3/15/2025

A Menina dos Fósforos (Hans Christian Andersen), por Monteiro Lobato


O PEQUENO TUQUE

Era uma vez um menino chamado Tuque, apelido pelo qual todos o conheciam: ninguém o tratava pelo verdadeiro nome. Apesar de ter sua lição a estudar, era o pequeno Tuque obrigado a pajear a irmãzinha, duas tarefas muito pesadas para um menininho só. Horas a fio passava com a irmãzinha ao colo, embalando-a com todas as canções que sabia de cor. De quando em quando lançava uma olhadela para a geografia aberta à sua frente. E era com pesar que se lembrava que teria de repetir de cor na aula do dia seguinte os nomes das principais cidades da Dinamarca e tudo mais que sobre elas soubesse.

Sua mãe, que estivera fora de casa, ao chegar tomou a filhinha nos braços e Tuque correu à janela, ansioso por estudar a sua lição. Repetidas vezes leu e releu o capítulo referente à Zelândia, que é uma ilha da Dinamarca, até que seus olhos principiaram a doer, pois fazia-se noite e não havia uma só vela na casa.

— Lá vai a lavadeira subindo a rua, disse a mãe de Tuque chegando à janela. Mal pode consigo, a pobre. Seja um bom menino, Tuque, e vá ajudá-la a carregar o pote d’água.

Obedecendo à mamãe, o pequenino Tuque correu a auxiliar a lavadeira. De volta veio encontrar o quarto imerso em densa penumbra, e como nem vela tivesse resolveu deitar-se. Longo tempo ficou a pensar na lição de geografia e em tudo mais que lhe ensinara o mestre naquele dia. Devia ter estudado mais; infelizmente, porém, não lhe fora possível. Por fim colocou o livro debaixo do travesseiro — já ouvira dizer na escola que isto auxiliava o estudante a não esquecer a lição, embora não tivesse grande confiança na eficácia do método...

Continuou pensando numa porção de coisas e afinal, ao ser vencido pelo sono, sentiu que alguém o beijava na boca. Pareceu-lhe ouvir a velha lavadeira murmurar com voz carinhosa:

—Seria um pecado se você não soubesse a lição amanhã. E como foi bom para comigo, ajudando-me a carregar o pote d’água, vou ajudá-lo a estudar sua lição.

Nem bem a boa mulher acabara de falar, a geografia, que se achava debaixo do travesseiro, pôs-se a mover-se como um ser animado.

— "Có! Có! Có!" cacarejou uma galinha saindo do livro. Sou de Kioge, disse ela — e contou ao menino tudo quanto sabia sobre a cidade de Kioge, desde o número de habitantes, edifícios principais, história, até a batalha travada entre ingleses e dinamarqueses, combate, aliás, que não foi de grande importância.

Mal a galinha parou de falar, surgiu do livro um pássaro de madeira, uma espécie de periquito usado como alvo na cidade de Prastoe. Segundo contou ele, o número de habitantes da vila não ultrapassava o das tachinhas espetadas no seu corpo — e isto o tornava extremamente orgulhoso.

— Thorwaldsen foi meu vizinho, e aqui estou são e salvo!

Eis que de um momento para outro o pequeno Tuque se vê à garupa de um belo corcel, cavalgado por um guerreiro de capacete de ferro enfeitado de plumas. Velozmente galopou através de florestas e campos até à cidade de Vordingborg, cujo edifício mais importante era o castelo real, com as suas torres e janelas iluminadas. Do interior desse castelo vinham sons de música — era o Rei Valdemar que bailava com as damas da corte.

Pela manhã, com o nascer do sol, o castelo desmanchou-se como por encanto. Umas após outra as majestosas torres desabaram e toda a cidade fez-se em ruínas. Onde se erguera o castelo só havia agora uma torre. Tão insignificante se tornara a cidade, que os meninos que passavam sobraçando livros, a caminho da escola, gritavam com desprezo: "Só dois mil habitantes!" E mesmo isso era exagero.

Novamente o pequeno Tuque se viu em sua cama. Parecia-lhe estar sonhando e ao mesmo tempo tinha a impressão de estar desperto. Nisto alguém se aproximou.

— Tuque, Tuque, chamou um pequenino marinheiro. Trago-lhe as saudações do Corsor. É uma cidadezinha muito nova ainda, mas cheia de vida, com muitos carros e navios. Foi antigamente um porto muito feio, sem o menor atrativo, pois era lá que os navios ficavam à espera de bom vento para prosseguirem viagem. Agora, porém, com a invenção dos barcos a vapor, tudo mudou.

— Fico situada na costa do país, disse Corsor entrando na conversa. Tenho boas estradas e belos parques onde brincam as crianças. Sou o berço natal de um grande poeta que foi o encanto de milhares de pessoas. Já uma vez projetei construir um navio para dar volta ao mundo; mas a idéia não foi avante. Sou muito perfumada, porque as mais cheirosas flores crescem nos meus jardins.

Estendendo o olhar para a frente, o pequeno Tuque percebeu uma nuvem pintalgada; aos poucos a sua visão foi-se aclarando e o menino distinguiu o lombo de um outeiro recoberto de rosas, em cujo topo se erguia velha igreja com duas torres góticas. Ribeiros barulhentos desciam pela colina abaixo e junto a um desses ribeiros estava sentado um rei velho, tendo na cabeça toda branca uma coroa de ouro. Era o Rei Hraor; perto dele apareceu a cidade de Roeskilde, na qual todos os soberanos da Dinamarca, com as suas coroas na cabeça e de mãos dadas, se mostravam a caminho da velha igreja. O órgão chorava um hino sacro e os regatos corriam marulhantes. Era lá que tinham sido enterrados quase todos os reis do país.

O pequeno Tuque nada perdia do que se passava. Em certo momento o Rei Hraor lhe disse que não esquecesse as províncias.

Repentinamente tudo desapareceu como por encanto — como se tivesse sido virada a página de um livro. E então surgiu diante de Tuque uma velha camponesa de Soroe, pacato burgo onde o mato cresce nas praças, Cobria-lhe a cabeça e os ombros um avental de linho amarelado, todo molhado.

Essa camponesa narrou-lhe muitas coisas interessantes sobre as comédias de Holberg, também fundador de uma academia militar em Soroe, e sobre Valdemar e Absalão.

Súbito, a velha começou a tremer e a esticar a cabeça.

Creque! creque! coaxou ela. Está úmido! Está úmido! E num abrir e fechar de olhos transformou-se em rã, para no mesmo instante coaxar de novo e retomar a forma de mulher. E disse: A gente deve trajar-se de acordo com o tempo. Está muito úmido. Minha terra já exportou os melhores peixes e hoje possui meninos de faces rosadas, que estudam filosofia, o grego e o hebraico. Creque! Creque!

Tudo isto soava aos ouvidos de Tuque como um coaxar de rãs, ou como se alguém estivesse a patinhar num charco; tão monótona era a voz da mulher que em breve o menino adormeceu.

Sonhou que sua irmãzinha se tornara uma jovem esbelta de olhos azuis e castelos dourados, e que podia voar, embora não tivesse asas. E ambos, então, voaram sobre a Zelândia passando por cima de floresta e de mares azuis.

— Está ouvindo o galo cantar, Tuque? Có-có-ri-có! As galinhas vêm voando de Kioge. Você terá uma grande propriedade e jamais saberá o que seja a miséria. Terá gansos de ouro e será rico e feliz. Sua residência será tão grandiosa como o palácio do Rei Valdemar, e terá colunas de mármore vindas de Prastoe. Seu nome dará volta ao mundo, como o navio que foi projetado em Corsor...

— Não se esqueça das províncias, disse o Rei Hraor. Você será sempre uma criatura sensata e quando morrer dormirá em paz...

Tuque afinal acordou. Ia amanhecendo e por mais esforço que fizesse não pôde reconstruir o que havia sonhado. Mas não importava — não há necessidade de a gente saber aquilo que ainda irá ver.

Saltando da cama, releu a lição e imediatamente soube-a de cor. Nisto a lavadeira entreabriu a porta e disse com voz amiga:

— Muito obrigada pelo ajutório de ontem, meu bom menino. Que Deus o abençoe e faça que se realizem todos os seus sonhos dourados.

Aqui termina a história do nosso herói. Jamais soube ele o que havia sonhado; mas não importa — Deus o soube.


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025) 

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