Era uma vez um menino chamado
Tuque, apelido pelo qual todos o conheciam: ninguém o tratava pelo verdadeiro
nome. Apesar de ter sua lição a estudar, era o pequeno Tuque obrigado a pajear
a irmãzinha, duas tarefas muito pesadas para um menininho só. Horas a fio
passava com a irmãzinha ao colo, embalando-a com todas as canções que sabia de
cor. De quando em quando lançava uma olhadela para a geografia aberta à sua
frente. E era com pesar que se lembrava que teria de repetir de cor na aula do
dia seguinte os nomes das principais cidades da Dinamarca e tudo mais que sobre
elas soubesse.
Sua mãe, que estivera fora de casa,
ao chegar tomou a filhinha nos braços e Tuque correu à janela, ansioso por
estudar a sua lição. Repetidas vezes leu e releu o capítulo referente à
Zelândia, que é uma ilha da Dinamarca, até que seus olhos principiaram a doer,
pois fazia-se noite e não havia uma só vela na casa.
— Lá vai a lavadeira subindo a rua,
disse a mãe de Tuque chegando à janela. Mal pode consigo, a pobre. Seja um bom
menino, Tuque, e vá ajudá-la a carregar o pote d’água.
Obedecendo à mamãe, o pequenino
Tuque correu a auxiliar a lavadeira. De volta veio encontrar o quarto imerso em
densa penumbra, e como nem vela tivesse resolveu deitar-se. Longo tempo ficou a
pensar na lição de geografia e em tudo mais que lhe ensinara o mestre naquele
dia. Devia ter estudado mais; infelizmente, porém, não lhe fora possível. Por
fim colocou o livro debaixo do travesseiro — já ouvira dizer na escola que isto
auxiliava o estudante a não esquecer a lição, embora não tivesse grande
confiança na eficácia do método...
Continuou pensando numa porção de
coisas e afinal, ao ser vencido pelo sono, sentiu que alguém o beijava na boca.
Pareceu-lhe ouvir a velha lavadeira murmurar com voz carinhosa:
—Seria um pecado se você não
soubesse a lição amanhã. E como foi bom para comigo, ajudando-me a carregar o
pote d’água, vou ajudá-lo a estudar sua lição.
Nem bem a boa mulher acabara de
falar, a geografia, que se achava debaixo do travesseiro, pôs-se a mover-se
como um ser animado.
— "Có! Có! Có!" cacarejou
uma galinha saindo do livro. Sou de Kioge, disse ela — e contou ao menino tudo
quanto sabia sobre a cidade de Kioge, desde o número de habitantes, edifícios
principais, história, até a batalha travada entre ingleses e dinamarqueses,
combate, aliás, que não foi de grande importância.
Mal a galinha parou de falar,
surgiu do livro um pássaro de madeira, uma espécie de periquito usado como alvo
na cidade de Prastoe. Segundo contou ele, o número de habitantes da vila não
ultrapassava o das tachinhas espetadas no seu corpo — e isto o tornava
extremamente orgulhoso.
— Thorwaldsen foi meu vizinho, e
aqui estou são e salvo!
Eis que de um momento para outro o
pequeno Tuque se vê à garupa de um belo corcel, cavalgado por um guerreiro de
capacete de ferro enfeitado de plumas. Velozmente galopou através de florestas
e campos até à cidade de Vordingborg, cujo edifício mais importante era o
castelo real, com as suas torres e janelas iluminadas. Do interior desse
castelo vinham sons de música — era o Rei Valdemar que bailava com as damas da
corte.
Pela manhã, com o nascer do sol, o
castelo desmanchou-se como por encanto. Umas após outra as majestosas torres
desabaram e toda a cidade fez-se em ruínas. Onde se erguera o castelo só havia
agora uma torre. Tão insignificante se tornara a cidade, que os meninos que
passavam sobraçando livros, a caminho da escola, gritavam com desprezo:
"Só dois mil habitantes!" E mesmo isso era exagero.
Novamente o pequeno Tuque se viu em
sua cama. Parecia-lhe estar sonhando e ao mesmo tempo tinha a impressão de
estar desperto. Nisto alguém se aproximou.
— Tuque, Tuque, chamou um pequenino
marinheiro. Trago-lhe as saudações do Corsor. É uma cidadezinha muito nova
ainda, mas cheia de vida, com muitos carros e navios. Foi antigamente um porto
muito feio, sem o menor atrativo, pois era lá que os navios ficavam à espera de
bom vento para prosseguirem viagem. Agora, porém, com a invenção dos barcos a
vapor, tudo mudou.
— Fico situada na costa do país,
disse Corsor entrando na conversa. Tenho boas estradas e belos parques onde
brincam as crianças. Sou o berço natal de um grande poeta que foi o encanto de
milhares de pessoas. Já uma vez projetei construir um navio para dar volta ao mundo;
mas a idéia não foi avante. Sou muito perfumada, porque as mais cheirosas flores
crescem nos meus jardins.
Estendendo o olhar para a frente, o
pequeno Tuque percebeu uma nuvem pintalgada; aos poucos a sua visão foi-se
aclarando e o menino distinguiu o lombo de um outeiro recoberto de rosas, em
cujo topo se erguia velha igreja com duas torres góticas. Ribeiros barulhentos
desciam pela colina abaixo e junto a um desses ribeiros estava sentado um rei
velho, tendo na cabeça toda branca uma coroa de ouro. Era o Rei Hraor; perto dele
apareceu a cidade de Roeskilde, na qual todos os soberanos da Dinamarca, com as
suas coroas na cabeça e de mãos dadas, se mostravam a caminho da velha igreja.
O órgão chorava um hino sacro e os regatos corriam marulhantes. Era lá que
tinham sido enterrados quase todos os reis do país.
O pequeno Tuque nada perdia do que
se passava. Em certo momento o Rei Hraor lhe disse que não esquecesse as
províncias.
Repentinamente tudo desapareceu
como por encanto — como se tivesse sido virada a página de um livro. E então
surgiu diante de Tuque uma velha camponesa de Soroe, pacato burgo onde o mato
cresce nas praças, Cobria-lhe a cabeça e os ombros um avental de linho
amarelado, todo molhado.
Essa camponesa narrou-lhe muitas
coisas interessantes sobre as comédias de Holberg, também fundador de uma
academia militar em Soroe, e sobre Valdemar e Absalão.
Súbito, a velha começou a tremer e
a esticar a cabeça.
— Creque! creque! coaxou ela. Está úmido! Está úmido! E num abrir e
fechar de olhos transformou-se em rã, para no mesmo instante coaxar de novo e
retomar a forma de mulher. E disse: A gente deve trajar-se de acordo com o
tempo. Está muito úmido. Minha terra já exportou os melhores peixes e hoje
possui meninos de faces rosadas, que estudam filosofia, o grego e o hebraico. Creque! Creque!
Tudo isto soava aos ouvidos de
Tuque como um coaxar de rãs, ou como se alguém estivesse a patinhar num charco;
tão monótona era a voz da mulher que em breve o menino adormeceu.
Sonhou que sua irmãzinha se tornara
uma jovem esbelta de olhos azuis e castelos dourados, e que podia voar, embora
não tivesse asas. E ambos, então, voaram sobre a Zelândia passando por cima de
floresta e de mares azuis.
— Está ouvindo o galo cantar,
Tuque? Có-có-ri-có! As galinhas vêm voando de Kioge. Você terá uma grande
propriedade e jamais saberá o que seja a miséria. Terá gansos de ouro e será
rico e feliz. Sua residência será tão grandiosa como o palácio do Rei Valdemar,
e terá colunas de mármore vindas de Prastoe. Seu nome dará volta ao mundo, como
o navio que foi projetado em Corsor...
— Não se esqueça das províncias,
disse o Rei Hraor. Você será sempre uma criatura sensata e quando morrer dormirá
em paz...
Tuque afinal acordou. Ia
amanhecendo e por mais esforço que fizesse não pôde reconstruir o que havia sonhado.
Mas não importava — não há necessidade de a gente saber aquilo que ainda irá
ver.
Saltando da cama, releu a lição e
imediatamente soube-a de cor. Nisto a lavadeira entreabriu a porta e disse com
voz amiga:
— Muito obrigada pelo ajutório de
ontem, meu bom menino. Que Deus o abençoe e faça que se realizem todos os seus
sonhos dourados.
Aqui termina a história do nosso
herói. Jamais soube ele o que havia sonhado; mas não importa — Deus o soube.
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)
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