3/06/2025

O bibliômano (Conto), de Charles Nodier


O BIBLIÔMANO

Todos vocês conheceram esse bom. Teodoro sobre cuja sepultura acabo de espalhar flores, rogando ao dai que a terra lhe seja leve.

Esses dois farrapos de frase, que também conhecem, indcam-lhes suficientemente que me proponho consagrar-lhe algumas páginas de necrológio ou de oração fúnebre.

Havia vinte anos que Teodoro se retirara da sociedade, para trabalhar ou para não fazer coisa alguma; qual das duas, isso era um grande segredo. Ele meditava, e não se sabia em que meditava. Passava sua vida entre os livros e cuidava apenas de livros, o que fizera algumas pessoas pensarem que ele estivesse fazendo um livro que tornaria todos os outros inúteis; mas evidentemente se enganava. Teodoro aproveitara seus estudes bem demais para ignorar que esse livro fora escrito há trezentos anos. É o décimo terceiro capítulo do livro primeiro de Rabelais. Teodoro não falava mais, não ria mais, não jogava mais, não comia mais, não ia mais nem a bailes, nem aos teatros. As mulheres que ele amara na mocidade não mais atraíam seus olhares, ou quando muito ele olhava apenas para seus pés, quando um calçado elegante, de cor vistosa lhe chamavam a atenção. "Ai de mim! dizia ele extraindo do peito um gemido profundo, quanto marroquim perdido!"

Ele sacrificara outrora à moda: as crônicas da época informam-nos que foi o primeiro a dar o laço da gravata à esquerda, apesar da autoridade de Garrat, que dava o laço à direita, e a despeito da maioria que ainda hoje insiste em dar o laço no meio. Teodoro não se preocupava mais com a moda. Durante vinte anos só discutiu uma vez com seu alfaiate: "Senhor, disse-lhe um dia, este terno é o último que recebo de suas mãos se tornarem a esquecer de colocar bolsos cortados in-quarto."

A política, cujas oportunidades ridículas têm feito a carreira de tantos tolos, jamais conseguiu distraí-lo de suas meditações. Punha-o de mau humor, depois que as loucas tentativas de Napoleão, no norte, tinham feito subir o preço do couro da Rússia. Ele aprovou, todavia, a intervenção francesa nas revoluções da Espanha." É, disse, uma boa oportunidade para tarzer da península, romances de cavalaria e Cancioneros". Mas o exército expedicionário não cuidou absolutamente disso e êle ficou despeitado. Quando lhe diziam Trocadero, respondia ironicamente Ronmancero, o que o fez passar por liberal.

A memorável campanha do Sr. de Bournont nas costas da África transportou-o de alegria. "Graças ao céu, disse, esfregando as mãos, teremos os marroquins do levante a baixo prego." que o fez passar por carlista.

No último verão ele estava pateando por uma rua movimentada, examinando um livro. Alguns honestos cidadãos, que saíam da taverna com passos vacilantes, foram rogar-lhe, encostando-lhe o punhal ao pescoço, para gritar, em nome da liberdade de opinião. "Viva os poloneses!" "Não desejo outra coisa, respondeu Teodoro, cujo pensamento era um clamor eterno a favor do gênero humano, mas poderei perguntar-lhes qual o motivo? — É porque declaramos guerra à Holanda que oprime os poloneses, sob o pretexto deles não gostarem dos jesuítas, retrucou o amigo das luzes que era um rude geógrafo, e um lógico intrépido.

"Deus os perdoe, murmurou nosso amigo cruzando lastimosamente as mãos, ficaremos então reduzidos à imitação de papel da Holanda do Sr. Montgolfier!" O homem eminentemente civilizado partiu-lhe as pernas com uma bastonada.

Teodoro passou três meses de cama, a compulsar catálogos de livros. Predisposto, como sempre foi, a levar suas emoções As últimas, essa leitura exacerbou-lhe os nervos.

Em sua convalescença mesma, seu sono era horrivelmente agitado. Sua mulher despertou-o, uma noite, em meio à agonia do pesadelo. "Você chegou a tempo, disse-lhe ele abraçando-a, de impedir que eu morresse de susto e de dor. Eu estava cercado de monstros que não me teriam dado tréguas. — E que monstros pode recear, meu bom amigo, você quê nunca fez mal a ninguém? — Era, se estou lembrado, a sombra de Purgold, cujas funestas tesouras trincavam polegada e meia das margens de meus brochados, enquanto a sombra de Heudier mergulhava implacavelmente num ácido devorador meu mais velho volume de edição princeps, e retirava-o inteiramente branco; mas tenho boas razões para pensar que eles estejam pelo menos no purgatório."

Sua mulher pensou que ele estivesse falando grego, porque ele sabia um pouco de grego, a prova disso é que sua biblioteca estava cheia de livros gregos cujas folhas permaneciam fechadas. Por isso ele nunca os abria, contentando-se em mostrá-los aos amigos mais íntimos pela capa e pela lombada, mas mencionando o lugar da edição, o nome de editor e a data, com fleuma imperturbável. Os simples concluíam daí que era feiticeiro: Não o creio.

Como estivesse definhando a olhos vistos, chamaram seu médico que era, por acaso, filósofo e homem de espírito. Os senhores o encontrarão, se puderem. O médico reconheceu que a congestão cerebral estava iminente e fez uma bela comunicação sobre essa doença à Revista de Ciências Médicas, onde ela é denominada Monomania do marroquim ou, Tifus dos bibliômanos; mas não se tratou disso na Academia de Ciências porque coincidiu com a cólera morbo.

Aconselharam-no a fazer exercício, e como esta ideia lhe agradasse, pôs-se a caminho um belo dia, bem cedo. Eu estava bem pouco tranquilo para poder deixá-lo um instante. Dirigimo-nos para o cais, e alegrei-me com isso, porque pensei que o espetáculo do rio o divertiria. Mas, ele não afastou os olhos da altura do parapeito. O parapeito estava tão nu de mostruários como se tivessem sido visitadas desde cedo pelos defensores da imprensa que atiraram n’água em fevereiro a biblioteca do arcebispado.

Fomos mais felizes no cais das Flores. Havia livros em profusão; mas que livres! Todas as obras de que os jornais falam bem durante um mês e que acabam ali, infalivelmente, no compartimento de cinco soldos da redação ou do fundo de livraria. Filósofos, historiadores, poetas, romancistas, autores de todos os gêneros e de todos os formatos, para quem os anúncios mais pomposos são apenas os limites intransponíveis da imortalidade e que passam desprezados das estantes da livraria para as amuradas rio Sena. Létis profundo de onde eles contemplam, cobrindo-se de mofo, o fim inevitável de seu voo presunçoso. Folheei aí as páginas acetinadas de meus in-oitavos e de cinco ou. seis de meus amigos.

Teodoro suspirou, mas não era por ver as obras de meu espírito expostas às chuvas, das quais o obsequioso toldo impermeável as protege deficientemente. "

Por onde andará a idade de ouro dos vendedores de alfarrábios ao ar livre? Foi aqui, todavia, que meu ilustre amigo Barbier reuniu tantos tesouros que conseguiu compor uma bibliografia especial de alguns milhares de artigos. Era aqui que se prolongavam, durante horas  e horas, os eruditos e frutuosos passeios do sábio Monmerqué quando se dirigia para o Foro e do sábio Labouderie ao sair da metrópole. Era aqui que o verdadeiro Boulard retirava todos os dias um metro de raridades, medido pelo seu metro de madeira, para o qual as suas seis essa pletóricas de volumes não tinham lugar disponível. Oh! quantas vezes ele desejou possuir, em semelhante transe, o modesto angulus de Horácio, ou a cápsula elástica daquele pavilhão de fadas que seria capaz de cobrir o" exército de Xerxes e que se podia levar no cinto tão comodamente quanto a bainha de punhais do avó de Jeannot! Agora, que miséria! Vêem-se apenas os sobejos insípidos desta literatura moderna que nunca será uma literatura antiga e cuja vida se evapora em vinte e quatro horas, como acontecia com as das moscas do rio Hiparus; literatura realmente bem digna da tinta de carvão e do papel de papas que alguns tipógrafos envergonhados, quase tão tolos quanto seus livros, lhes concedem pesarosamente! E dar o nome de livros a esses trapos garatujados de preto que quase não mudaram de destino ao deixar o saco do apanhador de papéis, é profaná-lo! Os cais não passam agora do necrotério das celebridades contemporâneas!

Tornou a suspirar e suspirei também, mas não pelo mesmo motivo.

Tinha pressa em fazê-lo andar, porque sua exacerbação, que aumentava a cada instante, parecia ameaçá-lo de um acesso fatal. Aquele devia ser um dia nefasto, uma vez que tudo contribuía para agravar sua melancolia.

"Eis, disse ele caminhando, a famosa fachada de Ladvoet, o Galiot do campo das letras abastardadas do século XIX, livreiro industrioso e liberal que merecia nascer numa idade melhor, mas cuja. atividade lamentável multiplicou cruelmente os livros novos para eterno prejuízo dos velhos livros; responsável jamais digno de perdão pela fabricação de papel de algodão, pela grafia ignorante é pelas vinhetas rebuscadas, autor fatal da prosa acadêmica e da poesia em voga; como se a França tivesse poesia depois de Ronsard e prosa depois de. Montaigne! Esse palácio de bibliópolo é o cavalo de Tróia que trouxe todos os raptores do palácio, a caixa de Pandora que deu passagem a todos os males da terra! Prefiro os canibais. Escreveria um capítulo para o seu livro, mas não o tornaria a ver!"

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Teodoro suspirava cada vez mais, ia de mal a pior.

Chegamos assim à rua das Crianças Boas, ao rico bazar literário das vendas públicas de Silvestre, local honrado pelos sábios onde se sucederam, num quarto de século, mais inapreciáveis raridades do que a biblioteca dos Ptolomeus, que talvez não tenha sido queimada por Omar, malgrado o que dizem os nossos caducos historiadores, jamais encerrou. Nunca eu vira expostos tantos volumes magníficos.

— Infelizes aqueles que os vendem! — disse eu a Teodoro.

— Morreram — respondeu ele, ou morrerão por causa disso:

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— Deus que me perdoe! bom Teodoro, — disse o honesto Sr. Silvestre. — O senhor se atrasou um dia. A última venda foi ontem. Os livros que vê estão vendidos e esperam pelos carregadores.

Teodoro cambaleou e empalideceu. Sua fronte ficou da cor de um marroquim de limão um tanto gasto. O golpe que o atingia repercutiu no amargo de meu coração.

— Está perfeitamente certo? — disse ele com ar sucumbido. — Reconheço, nessa notícia horrorosa, minha infelicidade costumeira! Apesar disso, a quem pertencem essas pérolas, esses diamantes, essas riquezas fantásticas de que se vangloriaria a biblioteca dos de Thou e dos Grolier?

— Como de costume, cavalheiro, — replicou o Sr. Silvestre — estes excelentes clássicos de edição original, estes velhos e prefeitos exemplares autografados por eruditos famosos, estas atraentes raridades filológicas desconhecidas pela Academia e pela Universidade, cabiam de direito a Sir Richard Heber. É o quinhão do leão inglês ao qual cedemos de boa vontade o grego e o latim que deixamos de saber, estas belas coleções de história natural, estas obras primas de método e de iconografia pertencem ao príncipe***, cujos pendores para o estudo contribuem para enobrecer ainda mais, com o emprego que lhe dá, uma nobre e imensa fortuna. Estes mistérios medievais, estas moralidades fênix cujo menecma não existe em parte alguma, estes interessantes ensaios dramáticos de nossos antepassados vão aumentar a biblioteca-modelo do Sr. de Solème. Essas facécias, tão esbeltas e elegantes, tão miúdas, tão bem conservadas, constituem o lote de seu amável e engenhoso amigo, Sr. Aimé-Martin. Não preciso dizer-lhe a quem pertencem essas encadernações frescas e brilhantes, com três ordens de frisos, orlas amplas, pomposas dimensões. É o Shakespeare da pequena propriedade, o Corneille do melodrama, o intérprete hábil e muitas vezes eloquente das paixões e das virtudes do povo que, após tê-las chasqueado um pouco pela manhã, venderas à noite a peso de ouro, não sem rosnar entre os dentes, como um javali mortalmente ferido, e sem volver para os competidores seus olhos trágicos sombreados por negras sobrancelhas.

Teodoro deixara de ouvir. Acabava de apanhar um volume de aparência bastante boa, ao qual se aprestara em aplicar seu elzevirômetro, isto é, o meio pé subdividido quase ao infinito pelo qual ele avaliava o preço e o mérito intrínseco de seus livros. Dez vezes aproximou-o do livro maldito. Dez vezes conferiu o cálculo acabrunhador, murmurou algumas palavras que não compreendi, tornou a mudar de cor, e desfaleceu em meus braços. Tive muita dificuldade em levá-lo até o primeiro fiacre que apareceu.

Minha insistência para lhe arrancar o segredo de sua dor súbita, durante muito tempo não obteve resultado. Ele não falava. Minhas palavras não conseguiam alcançá-lo. É o tifo, pensei, é o paroxismo do tifo.

Apertei-o em meus braços. Continuei a interrogá-lo. Pare-ceu ceder a um impulso de expansão.

— Está vendo em mim — disse-me — o mais infeliz dos homens. Aquele volume é o Virgílio de 1676, de grande tamanho, cujo exemplar gigante eu pensava possuir. E ele é maior que o meu um terço de linha. Espíritos inimigos ou prevenidos poderiam mesmo encontrar uma diferença de meia linha. Um terço de linha, Deus todo-poderoso!

Fiquei fulminado. Compreendi que ele estava delirando.

— Um terço de linha! — repetiu ameaçando o céu com um punho furioso, como Ajax ou Lapanéu.

Todo o corpo lhe tremia.

Caiu a pouco e pouco em profunda prostração. O pobre homem vivia somente para sofrer. Repetia, apenas, de vez em quando: "Um terço de linha"! roendo as unhas. E eu repetia baixinho: "Maldito sejam os livros e o tifo!"

— Tranquilize-se, meu amigo — sussurrava eu carinhosamente a seus ouvidos, todas as vezes que a crise se renovava. Um terço de linha não é grande coisa nos negócios mais delicados deste mundo.

 — Não é grande coisa! — exclamava ele. — Um terço de linha no Virgílio de 1670. Foi um terço de linha que aumentou em seis luíses o preço do Homero de Nerli, no estabelecimento do Sr. de Cotte; um terço de linha! Ah! não daria o senhor importância ao terço de linha do furador que lhe estivesse atravessando o coração?

Sua fisionomia transtornou-se inteiramente, seus braços se inteiriçaram, suas pernas foram tornadas de uma câimbra de garras de ferro. O tifo visivelmente invadia-lhe as extremidades. Eu não quereria ser obrigado a aumentar um terço de linha o curto caminho que nos separava de sua casa.

Finalmente, chegamos.

— Um terço de linha! — disse ele ao porteiro.

— Um terço de linha! — disse à cozinheira que abriu a porta.

— Um terço de linha! — disse à sua mulher inundando-a com suas lágrimas.

— Meu periquito fugiu — disse sua filhinha que chorava tanto quanto ele.

— Por que deixaram a gaiola aberta? — perguntou Teodoro. — Um terço  de linha!

— O povo está se revoltando no Sul e na rua do Mostrador — disse a velha tia que estava lendo o jornal da tarde.

— Em que anda o povo se metendo? — retrucou Teodoro Um terço de linha!

— Sua herdade da Beatice pegou fogo, — disse-lhe o criado ajudando-o a deitar-se.

— Vai ser preciso reconstruí-la, — retrucou Teodoro — se a propriedade merecer isso. Um terço de linha!

— O senhor acha que isso tem gravidade? — perguntou-me a ama.

— Então não leu, boa mulher, a Revista de Ciências Médicas? Que está esperando para ir buscar um padre?

Felizmente o pároco entrara no mesmo instante para conversar conforme o costume, sobre mil lindas frioleiras literárias e bibliográficas das quais seu breviário nunca o conseguira afastar inteiramente, mas não pensou mais nisso, depois que apalpou o pulso de Teodoro.

— Ai de nós! meu filho, — disse-lhe — a vida do homem é somente uma passagem e o próprio mundo não repousa em alicerces eternos. Ele deve acabar como tudo que começou.

— Terá o senhor lido a esse respeito — respondeu Teodoro — o tratado de sua origem e antiguidade?

— Aprendi o que sei no Gêneses — respondeu o respeitável sacerdote —; mas ouvi dizer que um sofista do século passado, chamado Sr. de Mirabeau, escreveu um livro a esse respeito.

Sub judice lis est, — interrompeu subitamente Teodoro — provei em meus Stromatos que as duas primeiras partes do mundo eram desse lamentável pedante de Mirabeau e a terceira do abade Le Máscrier.

— Ah! meu Deus, — interrompeu a tia idosa levantando os óculos — quem foi então que fez a América?

— Não é disso que se está tratando — continuou o sacerdote. — Crê na Trindade?

— Como não acreditaria eu no famoso volume De Trinitate de Servet,  disse Teodoro soerguendo-se sobre um travesseiro — uma vez que vi cederem ipsisimis oculais, pela módica importância de duzentos e quinze francos, no estabelecimento do Sr. Mac Carthy, um exemplar que custara a este último setecentas libras no leilão de La Vallière?!

— Não estamos cogitando disso —, exclamou o apóstolo um pouco desconcertado. — Pergunto-lhe meu filho, o que pensa sobre a divindade de Jesus Cristo.

— Bem, bem, — disse Teodoro —, é questão apenas de nos entendermos. Afirmarei perante e contra todos que o Toldos jeschu, onde esse gracejador de mau gosto chamado Voltaire re-colheu tantas histórias tolas dignas das Mil e uma noites, não passa de uma perversa inépcia rabínica, indigna de figurar na biblioteca de um sábio.

— A menos que algum dia se encontre —, prosseguiu Teodoro —, o exemplar in carta maxima, ao qual há referência, se não me falha a memória, na mochinifada inédita de David Clemente.

Dessa vez o cura gemeu, muito audivelmente, levantou-se muito comovido de sua cadeira e inclinou-se sobre Teodoro para fazê-lo compreender claramente, sem cerimônias e sem equívoco, que ele estava acometido em último grau pelo tifo dos bibliômanos, a que se refere a Revista de Ciências Médicas, e que só lhe restava cuidar de sua salvação.

Teodoro não se desligara de sua vida com essa negativa impertinente dos incrédulos que é a ciência dos tolos, mas o querido herdem levara longe demais em seus livros o vão estudo da letra, para ter tempo para cuidar do espírito. De boa saúde, uma doutrina lhe teria causado febre e um dogma convulsões tetânicas. Em moral teológica ele desceria o pavilhão diante de um saint-simoniano. Voltou-se para a parede.

Tão prolongado foi o lapso de tempo que ele levou sem falar que nós o teríamos julgado morto se aproximando-me dele, eu não o ouvisse murmurar em voz abafada:

— Um terço de linha! Deus de justiça e de bondade! Mas onde me restituireis esse terço de linha, e até que ponto vossa onipotência poderá reparar a falta irreparável desse encadernador?

Um bibliófilo seu amigo chegou um instante depois. Disseram-lhe que Teodoro estava agonizante, que delirava a ponto de julgar que o abade Le Maserier fizera a terceira parte do mundo e que havia um quarto de hora que perdera a palavra.

— Vou verificar isso — replicou o amador. — Por que falha de paginação se reconhece a boa edição de César, elzevir de 1635? — perguntou a Teodoro.

— 153 em vez de 149.

— Muito bem. E do Terêncio do mesmo ano?

— 108 em vez de 104.

— Diabo! — disse eu — os elzevir estavam sem sorte naquele ano quanto aos números. Fizeram muito bem em não imprimir nessa data seus logaritmos.

— Ótimo — continuou o amigo de Teodoro. — Se eu houvesse acreditado nas pessoas presentes, julgaria que estavas a um dedo da morte.

— A um terço de linha —, respondeu Teodoro cuja voz se extinguiu gradativamente.

— Conheço teia história: ela, porém, nada representa ao lado da minha. Imagina que perdi, há oito dias, num desses leilões bastardos e anônimos de que só temos notícia pelo anúncio da porta um Bocácio de 1527, tão magnífico quanto o teu, encadernado em pergaminho de Veneza com os aa pontudos, marcas por toda a parte e nenhuma folha substituída.

Todas as faculdades de Teodoro convergiam para um único pensamento.

—  Estás bem certo que os aa eram pontudos?

— Como o ferro que guarnece a alabarda de um lanceiro.

— Nesse caso não há a menor dúvida de que se tratava da própria vintisettine!

— Ela própria. Naquele dia tínhamos um belo jantar, mulheres encantadoras, ostras verdes, convivas espirituosos e champanha. Cheguei três minutos depois da adjudicação.

— Cavalheiro!, — bradou Teodoro, furioso. — Quando a vintisettine está à venda, não se janta!

Este derradeiro esforço exauriu o resto de vida que ainda o animava e que o interesse dessa conversação alimentava como o fole que sopra numa chama agonizante. Todavia, seus lábios ainda balbuciaram:

— Um terço de linha!

Foram suas últimas palavras.

Depois que perdemos a esperança de conservá-lo, empurramos sua cama para junto de sua biblioteca, de onde descemos um a um todos os Volumes que seus olhos pareciam chamar, conservando diante deles mais demoradamente aquelas obras que julgávamos mais próprias para confortá-lo. Morreu à meia-noite, entre um Deseil e um Pasdel, apertando amorosamente com ambas as mãos um Thouvenin.

No dia seguinte acompanhamos seu enterramento, à frente de numeroso cortejo de marroquineiros lacrimosos, e fomos cimentar sobre seu túmulo uma lápide com a seguinte inscrição que ele próprio parodiara do epitáfio de Franklin:

AQUI JAZ
EM SUA ENCADERNAÇÃO DE MADEIRA
UM EXEMPLAR IN-FÓLIO
DA MELHOR EDIÇÃO
DO HOMEM
ESCRITA NUMA LÍNGUA DA IDADE DO OURO
QUE O MUNDO NÃO COMPREENDE MAIS.
AGORA É
UM LIVRO
ESTRAGADO
MANCHADO
TRUNCADO
COM A FRENTE INCOMPLETA
ROÍDO PELOS VERMES
E MUITO DANIFICADO PELA PODRIDÃO
NÃO SE OUSA ESPERAR PARA ELE
A HOMENAGEM TARDIA
E INÚTIL
DA REIMPRESSÃO.


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Tradução de Frederico dos Reys Coutinho (1944)
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

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