs foi imenso, e maior ainda quando a Borralheira tirou do bolso do avental o companheiro do sapatinho e o calçou no outro pé. Nisto surgiu a fada madrinha, e dando-lhe um toque da sua Vara de condão fê-la surgir mais radiosa e bela que a mais bela das princesas. E foi assim que a Gata Borralheira saiu da casa da madrasta e pela mão do emissário foi conduzida ao palácio do príncipe.

Só então as duas irmãs reconheceram na menina desprezada a princesa desconhecida dos bailes — e correram a lançar-se aos seus pés, pedindo perdão do mau tratamento que lhe haviam dado. A menina ergueu-as e disse que as perdoava de todo o coração e que seriam sempre amigas.

O casamento realizou-se logo depois e a Gata Borralheira, que era muito boa de sentimentos, levou as irmãs para o palácio e também as casou no mesmo dia com dois grandes fidalgos.


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

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