A OBRA-PRIMA DESCONHECIDA
A UM LORD
1845
I – GILLETTE
Cerca do fim do ano de 1612, numa
fria manhã de dezembro, um rapaz cuja roupa parecia muito fina passeava em
frente à porta de uma casa da rua dos Agostinhos maiores, em Paris. Após ter
andado bastante tempo por essa rua com a irresolução de um apaixonado que não
ousa apresentar-se em casa de sua primeira amante, por mais fácil que ela seja,
acabou transpondo o limiar daquela porta e perguntou se mestre François Porbus
estava em casa. A resposta afirmativa que lhe deu uma velha entretida em varrer
uma sala baixa, o rapaz subiu lentamente os degraus, parando em cada um deles,
como um cortesão novato, inquieto com a recepção que o rei lhe vai dispensar.
Quando alcançou a extremidade da escada em caracol, ficou um instante no
patamar, indeciso em tomar a aldraba grotesca que adornava a porta da oficina
onde sem dúvida trabalhava o pintor de Henrique IV, que Maria de Médicis
abandonara por Rubens. O rapaz experimentava essa sensação profunda que deve de
ter feito vibrar o coração dos grandes artistas quando, no apogeu da mocidade e
de seu amor à arte; aproximaram-se de um homem de gênio ou de alguma obra-prima.
Em todos os sentimentos humanos existe uma flor primitiva, filha de um nobre
entusiasmo que vai sempre decrescendo até que a felicidade se reduza a uma
lembrança e a glória a uma mentira. Entre essas emoções delicadas nada se
parece tanto com o amor como a jovem paixão de um artista que começa o suplício
delicioso de seu destino de glória e de infortúnio, paixão toda de audácia e de
timidez, de convicções indecisas e de desânimos certos. Faltará sempre uma
corda no coração, não sei que pincelada, um sentimento na obra, uma certa
expressão de poesia, àquele que, escasso de dinheiro e adolescente de gênio,
não tiver palpitado violentamente ao se apresentar perante um mestre. Se alguns
fanfarrões cheios de si acreditam prematuramente no futuro, só os tolos os
podem julgar inteligentes. Considerando-se isso, o jovem desconhecido parecia
possuir um mérito real, caso o talento deva ser avaliado por essa timidez
primeira, por esse pudor indefinível que as criaturas destinadas à glória sabem
perder no exercício de sua arte, exatamente corno as mulheres belas perdem a
sua no jogo da faceirice. O hábito do triunfo faz minguar a dúvida e o pudor
talvez seja uma dúvida.
Acabrunhado pela miséria e surpreso
naquele instante com sua ousadia, o pobre neófito não teria entrado em casa do
pintor a quem devemos o admirável retrato de Henrique IV sem um socorro
extraordinário que o acaso lhe enviou. Aconteceu subir a escada um ancião. Pela
extravagância de seu traje, pela magnificência de seu peitilho de rendas, pela
segurança característica de seu passo, o rapaz adivinhou nessa personagem o protetor
ou o amigo do pintor; recuou no patamar para lhe dar, passagem, e examinou-o
cheio de curiosidade, esperando nele encontrar a boa índole de um artista ou o
caráter obsequioso das pessoas que amam as artes; distinguiu, porém, qualquer
coisa de diabólico naquela figura, e principalmente esse imponderável de que os
artistas são ávidos. Imagine-se uma testa calva, arqueada, proeminente, caindo
em protuberância sobre um narizinho esborrachado com a ponta arrebitada, tal o
de Rabelais ou o de Sócrates; uma boca risonha e enrugada, um queixo curto,
orgulhosamente levantado, adornado com uma barba grisalha cortada em ponta,
olhos verde-mar, aparentemente embaciados pela idade, mas que, pelo contraste
com a alvura nacarina em que a pupila flutuava, deviam às vezes dardejar
olhares magnéticos no auge da cólera ou do entusiasmo. O rosto estava, aliás,
singularmente marcado pelas fadigas da idade e mais ainda por esses pensamentos
que tanto trabalham a alma como o corpo. Os olhos não tinham mais cílios e a
custo se viam alguns vestígios de sobrancelhas sobre suas arcadas salientes.
Ponha-se essa cabeça num corpo franzino e débil, rodeie-se de rendas de alvura
cintilante e trabalhadas tal uma faca de peixe, jogue-se sobre o gibão negro do
ancião uma pesada corrente de ouro e ter-se-á uma imagem imperfeita da
personagem a quem a claridade escassa da escada emprestava uma tonalidade
fantástica. Dir-se-ia uma tela de Rembrandt movendo-se silenciosamente sem
moldura na atmosfera escura que caracteriza esse grande pintor. O ancião volveu
para o rapaz um olhar cheio de sagacidade, bateu três vezes à porta, e disse a
um valetudinário, de quarenta anos aproximadamente, que veio abrir:
— Bom dia, mestre.
Porbus inclinou-se respeitosamente;
deixou entrar o rapaz, julgando que tivesse vindo com o ancião, e não lhe deu
maior atenção, visto permanecer o neófito sob o encantamento que os pintores
inatos devem sentir à vista da primeira oficina de artista que se lhe depara e
onde se revelam alguns dos processos materiais da arte. Uma clarabóia aberta na
abóbada iluminava a oficina de mestre Porbus. Concentrada numa tela pendurada
no cavalete, e que ainda continha apenas três ou quatro traços brancos, a
claridade não alcançava os trevosos recessos dos ângulos daquele vasto
aposento. Alguns reflexos perdidos acendiam porém na sombra pardacenta uma
palheta prateada no ventre de uma couraça de reitre suspensa à parede,
listravam com um súbito sulco luminoso a cornija esculpida e lustrosa de um
aparador antigo coberto de baixelas originais, ou salpicavam de pontos cintilantes
a trama granulosa de umas poucas cortinas antigas de brocado de ouro de grandes
pregas marcadas, ali deixadas por modelos. Alguns esfolados de gesso,
fragmentos e torsos de deusas antigas, amorosamente polidas pelos beijos dos
séculos, amontoavam-se sobre as mesinhas e os consolos. Incontáveis esboços,
estudos a três "crayons", á sanguínea ou à pena; cobriam as paredes
até o teto. Caixas de tintas, garrafas de azeite e de essência, escabelos
derrubados deixavam apenas uma passagem estreita para chegar-se até debaixo da
auréola que a alta clarabóia projetava e cujos raios caíam em cheio sobre o
rosto pálido de Porbus e o crânio ebúrneo do estranho homem. A atenção do rapaz
depressa concentrou-se exclusivamente num quadro que, naquela época de
desordens e de revoluções, já se tornara célebre e que era visitado por alguns desses
obstinados a quem se deve a conservação do fogo sagrado durante os maus dias.
Essa bela página representava uma Maria
Egipcíaca preparando-se para pagar a passagem do barco. Essa obra-prima,
destinada a Maria de Médicis, foi por ela vendida em seus dias de miséria.
— Tua santa me agrada, — disse o
ancião a Porbus, — e eu te pagaria mais dez escudos de ouro do que a rainha te
oferece; mas caminhar sobre suas pisadas... diabo!
— Acha-a boa?
— Ah! Ah! disse o velho, boa?...
sim e não. Tua boa mulher não está mal. proporcionada, mas não vive. Vocês
outros julgam ter feito tudo quando desenharam corretamente uma figura e
puseram cada coisa em seu lugar conforme as leis da anatomia! Vocês colorem
esse lineamento com um matiz de carne antecipadamente preparado na palheta,
tomando o cuidado de conservarem um dos lados mais escuro do que outro, e, pelo
fato de olharem de vez em quando para uma mulher nua que se mantém de pé sobre
uma mesa, julgam ter copiado a natureza, imaginam-se pintores e cuidam ter
furtado o segredo de Deus!... Oral Para ser um grande poeta não basta possuir a
fundo a sintaxe e não cometer erros de linguagem! Olha para a tua santa,
Porbus! À primeira vista a parece admirável; mas, quando a olhamos uma segunda
vez, verificamos que está colada ao fundo da tela e que não seria possível
rodear-lhe o corpo. É um perfil que possui apenas uma face, é uma figura
recortada, uma imagem que não poderia voltar-se nem mudar de posição: Não sinto
atmosfera entre esse braço e o campo do quadro; faltam o espaço e a profundidade..
Não obstante, tudo está bem na perspectiva, e a gradação aérea perfeitamente
observada; apesar, porém, de esforços tão meritórios, eu não poderei acreditar
que este belo corpo esteja animado pelo tépido alento da vida. Parece-me que,
se levasse minha mão até esse pescoço de um roliço tão firme, achá-lo-ia frio
tal o mármore! Não, meu amigo, o sangue não corre sob essa pele de marfim, a
existência não intumesce com seu orvalho de púrpura as veias e as fibrilas que
se entrelaçam em redezinhas sob a transparência ambarina das têmporas e do
busto. Este lugar palpita, mas aquele outro está imóvel, a vida e a morte lutam
em cada pormenor; aqui é uma mulher; ali uma estátua; mais além um cadáver. Tua
criação está incompleta. Só pudeste insuflar em tua obra querida uma parcela de
tua alma. O facho de Prometeu apagou-sé mais de uma vez em tuas mãos, e muitos
pontos de teu quadro não foram tocados pela chama celeste.
— Mas por quê, querido mestre? —
disse respeitosamente Porbus ao ancião, enquanto o rapaz continha a custo uma
forte vontade de bater-lhe.
— Ah! eis aí, — respondeu o velhote.
— Pairaste indeciso entre os dois sistemas, entre o desenho e a cor. Entre a
fleuma minuciosa, a rigidez exata dos velhos mestres alemães e o ardor
deslumbrante, a abundância feliz dos pintores italianos. Quiseste imitar simultaneamente
Hans Holbein e Ticiano, Alberto Dürer e Paulo Veronese. Sem dúvida era uma
ambição magnífica! Mas que aconteceu? Não tiveste nem o encanto severo da secura,
nem as magias ilusórias dó claro-escuro. Neste ponto, a exemplo de um bronze
era fusão que faz rachar seu molde por demais frágil, a rica e loura cor de
Ticiano fez estalar o contorno magro de Alberto Dürer onde o havias moldado.
Aliás, o traçado resistiu e conteve os magníficos excessos da palheta veneziana.
Tua figura não está nem perfeitamente desenhada, nem perfeitamente pratada, e
por toda parte exibe os sinais dessa infeliz indecisão. Se não te sentias
bastante forte para fundir juntos, no fogo de teu gênio, as duas escolas
rivais, melhor seria optar francamente entre uma e outra, a fim de obter a
unidade que simula uma das condições da vida. Só és verdadeiro nos centros,
teus contornos são falsos, não se mesclam e não prometem coisa alguma por trás
de si. Aqui há verdade, — disse o ancião apontando para o peito da santa — aqui
também — continuou indicando o ponto onde, no quadro, o ombro terminava. — Mas
ali, — disse, voltando para o meio do pescoço, tudo é falso. Não analisemos
nada, seria provocar teu, desespero.
O ancião sentou-se no escabelo,
segurou a cabeça entre as mãos e permaneceu silencioso.
— Mestre, — Porbus —, mas eu
estudei bastante ao natural esse pescoço; para desgraça nossa, porém, há
efeitos verdadeiros em a natureza que na tela deixam de ser verossímeis...
— A missão da arte não é copiar a
natureza, mas exprimi-la! Não és um vil copista, mas um poeta! — exclamou
vivamente o velho interrompendo Porbus com um gesto despótico. — De outro modo,
um escultor se desincumbiria de todos os seus trabalhos moldando uma mulher!
Pois bem, experimenta moldar a mão de tua amante e colocá-la diante de hás de
achá-la um cadáver horroroso sem a menor parecença e serás forçado a procurar o
cinzel do homem que, sem a copiar rigorosamente, exprimirá seu movimento e sua
vida. Precisamos apreender o espírito, a alma, a fisionomia dos seres e das coisas.
Os efeitos! os efeitos! mas eles são os acidentes da vida, e não a vida. Uma
mão, uma vez que tomei esse exemplo, uma mão não se relaciona apenas ao corpo,
mas expressa e continua um pensamento que é preciso apreender e tornar manifesto.
Nem o pintor, nem o poeta, nem o escultor devem separar o efeito da causa,
porque eles são irremediavelmente inseparáveis. Nisso consiste a verdadeira
luta! Muitos pintores triunfam instintivamente sem conhecer esse tema da arte.
Você desenha uma mulher, mas não a vê! Não é assim que se consegue forçar o
arcano da natureza. Sua mão reproduz, sem que você pense nisso, o modelo que
você copiou na oficina de seu mestre. Você não penetra suficientemente na intimidade
da forma, não a persegue com bastante amor e perseverança em seus rodeios e em
suas fugas. A beleza é uma coisa severa e difícil que não se deixa alcançar
assim, é preciso aguardar suas horas, vigiá-la, acometê-la e enlaçá-la
fortemente para forçá-la a entregar-se. A forma é um Proteu muito mais difícil
de apreender e mais fértil em subterfúgios que o Proteu da fábula; somente
depois de prolongados combates é que podemos forçá-la a se apresentar sob seu
verdadeiro aspecto. Vocês outros contentam-se com a primeira aparição que ela
lhes concede ou quando muito com a segunda e a terceira; não é assim que
procedem os lutadores vitoriosos! Esses pintores invictos não se deixam iludir
por Vidas essas escapatórias, perseveram até que a natureza se veja reduzida a
se exibir inteiramente nua e em seu verdadeiro espírito. Assim agiu Rafael, —
disse o ancião tirando o gorro de veludo negro em sinal do respeito que o rei
da arte lhe inspirava; — sua grande superioridade provém do significado íntimo
que, nele, parece querer despedaçar a forma. Em suas figuras a forma é o que é
em nós, um recurso para a comunicação de ideias, de sensações, uma poesia
imensa. Mia a figura é um mundo, um retrato cujo modelo surgiu numa visão
sublime, banhado de luz, apontado por uma voz interior, desnudado por um dedo
celeste que indicou, no passado de toda uma existência, as fontes da expressão.
Vocês fazem para as suas mulheres belos trajes de carne, belo ornatos de
cabelos, mas onde o sangue que engendra a calma ou a paixão e que causa efeitos
característicos? Tua santa é uma mulher morena, mas isto, meu pobre Porbus, é
de uma loura! Por isso as suas figuras são uns pálidos fantasmas coloridos que
vocês fazem desfilar perante nossos olhos e a que chamam pintura e arte! Pelo
fato de terem feito alguma coisa que lembra mais uma mulher que uma casa pensam
ter alcançado o objetivo. E, todos vaidosos de não serem mais obrigados a
escrever ao lado de destas figuras currus
venustos ou pulcher homo, Como os
primeiros pintores, imaginam-se uns artistas maravilhosos! Ah! ah! ainda não é
assim,, meus bons companheiros; precisarão gastar muitos lápis, cobrir muitas
telas antes de consegui-lo! Sem dúvida que uma mulher tem um determinado porte
de cabeça, segura sua saia assim, seus olhos enlanguescem e fundem-se com esse
ar de doçura resignada. A sombra palpitante dos cílios paira assim sobre as
faces! É isso, e não é isso. Que está faltando? um nada, mas esse nada é tudo.
Você tem a aparência da vida, mas não exprime seu excesso que transborda; esse
algo de indefinível que talvez seja a alma e que paira nebulosamente sobre o invólucro;
essa flor de vida, enfim, que Ticiano e Rafael surpreenderam. Partindo do ponto
extremo a que você chegou, talvez se fizesse excelente pintura; mas você
cansa-se depressa de mais. O vulgo admira e o verdadeiro conhecedor sorri. — Ó
Mabuse, ó meu mestre, acrescentou a singular personagem, és um ladrão, levaste
a vida contigo! — Feita essa restrição, — continuou — este quadro vale mais que
as pinturas desse ignorantão de Rubens com suas montanhas de carnes flamengas
salpicadas de vermelhão, suas catadupas de cabeleiras ruivas e sua matinada de cores.
Pelo menos temos aqui cor, sentimento e desenho, as três partes essenciais da
arte.
— Mas esta santa é sublime,
velhote! — exclamou com voz forte o rapaz despertando de um devaneio profundo.
— Estas duas figuras. a da santa e a do barqueiro, têm uma finura de intenção
que os pintores italianos ignoram; não conheço um só eles que tivesse criado a
indecisão do barqueiro.
— Esse malandrinho está com o
senhor? — perguntou Porbus ao ancião.
— Ah! mestre, perdoe meu
atrevimento — respondeu o neófito corando. — Sou desconhecido, garatujador de
instinto e cheguei faz pouco a esta cidade, fonte de toda a ciência.
— A obra! — disse-lhe Porbus,
dando-lhe um lápis vermelho e uma folha de papel.
O desconhecido copiou rapidamente a
Maria em esboço.
— Oh! oh! — exclamou o velho. — Seu
nome?
— O rapaz escreveu embaixo: Nicolau Poussin:
— Não está mau para um
principiante, — disse a estranha personagem que discorria tão loucamente. —
Vejo que se pode falar sobre pintura em tua presença. Não te censuro por teres
admirado a santa de Porbus. Para toda a gente ela é uma obra-prima e somente os
iniciados nos mais profundos arcanos da arte podem descobrir quais os seus
defeitos. Mas, uma vez que és digno da lição e capaz de compreender, vou-te
fazer ver quão pouca coisa era necessária para completar esta obra. Sê todo
olhar e todo atenção, porque talvez jamais voltes a encontrar uma oportunidade
igual de te instruíres. — Tua palheta, Porbus! Porbus buscar uma palheta e
pincéis. O velhote arregaçou as mangas com um arrebatamento convulsivo, passou
o polegar na palheta de cores variegadas que Porbus lhe estendia, arrancou-lhe
das mãos antes que lhe tomou um punhado de pincéis de todos os tamanhos, e sua
barba talhada em ponta agitou-se de súbito em esforços ameaçadores que
exprimiam o prurido de uma fantasia amorosa. Enquanto empastava de tinta seu
pincel, resmungava entre os dentes:
— Eis umas cores boas para atirar
pela janela com a pessoa que as preparou, são de uma crueza e de uma falsidade
revoltantes! Como pintar com isto?
Depois molhava com uma vivacidade
febril a ponta do pincel nas diversas porções de cores, cuja escala ele
percorria às vezes inteiramente, com rapidez superior à de um organista de
catedral quando percorre o campo de seu techado em O Filii da Páscea.
Porbus e Poussin conservavam-se
imóveis, 9da um de um lado do quadro,imersos na contemplação mais veemente.
— Estás vendo, rapaz, — dizia o
velho sem se voltar. — Estás vendo como, graças a três ou quatro toques e a um
pequeno "glacis" azulado, podia-se fazer circular o ar ao redor da
cabeça dessa pobre santa, que devia sufocar e sentir-se presa dessa atmosfera
pesada! Olha como este traje agora ondula e como se compreende que a brisa o
levanta. Antes parecia um tecido engomado e preso por alfinetes. Repara como o
acetinado brilhante que acabo de colocar sobre o peito traduz bem a leveza
gorda de uma pele de rapariga e como a tonalidade mesclada de pardo avermelhado
e de ocre calcinado reaquece a gelidez cinzenta desta grande sombra onde o
sangue se coagula em vez de correr? Rapaz, rapaz, o que estou mostrando nenhum
mestre poderia te ensinar. Só Mabuse possuía o segredo de dar vida às figuras.
Mabuse teve apenas um discípulo, que sou eu..Eu não tive nenhum e estou velho! És
bastante inteligente para adivinhares o restante, pelo que te deixo entrever.
Enquanto falava, o estranho velho
tocava em todos os pontos do quadro: aqui duas pinceladas, ali somente uma, mas
sempre com tanta propriedade que parecia tratar-se de outro quadro, mas um
quadro embebido em luz. Trabalhava com um ardor tão apaixonado que o suor lhe
aljofrou a testa calva; operava tão ràpidamente, com pequenos movimentos tão
impacientes e convulsivos que, para o jovem Poussin, parecia haver no corpo da
extravagante personagem um demônio que se manifestava através de suas mãos
segurando-as fantàsticamente contra a vontade do homem. O brilho sobrenatural dos
olhos, as convulsões que pareciam o resultado de uma resistência davam a essa
ideia uma aparência de veracidade que devia, influir numa imaginação moça. O
velho prosseguia, dizendo:
— Ora! ora! ora! veja como se
amacia isto, rapaz! — Venham, meus pequenos toques, chamusquem-me este tom
glacial! Vamos! pom! pom! pom! — dizia ele reanimando os trechos onde
assinalara ausência de vida, fazendo desaparecer com algumas placas de cor as
diferenças de temperamento e restabelecendo a unidade de tom própria de uma,
egipcíaca ardente.
— Estás vendo, pequeno, a única
pincelada que vale é a última. Porbus deu cem pinceladas; a mim basta-me apenas
uma. Ninguém se incomoda com o que fica por baixo. Presta bastante atenção
nisto.
Aquele demônio parou, finalmente, e
voltando-se para Porbus e Poussin, mudos de admiração, disse-lhes:
— Isto ainda não vale a minha Bela Altercadora; contudo, poder-se-ia
subscrever uma obra assim. Sim, eu assinaria —, acrescentou levantando-se para
apanhar um espelho no qual a observou.
— Agora, vamos almoçar, — disse. —
Venham ambos a minha casa. Tenho presunto de fumeiro e bom vinho!... Ah! ah!
apesar desta época de desgraças, conversaremos sobre pintura! Somes de qualidade...
Eis um homenzinho — acrescentou batendo no timbro de Nicolau Poussin — que tem
facilidade.
Reparando, então, no triste
sobretudo do normando, tirou do cinto uma bolsa de couro, remexeu nela, apanhou
duas moedas de ouro e, mostrando-lhas:
— Compro teu desenho, — disse.
Segura, — disse Porbus a Poussin,
vendo-o estremecer e corar de vergonha porque esse jovem discípulo possuía o
orgulho do pobre. — Segura, porque ele tem em sua escarcela o resgate de dois
reis!
— Desceram todos os três do estúdio
e caminharam conversando sobre as artes até uma bela casa de madeira, situada
junto à ponte de São Miguel e cujos enfeites, a aldraba, as esquadrias das
janelas e os arabescos deixaram Poussin maravilhado. O futuro pintor
encontrou-se de súbito numa sala baixa, diante de um bom fogo, junto a uma mesa
coberta de iguarias apetitosas e, por uma felicidade incrível, em companhia de
dois grandes artistas cheios de simplicidade.
— Rapaz, — disse-lhe Porbus vendo-o
pasmado diante de um quadro — não olhe demais para essa pintura, porque você
ficaria desesperado.
Era o Adão que Mabuse pintou para sair da prisão onde seus credores o
mantiveram por tanto tempo. Aquela figura possuía, de fato, unia realidade tão
poderosa que Nicolau Poussin passou a compreender, a partir deste instante, o
sentido verdadeiro das confusas palavras proferidas pelo ancião. Este olhava o
quadro com ar satisfeito mas sem entusiasmo e parecia dizer: "Fiz coisa
melhor!"
— Existe vida aí, — disse — meu
pobre mestre ultrapassou-se nessa pintura; mas ainda falta um pouco de
veracidade no fundo do quadro. O homem está bem vivo, levanta-se e vai caminhar
a nosso encontro. Mas o ar, o céu, o vento que respiramos, vemos e sentimos,
não estão presentes. Finalmente temos aí apenas um homem! Ora, o único homem
que saiu diretamente das mãos de Deus devia possuir qualquer coisa de divino
que está faltando. O próprio Mabuse o dizia, com despeito, quando não estava
bêbedo.
Poussin olhava alternativamente
para o velho e para Porbus, cheio de inquieta curiosidade. Aproximou-se deste
último como que para lhe perguntar o nome do dono da casa; mas o pintor pôs um
dedo nos lábios com ar de mistério e o rapaz, vivamente interessado,
conservou-se silencioso, esperando que cedo ou tarde alguma palavra lhe
permitisse adivinhar o nome do ancião, cuja riqueza e dotes artísticos eram
suficientemente comprovados pelo respeito que Porbus lhe demonstrava e pelas maravilhas
reunidas naquela sala.
Poussin, ao ver sobre o escuro
apainelado de carvalho um magnífico retrato de mulher, exclamou:
— Que belo Giorgine!
— Não, — replicou o velho —; está
vendo uma das minhas primeiras garatujas...
— Cáspité! Então estou em casa do
deus da pintura! —disse ingenuamente Poussin.
O velho sorriu como um homem havia
muito tempo familiarizado com esse elogio.
— Mestre Frenhofer! — disse Porbus—
não poderia mandar buscar para mim um pouco de seu bom vinho do Reno!
— Duas pipas! — respondeu o velho.
— Uma em troca do prazer que tive esta manhã ao ver tua linda pecadora, e a
outra em sinal de amizade.
— Ah! se eu não estivesse sempre
adoentado, — respondeu Porbus — e se o senhor quisesse deixar-me ver a sua Bela Altereccdora, eu poderia fazer
algum quadro alto, largo e profundo, onde as figuras seriam do tamanho natural.
— Mostrar minha obra! — exclamou o
ancião todo comovido. — Não, não! ainda devo aperfeiçoá-la. Ontem, à tarde,
—disse ele, — julguei tê-la concluído. Seus olhos pareciam-me úmidos, sua carne
agitava-se. As tranças de seus cabelos mexiam. Ela respirava! Embora eu tenha
achado um meio de realizar sobre uma tela lisa o relevo as formas curvas da
natureza, esta manhã, à claridade do dia, reconheci meu engano. Ah! para chegar
a esse glorioso resultado estudei exaustivamente os grandes mestres do
colorido, analisei e levantei camada por camada os quadros de Ticiano, esse rei
da luz; a exemplo desse pintor soberano, esbocei meu retrato numa tonalidade
clara com uma massa branda e gorda, — porque a sombra não passa de um acidente.
Guarda isto, pequeno! Depois retornei a minha obra e, empregando meias tintas e
"glacis" cuja transparência eu diminuía progressivamente, dei o
máximo de vigor às sombras e até aos tons escuros mais recuados; porque as
sombras dos pintores comuns são de outra natureza que as de seus tons claros; é
madeira, é bronze, é tudo o que se queira, exceto carne na sombra. Sente-se
que, se a figura pintada por eles mudasse de posição, os lugares sombreados não
clareariam e não se tornariam luminosos. Evitei essa falha em que incorreram
muitos dos mais ilustres, e em meus quadros a alvura realça-se debaixo da
opacidade da sombra mais densa! Ao contrário de uma quantidade de ignorantes
que pensam desenhar com perfeição por traçarem uma linha cuidadosamente
aparada, não assinalei secamente as bordas externas de minha figura e fiz
sobressair até o mais insignificante pormenor anatômico, porque o corpo humano
não termina em linhas. Nisso os escultores podem aproximar-se mais da verdade
que nós outros. A natureza comporta uma série de formas curvas que se entrosam reciprocamente;
a rigor, o desenho não existe! — Não ria, rapaz! Por mais singular que lhe
pareça essa afirmativa, algum dia compreenderá seus fundamentos. — A linha é o
meio pelo qual o homem se inteira do efeito da luz sobre os objetos; mas não há
linhas em a natureza onde tudo é cheio; é modelando-se que se desenha, isto é,
que se destacam as coisas do meio onde estão; a distribuição da claridade
empresta apenas a aparência ao corpo! Por isso não fixei os lineamentos,
espalhei sobre os contornos uma nuvem de meias tintas louras e quentes que faz
com que não se saiba exatamente colocar o dedo nos lugares onde os contornos se
encontram com os fundos. De perto esse trabalho parece murcho e falto de
precisão; mas, a dois passos, tudo se reafirma, fixa-se e se destaca; o corpo gira,
as formas sobressaem, sente-se o ar circular em toda a volta. Contudo ainda não
estou satisfeito, tenho dúvidas. talvez fosse necessário não desenhar uma única
linha e fosse preferível atacar uma figura pelo meio, começando pelos relevos
mais iluminados e passando depois para as partes mais escuras. Não é assim que
procede o Sol, esse divino pintor do universo? Oh! ó natureza, natureza, quem
jamais te surpreendeu em tuas fugas! Escuta, o excesso de ciência, tal qual a
ignorância, desfecha numa negativa. Duvido de minha obra!
O velho fez uma pausa, depois
continuou:
— Faz dez anos, rapaz, que
trabalho; mas que são dez pequenos anos quando se trata de lutar com a
natureza? Ignoramos o tempo que o senhor Pigmalião levou para fazer a única
estátua que andou!
O velho caiu num devaneio profundo
e permaneceu com os olhos fixos, brincando maquinalmente com sua faca.
— Ei-lo em conversação com seu espírito! — disse Porbus em voz baixa.
A estas palavras Nicolau Poussin
sentiu-se sob o domínio de uma inexplicável curiosidade de artista. Aquele
ancião de olhos brancos, atento e pasmado, tornou-se para ele mais que um
homem, surgiu-lhe como um gênio fantasmagórico que vivesse numa esfera
desconhecida. Ele acordava-lhe na alma mil ideias confusas. O fenômeno moral
dessa espécie de fascinação não é mais suscetível de definição do que de ser
traduzida a emoção provocada ria alma do exilado por um cântico que lembra a
pátria. O desprezo que aquele ancião fingia manifestar pelas mais belas
tentativas da arte, suas riquezas, suas maneiras, a deferência que Porbus lhe
manifestava, aquela obra por tanto tempo mantida em segredo, obra de paciência,
obra de gênio sem dúvida, a julgar pela cabeça de Virgem que o jovem Poussin
admirara tão francamente e que, bela ainda, mesmo ao lado do Adão de Mabuse,
atestava a feitura imperial de um dos príncipes da arte, tudo no ancião
ultrapassava os limites da natureza humana: o que a opulenta imaginação de
Nicolau Poussin pôde apreender de claro e de perceptível ao deparar aquele ente
sobrenatural era o. uma imagem completa da natureza artística, dessa natureza
louca qual tantos poderes são confiados e que tantas vezes deles abusa,
conduzindo à fria razão, os burgueses e mesmo alguns amadores através de mil
estradas pedregosas onde, para nada existe enquanto que, brincalhona, que em suas
fantasias, essa rapariga de asas brancas nelas descobre epopeias, castelos, de
arte. Natureza escarninha e boa, fecunda e pobre! Destarte, para o entusiasta
Poussin o ancião tornara-se, em súbita transfiguração, a própria arte, a, arte
com seus segredos, seus arrebatamentos e seus devaneios.
— Sim, meu querido Porbus, —
continuou Frenhofer — faltou-me até o presente encontrar uma mulher
irrepreensível, um corpo cujos contornos sejam de beleza perfeita, em cuja carnação...
Mas onde vive — prosseguiu após uma pausa — essa Vênus dos antigos tão
insistentemente procurada, jamais achada e de quem deparamos apenas algumas
belezas esparsas? Oh! para ver um instante, uma vez semente, a natureza divina,
completa, o ideal enfim, eu daria toda a minha fortuna... Mas eu iria buscar-te
em teus limbos, beleza celestial! Qual Orfeu, desceria ao inferno da arte para
dele trazer a vida.
— Podemos partir — disse Porbus a
Poussin; — não nos está ouvindo mais nem mais nos vendo!
— Vamos a seu gabinete de trabalho
— propôs o rapaz maravilhado.
— Oh! o velho reitre soube
proteger-lhe a entrada. Seus tesouros estão por demais bem guardados para que
possamos alcançá-los. Não esperei pela sua proposta e pela sua veleidade para
tentar o assalto ao mistério.
— Então há um mistério?
— Sim — respondeu Porbus O velho
Frenhofer foi o único discípulo que Mabuse quis ter. Tornado seu amigo, seu
salvador, seu pai, Frenhofer sacrificou a maior parte de seus bens em
satisfazer as paixões de Mabuse; em troca, Mabuse legou-lhe o segredo do
relevo, o poder de emprestar às figuras essa vida extraordinária, essa flor de
natureza, nosso desespero eterno, cujo processo
ele possuía tão integralmente que, tendo um dia vendido e bebido o damasco
florido com que devia vestir-se à entrada de Carlos V, acompanhou seu senhor
com um traje de papel em que imitaria o damasco. O brilho particular do tecido
que Mabuse vestia surpreendeu o imperador que, querendo cumprimentar por isso o
protetor do velho bêbedo, descobriu a falsificação. Frenhofer é um homem
apaixonado por nossa arte, que vê mais alto e mais longe que os outros
pintores. Ele meditou profundamente sôbre as cores, sobre a verdade absoluta da
linha, mas, pelo excesso de pesquisa chegou a duvidar do próprio objeto dessas
pesquisas. Em seus momentos de desespero, afirma que o desenho não existe e que
só se podem representar com traços as figuras geométricas; o que ultrapassa a
verdade, uma vez que, com o risco e o preto, que não é uma cor, pede-se fazer
uma figura; o que prova que nossa arte, tal qual a natureza, compõe-se de uma
infinidade de elementos: o desenho fornece o esqueleto, a cor é a vida, mas a
vida sem o esqueleto é uma coisa mais incompleta que o esqueleto sem a vida.
Finalmente, há uma coisa mais verdadeira que tudo isto, é que a prática e a observação
são tudo no pintor, e que, se o raciocínio e a poesia brigam com os pincéis,
acaba-se na dúvida como o velhote que é tão louco quanto pintor. Pintor
sublime, ele teve a infelicidade de nascer rico, o que lhe permitiu divagar;
não o imite! Trabalhe! os pintores só devem meditar de pincéis em punho.
— Havemos de penetrar! — exclamou
Poussin, sem ouvir mais Porbus e não duvidando de mais nada.
Porbus sorriu do entusiasmo do
jovem desconhecido e afastou-se convidando-o a visitá-lo.
Nicolau Poussin voltou
vagarosamente para a rua da Harpa e ultrapassou, sem perceber, o modesto
albergue onde estava instalado. Subindo com rapidez inquieta sua miserável
escada, chegou a um quarto alto que ficava debaixo de um telhado de barrotes,
simples e leve coberta das casas da velha Paris. Junto à única e escura janela
desse quarto estava uma rapariga que, ao barulho da porta, levantou-se de
súbito num impulso de amor; tinha reconhecido o pintor pela maneira com que ele
manejara o trinco.
— Que teus? — disse-lhe ela.
— É... É... — exclamou ele sufocado
pelo prazer — que me senti pintor! Até agora tinha duvidado de mim, mas esta
manhã acreditei em mim mesmo! Posso ser um grande homem! Gillette, seremos
ricos, felizes! Há ouro nestes pincéis...
Mas subitamente se calou. Seu rosto
sério e vigoroso perdeu a expressão de alegria quando ele comparou a imensidade
de suas esperanças com a mediocridade de seus recursos. As paredes estavam
cobertas de simples papéis cheios de esboços a "cravou". Ele não
possuía quatro telas decentes. As cores eram então caríssimas e o pobre rapaz
via sua palheta quase nua. No meio dessa miséria, ele possuía e sentia
incríveis riquezas de coração e a pletora de um gênio devorador. Levado para
Paris por um fidalgo seu amigo ou talvez por seu próprio talento, havia
encontrado inopinadamente uma amante, uma dessas almas nobres e generosas, que
vão sofrer junto a um grande homem, partilham suas penas e procuram compreender
seus caprichos; fortes para a miséria e para o amor, como outras são intrépidas
para luxar e ostentar sua insensibilidade. O sorriso que percorria os lábios de
Gillette dourava aquela mansarda e rivalizava com o esplendor do céu. O Sol nem
sempre brilhava, ao passo que ela sempre estava presente, compenetrada de sua
paixão, presa a sua felicidade, a seu sofrimento, consolando o gênio que
transbordava no amor antes de se apoderar da arte.
— Ouve, Gillette, chega-te.
A obediente e alegre rapariga
saltou para os joelhos do pintor. Era toda a graciosidade, toda a beleza, linda
tal uma primavera, adornada de todas as riquezas femininas e iluminando-as com
o reflexo de uma bela alma.
— Oh! Deus, — exclamou ele — nunca
ousarei dizer-lhe...
— Um segredo? — retrucou ela. — Quero
sabê-lo.
Poussin ficou absorto.
— Fala.
— Gillette... pobre coração
amado!...
— Oh! queres alguma coisa de mim?
— Sim.
— Se desejas que eu volte a
posturar diante de ti como outro dia, — disse ela com um arzinho amuado — nunca
mais o farei, porque, nessas ocasiões, teus olhos não me dizem mais nada.
Deixas de pensar em mim e, contudo, olhas-me...
— Preferirias ver-me copiando outra
mulher?
— Talvez, se fosse muito feia.
— Pois bem, — disse Poussin com
seriedade — e se, para minha glória futura, se para me fazer um grande pintor,
fosse preciso que posturasses para outro?
— Podes experimentar-me, —
respondeu ela. — Bem sabes que não irei.
Poussin deixou pender a cabeça
sobre o peito como um homem que sucumbe a uma alegria ou a uma dor excessiva
para sua alma.
— Ouve, disse ela puxando Poussin
pela manga mas gibão gasto — disse-te, Nick, que daria minha vida por nunca te prometi renunciar; em vida, a meu
amor.
— Renunciar a teu amor? — exclamou
o jovem artista.
— Se eu me mostrasse assim a outro,
deixarias de me amar e eu própria me consideraria indigna de ti. Obedecer a
teus caprichos não é uma coisa simples e natural? Apesar de tudo, sinto-me
feliz e mesmo orgulhosa em fazer tua querida vontade, Mas para outro, deixa
disso!
— Perdoa, minha Gillette, — disse o
pintor atirando-se a seus joelhos. — Prefiro o amor à glória. Para mim, és mais
bela que a fortuna e às honrarias. Olha, atira fora meus pincéis, queima estes
esboços. Enganei-me. Minha vocação é amar-te. Não sou pintor, sou apaixonado.
Morram a arte e todos os seus segredos!
Ela o admirava, feliz, encantada!
Reinava, sentia instintivamente que as artes estavam esquecidas por sua causa e
jogadas seus pés como grãos de incenso.
— Contudo, ele não passa de um
ancião — continuou Poussin. — Só poderá ver em ti exclusivamente a mulher. És
tão perfeita!
— É preciso amar, — exclamou ela
pronta a sacrificar seus escrúpulos de amor para retribuir a seu amante todos
os sacrifícios que por ela fazia. — Mas, — acrescentou — seria perder-me. Ah!
perder-me por tua causa... sim, isso é muito bonito! mas tu me esquecerás. Ah!
que mau pensamento foste ter!
— Eu o tive e amo-te, — disse ele
com uma espécie de contrição, — mas acaso serei algum infame?
— Consultemos o padre Hardouin —
disse ela.
— Oh! não; que isso seja um segredo
entre nós ambos, apenas.
— Pois bem, irei; mas não estejas
presente disse ela. — Fica à porta, armado de tua adaga; caso eu grite, entra e
mata o pintor.
Todo entregue a visão de sua arte,
Poussin estreitou Gillette em seus braços.
"Ele não mais me ama",
pensou Gillette quando ficou sozinha.
Já se arrependia de sua resolução.
Mas depressa foi acometida por um susto mais cruel que seu arrependimento e esforçou-se
em expulsar um pensamento horroroso que surgiu em seu coração. Ela já julgava
amar menos o pintor, desconfiando ser ele menos digno de estima que antes.
II - CATARINA LESCAULT
Três meses após o encontro de
Poussin e Porbus, este foi visitar mestre Frenhofer. O ancião estava, então,
Presa de um desses desânimos profundos e espontâneos cuja causa reside, a
crermos nos matemáticos da medicina, numa digestão má, no vento, no calor, ou
em algum ingurgitamento dos hipocôndrios e, conforme os espiritualistas, na
imperfeição de nossa natureza moral. O velhote tinha-se, pura e simplesmente,
fatigado em aperfeiçoar o seu misterioso quadro. Estava, languidamente
recostado numa enorme cadeira de carvalho esculpido, forrada de couro preto; e,
sem abandonar sua atitude melancólica, dirigiu a Porbus o olhar de um homem que
se instalara em seu tédio.
—E então, mestre, disse-lhe Porbus
— o ultramar que o senhor foi buscar em Bruges não prestava? Será que o senhor
não soube pilar o nosso novo branco? Seu óleo andará ruim ou os pincéis
indóceis?
— Ai de mim! — exclamou o velho —
por um momento julguei que minha obra estivesse terminada, mas certamente
enganei-me em alguns pormenores e só descansarei após desfazer minhas dúvidas.
Decidi-me a viajar e vou à Turquia, à Grécia, à Ásia, em busca de um modelo e
para comparar meu quadro a diversos exemplares humanos... Talvez eu tenha lá em
cima, continuou deixando escapar um sorriso de contentamento — própria
natureza. Ás vezes quase temo que um sopro me desperte aquela mulher e que ela
desapareça.
Depois se levantou repentinamente,
como se fosse partir.
— Oh! oh! — exclamou Porbus. —
Chego a tempo de poupar-lhe as despesas e as fadigas da viagem.
— Como? — perguntou Frenhofer surpreso.
— O jovem Poussin é amado por uma
mulher cuja beleza incomparável é isenta de imperfeições. Mas, meu querido
mestre, se ele consente em emprestar-lha, pelo menos será preciso que vejamos
seu quadro.
O ancião permaneceu de pé, imóvel,
no estado de perfeito estupor.
— Como! — exclamou por fim,
dolorosamente. — Mostrar minha criatura, Minha esposa, dilacerar o véu com o
qual cobriu castamente minha felicidade. Mas seria uma prostituição horrorosa!
Faz dez anos que Vivo com essa mulher, ela pertence-me, somente a mim, ama-me.
Não me sorriu a cada pincelada que lhe dei? Tem uma alma, a alma que lhe
infundi. Ela coraria se outros olhos que não os meus a fitassem. Mostrá-la? Mas
qual o marido, o amante, bastante vil para conduzir sua mulher à desonra? Tu,
quando fazes um quadro para a corte, não o fazes com toda a tua alma, vendes
aos cortesãos simples manequins coloridos. Minha pintura não é uma pintura, é
um sentimento, uma paixão! Nascida em meu gabinete de trabalho, ela deve nele
permanecer virgem, e só pode sair vestida. A poesia e as mulheres só se
entregam nuas a seus apaixonados! Será que possuímos um modelo de Rafael, a
Angélica de Ariosto, a Beatriz de Dante? Não! só lhes vemos as formas. Pois
bem, a obra que conservo lá em cima a sete chaves é uma exceção em nossa arte.
Não é uma pintura, é uma mulher! uma mulher com a. qual choro, rio e penso.
Queres que inopinadamente eu abandone uma felicidade de dez anos como se despe
uma capa? que de súbito deixe de ser pai, amante e deus? Essa mulher não é uma
criatura, é uma criação. Que o teu rapaz venha, dar-lhe-ei meus tesouros,
dar-lhe-ei quadros de Corregio, de Miguel Ângelo, de Ticiano, oscularei a marca
de seus passos na poeira; mas fazê-lo meu rival? vergonha sobre mim! Ah! ah!
sou ainda mais amante que pintor. Sim, terei forças para queimar a minha Bela Altercadora em meu derradeiro
alento; mas fazê-la suportar o olhar de um homem, um rapaz, de um pintor? não,
não, mataria no dia seguinte aquele que a tivesse manchado com um olhar!
Matar-te-ia imediatamente, a ti, meu amigo, se não a saudasses de joelhos!
Queres agora que submeta meu ídolo aos olhares frios e às críticas estúpidas
dos imbecis? Ah! o amor é um mistério, só existe vida no âmago dos corações e
tudo está perdido quando um homem diz, mesmo a seu amigo: "Eis aquela que
amo!" O ancião parecia rejuvenescido. Seus olhos tinham brilho e vida;
suas faces pálidas estavam coloridas de um vermelho vivo suas mãos tremiam.
Porbus, surpreso com a violência apaixonada com que essas palavras tinham sido
proferidas, não sabia que responder a um sentimento tão novo quanto profundo.
Frenhofer estaria de juízo perfeito ou louco? Estaria subjugado por uma
fantasia de artista, ou as ideias que expressara originavam-se desse fanatismo
singular produzido em nós pela gestação prolongada de uma grande obra?
Poder-se-ia entrar alguma vez em acordo com essa paixão estranha? Dominado por
todos esses pensamentos, disse Porbus ao velho:
— Mas não será mulher por mulher?
Poussin não vai entregar a própria amante a seus olhares?
— Que amante? — respondeu Frenhofer.
— Cedo ou tarde ela o trairá, a minha me será sempre fiel!
— Pois bem, — respondeu Porbus, —
não falemos mais nisso. Mas, antes que o senhor encontre, mesmo na Ásia, uma mulher
tão bela, tão perfeita, quanto aquela a que me refiro, talvez morra sem ter
concluído seu quadro.
— Oh! está pronto — disse Frenhofer.
— Quem o visse julgaria avistar uma mulher deitada num leito de veludo debaixo
de cortinas. A seu lado uma trípode de ouro desprende perfumes. Sentirias
vontade de segurar a borla dos cordões que prendem as cortinas. E julgarias ver
o seio de Catarina Lescault, uma bela cortesã chamada a Bela Altercadora, arfar no movimento de sua respiração. Contudo,
gostaria de ter certeza...
— Vá então à Ásia, — respondeu
Porbus notando uma espécie de hesitação no olhar de Frenhofer.
E Porbus deu alguns passos em
direção à porta da sala.
Nesse instante, Gillette e Nicolau
Poussin chegavam próximo à residência de Frenhofer. Quando a jovem estava para
entrar, deixou o braço do pintor e recuou como se a acometesse algum
pressentimento súbito.
— Mas que venho eu fazer aqui? —
perguntou ela a seu amante em voz profunda e olhando-o fixamente.
— Gillette, deixei que tu mesma
resolvesses e quero obedecer-te em tudo. És minha consciência e minha glória.
Volta para casa, talvez eu seja mais feliz se tu...
— Será que me pertenço quando me
falas assim? Oh! não, sou apenas uma criança... Vamos, — acrescentou
aparentando fazer um esforço violento. — Se nosso amor perecer e se um imenso
pesar introduzir-se em meu coração, não será tua celebridade a recompensa de
minha submissão a teus desejos? Entremos, continuar sempre como uma recordação em
tua palheta ainda será viver.
Ao abrir a porta da casa, os dois
amantes encontraram-se com Porbus, que surpreso com a beleza de Gillette, cujos
olhos estavam então rasos d’água, segurou-a, toda trêmula, e conduzindo-a até o
ancião:
— Olhe, — disse, — não valerá todas
as obras primas do mundo?
Frenhofer estremeceu. Ali estava
Gillette, na atitude cândida e simples de uma jovem giorgiona, inocente e
timorata, raptada por salteadores e entregue a algum mercador de escravos. Um
rubor pudico coloria-lhe o rosto. Ela baixava os olhos. Suas mãos pendiam ao
longo do corpo. Suas forças pareciam abandoná-la e lágrimas protestavam contra
a violência feita a seu pudor. Nesse instante, Poussin; desesperado por ter tirado
de sua ansarda aquele belo tesouro, amaldiçoou-se. Tornou-se mais amante que
artista e mil escrúpulos assaltaram-lhe o coração Quando ele viu o olhar
rejuvenescido do ancião que, num hábito de pintor, despiu, para falarmos assim,
aquela rapariga, adivinhando-lhe as formas mais íntimas. Voltou, então, ao
ciúme feroz do verdadeiro amor.
— Gillette, partamos, — exclamou.
Aquela inflexão, àquele grito, sua
amante levantou jubilosa os olhos para ele, viu-o e correu para seus braços.
— Ah! então me amas? — respondeu
ela, desatando-a chorar.
Depois de ter possuído forças para
calar seu sofrimento, faltava-lhe energia para disfarçar sua felicidade.
— Oh! deixe-a comigo um instante, —
disse o velho pintor — e poderá compará-la a minha Catarina... sim, consinto.
Ainda havia amor no grito de
Frenhofer. ile parecia ter garbo pela sua figura feminina e gozar
antecipadamente o triunfo que a beleza de sua criação ia alcançar sobre a da
rapariga real.
Não o deixe voltar atrás! —
exclamou Porbus batendo no ombro de Poussin. — Os frutos do amor passam
depressa; os da arte são imortais.
— Então pára ele não passo de uma
mulher? — respondeu Gillette fitando atentamente Poussin e Porbus.
Ela ergueu a cabeça orgulhosamente;
mas quando, após dirigir a Frenhofer uma olhadela coruscante, viu seu
apaixonado entretido em contemplar novamente o retrato que ele outrora julgara
um Giorgione e disse:
— Ah! subamos! Nunca ele me olhou
assim.
— Ancião, — disse Poussin, tirado
de sua meditação pela voz de Gillette, — estás vendo essa espada, eu á
mergulharei em teu coração à primeira palavra de queixa que esta jovem pronunciar,
incendiarei tua casa e ninguém dela sairá. Estás compreendendo?
Nicolau Poussin estava sombrio e
sua inflexão foi terrível. Essa atitude e principalmente o gesto do jovem
pintor confortaram Gillette, que quase lhe perdoou por sacrificá-la à pintura e
a seu glorioso futuro. Porbus e Poussin ficaram à porta do gabinete de
trabalho, entreolhando-se calados. Se, a princípio, o pintor da Maria Egipcíaca permitiu-se certas
exclamações: "Ah! Ela está se despindo, ele disse-lhe para se colocar na
claridade! Está comparando-a!" depressa calou-se ao aspecto de Poussin
cujo rosto estava profundamente triste; e, embora os velhos pintores não mais
tenham esses escrúpulos tão pequenos em presença da arte, admirou-os, tão
ingênuos e belos eles eram. O rapaz conservava a mão nos copos de sua adaga e a
orelha quase colada à porta. Ambos, de pé e na obscuridade, lembravam dois conspiradores
que esperassem a hora de golpear um tirano.
— Entrem, entrem — disse-lhes o
ancião transportado pela felicidade. — Minha obra é perfeita e agora posso
mostrá-la com orgulho. Jamais pintor, pincéis, cores, tela e luz farão uma
rival para Catarina Lescault, a bela
cortesã!
— Dominados por forte curiosidade,
Porbus e Poussin precipitaram-se para o centro de vasto gabinete de trabalho,
coberto de poeira, onde tudo estava em desordem, onde viram aqui e ali, quadros
suspensos às paredes. Estacaram, de início, perante uma figura feminina de
tamanho natural, seminua, que lhes infundiu profunda admiração.
— Oh! não se detenham nisso, —
disse Frenhofer; — é uma tela que garatujei para estudar uma "pose"; esse
quadro nada vale. Eis os meus enganos, — continuou mostrando-lhes composições
encantadoras suspensas às paredes e em derredor.
A essas palavras, Porbus e Poussin,
estupefatos com esse desdém por semelhantes obras, buscaram o anunciado retrato,
sem conseguir distingui-lo.
— Pois bem, ei-lo! — disse-lhes o
ancião, cujos cabelos estavam em desordem, cuja fisionomia se inflamara numa exaltação
sobrenatural, cujos olhos brilhavam e que arquejava como um adolescente bêbedo
de amor.
— Ah! ah! — exclamou, — não
esperavam por semelhante perfeição! Estão diante de uma mulher e procuram um
quadro. Há tanta profundeza nessa pintura, o espaço é tão real aí que vocês não
podem mais distingui-lo do espaço que nos circunda. Onde está a arte? perdida,
desaparecida! Eis as próprias formas de uma rapariga. Não apreendi bem a cor, o
vivo da linha que parece terminar o corpo? Não é o mesmo fenômeno apresentado
pelos objetos que estão na atmosfera como os peixes na água? Não? admirem a
maneira pela qual os contornos se destacam do fundo. Não lhes parece que
poderiam passar a mão sobre esse dorso? Também, durante sete anos, estudei os
efeitos da conjunção da claridade e dos objetos. E esses cabelos, a luz não os
está inundando?... Ela, porém, respirou, parece-me! Estão vendo esse seio? Ah! quem
não a desejaria adorar genuflexo? As carnes palpitam. Vai levantar-se, esperem!
— Está vendo alguma coisa —
perguntou Poussin a Porbus.
— Não... e você?
— Nada.
Os dois pintores deixaram o velho
entregue a seu êxtase, olharam se a luz caindo em cheio sobre a tela que ele
lhes mostrava não lhe neutralizava todos os efeitos. Examinaram então a pintura
colocando-se à direita, à esquerda, de frente, baixando-se e levantando-se
sucessivamente.
— Sim, sim, é realmente um quadro,
— dizia-lhes Frenhofer enganando-se quanto ao objetivo desse exame escrupuloso.
Vejam, aqui está, o cavalete, aqui estão rainhas cores e meus pincéis. — E
apanhou um pincel que apresentou aos pintores num impulso cândido.
— O velho Lansquenete está
brincando conosco —, disse Poussin voltando para diante do pretenso quadro. —
Não vejo aí mais que cores confusamente combinadas e contidas por uma
quantidade de linhas esquisitas que formam um paredão de pintura.
— Estamos enganados, veja!... —
respondeu Porbus.
Aproximando-se, avistaram num canto
do quadro a ponta de um pé descalço que saía daquele caos de cores, de
tonalidades, de matizes impreciosos, uma espécie de nevoeiro informe, mas um pé
delicioso, vivo! Ficaram petrificados de admiração perante aquele fragmento
salvo de uma inacreditável, de uma lenta e progressiva destruição. Aquele pé
estava ali, como o torso de alguma Vênus de mármore de Paras que surgisse entre
os escombros de uma cidade incendiada.
— Debaixo disso há uma mulher! —
exclamou Porbus, chamando a atenção de Poussin para as camadas de cores que o
velho pintor superpusera sucessivamente, pensando aperfeiçoar sua obra.
Os dois artistas voltaram-se espontaneamente
para Frenhofer, começando a compreender, mas vagamente, o êxtase era que ele
vivia.
— Ele está de boa fé — disse
Porbus.
— Sim, meu amigo, — respondeu o
ancião despertando — é preciso fé, fé na arte, e viver muito tempo com sua obra
para produzir uma criação assim. Algumas dessas sombras deram-me muito
trabalho. Olhem, há na face, abaixo dos olhos, uma leve penumbra que, observada
em natureza, parece quase intraduzível. Pois bem, pensam que a reprodução desse
efeito não me custou esforços incríveis? Mas também, meu caro Porbus, observa
atentamente meu trabalho e compreenderás melhor o que eu te dizia sobre a
maneira de tratar o modelo e os contornos. Observa a luz dos seios, e repara
como, graças a uma série de toques e de realces fortemente empastados, consegui
prender a verdadeira luz e combiná-la com a alvura brilhante dos tons claros, e
como, valendo-me de um trabalho em versos, apagando os relevos e o grão da
tinta, pude, à força de acariciar o contorno de minha figura, mergulhado na
meia-tinta, tirar a idéia mesma do desenho e de meios artificiais e emprestar-lhe
o aspecto e as formas curvas da própria natureza. Cheguem-se, apreciarão melhor
este trabalho. De longe, ele desaparece. Olhem! aqui, creio que é notabilíssimo.
— E, com a ponta do pincel, indicava aos dois pintores um borrão de cor clara.
Porbus bateu no ombro do velho, voltando-se para Poussin:
— Sabe que vemos nele um pintor
muito eminente?
— E ainda mais poeta que pintor, —
respondeu gravemente Poussin.
— Aqui,— prosseguiu Porbus tocando
no quadro, — termina a nossa arte sobre a terra.
— E, a partir daí vai perder-se nos
céus, — disse Poussin.
— Quantas delícias nesse pedaço de
tela! — exclamou Porbus.
O velho, absorto, não os ouvia e
sorria àquela mulher imaginária.
— Mas, cedo ou tarde, ele perceberá
que não existe coisa alguma nesse quadro! — exclamou Poussin.
— Nada em meu quadro! — disse
Frenhofer olhando sucessivamente para os dois pintores e para sua pseudo-pintura.
— Que fez você? — disse baixinho
Porbus a Poussin.
O velho agarrou com força o braço
do rapaz e disse:
— Não vês coisa alguma, vilão!
malfeitor! velhaco! invertido! Por que subsiste, então, até aqui? — Meu bom
Porbus, — continuou voltando-se para o pintor, — será que também você zombaria
de mim? Responda! Sou seu amigo, diga-me, então eu teria estragado meu quadro?
Porbus, indeciso, nada ousou dizer;
mas tão cruel era a ansiedade estampada na fisionomia exangue do ancião, que
ele apontou para o quadro dizendo:
— Olhe!
Frenhofer contemplou por um
instante sua pintura e cambaleou.
— Nada! nada! e ter trabalhado dez
anos!...
Sentou-se e chorou.
— Então sou um imbecil, um louco!
Não tenho, então, talento nem capacidade! Não passo de um homem rico que, andando,
outra coisa não faz chie andar! Então nada terei produzido!
Contemplou sua tela através das
lágrimas, endireitou subitamente o corpo com orgulho e dardejou sobre os dois pintores
um olhar coruscante:
— Pelo sangue, pelo corpo, pela cabeça
de Cristo! Vocês são uns invejosos que querem convencer-me de que a obra está estragada,
para roubá-la! Quanto a mim, vejo-a! — bradou, — é maravilhosamente bela...
Nesse instante, Poussin ouviu os
soluços de Gillette esquecida a um canto.
— Que tem, meu anjo? — perguntou-lhe
o pintor, voltando a ser, de súbito, um apaixonado.
— Mata-me — disse ela. — Eu seria
uma infame se ainda te amasse, porque te desprezo... Admiro-te e causas-me
horror! Amo-te e creio já odiar-te?
Enquanto Poussin ouvia Gillette,
Frenhofer recobria sua Catarina com um pano verde, do mesmo modo sério e
tranqüilo com que um ourives fecha suas gavetas ao se julgar em companhia de
uns hábeis surrupiadores. Dirigiu aos dois pintores um olhar profundamente
dissimulado, cheio de desprezo e de suspeita, pô-los silenciosamente à porta de
seu gabinete com uma rapidez convulsiva; depois, disse-lhes no limiar da
habitação:
— Adeus, meus amiguinhos.
Essa despedida gelou os dois
pintores. No dia seguinte, Porbus, inquieto, voltou para ver Frenhofer e soube
que ele morrera durante a noite, depois de queimar seus quadros.
---
Tradução de Frederico dos Reys Coutinho
(1944)
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)
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