4/21/2025

Jerônimo Bonaparte (Conto histórico), de Paulo Setúbal



 

JERÔNIMO BONAPARTE

É na cidadezinha de S. Salvador. Aos dois de abril de 1806. No palácio, dentro da câmara dos despachos, o senhor Conde da Ponte — João de Saldanha da Gama e Mello Torres — governador e capitão general, limpa na baeta vermelha a pena de pato e borrifa de areia as suas grossas laudas de pergaminho. Depois, tomando dum pau-de-lacre, lacra as letras que traçara ao Conde de Anadia, ministro do Reino.

Nisto, pela câmara, entra com brusqueza o oficial de serviço:

Acaba de chegar o vigia da costa. Diz que há naus à vista.

Faça entrar o vigia!

O vigia entra. Tem o ar inquieto. E o governador:

Que há?

Naus à vista, Excelência. Seis barcos, desde a madrugada, vêm entrando a barra.

Barcos do Reino?

Não, Excelência. Parece, ao que pude ver, que vêm no mastro as cores da França.

Diabo, exclamou o governador surpreso; diabo! Naus francesas por aqui? Naus de Napoleão Bonaparte? Que coisas pretenderá o corso do Brasil?

E virando-se para o oficial:

Qual o bergantim que está no porto?

O Condessa de Rezende, Excelência!

Pois mande aprestar o Condessa de Rezende. Que vá sondar a esquadra e reconhecer a força. Que vá já!

Não tinha o oficial desaparecido e já o Conde da Ponte recebia a comunicação de que abicara à praia um escaler.

Vinha nele um oficial. O homem saltou em terra e correu ao palácio do Governador. O Conde da Ponte recebeu-o. E soube então que estava ali uma esquadra de Napoleão.

A esquadra saíra à caça duns navios ingleses que haviam tomado Santa Helena e o cabo da Boa-Esperança. Não conseguiu combatê-los. Aconteceu, no entanto, que se alastrara pelas naus uma epidemia de escorbuto. Estavam os franceses há longos dias pelo mar. Precisavam de refrescar e de curar os doentes. Eis porque, na necessidade que os urgia, aportaram eles em terras do Brasil. A esquadra era comandada pelo contra-almirante Willamés, que vinha na corveta Foudroyant. O oficial assim rematou o relato:

E vem na esquadra, senhor Conde, a Sua Alteza Imperial o Príncipe Jerônimo Bonaparte, irmão do Imperador Napoleão.

O Príncipe Jerônimo Bonaparte?

O Príncipe em pessoa, Excelência. Vem a bordo do Veteran. É ele que envia a vossa Excelência este ofício.

O oficial passou às mãos do governador a mensagem de Jerônimo Bonaparte.

O conde da Ponte tomou ansiadamente daquele vasto pergaminho, onde ressaltavam, num relevo forte, as águias napoleônicas. E leu:

"Au bord du Veteran, dans la baie de S. Salvador, aux 2 Avril 1806.

"Mr. le gouverneur. J'ai l'honneur de vous prévenir que je viens de mouiller dans cette baie avec la seconde division de Sa Majesté Impériale et Royale, aux ordres du contre-amiral Willamés; la premiére ne tardera pas de venir au mouillage.

"Partie de France depuis plusiers mois, toute l'escadre éprouve des besoins en eau, bois et provisions fraiches. J'espére trouver dans un gouvernement ami de l'Empire français toutes les facilités pour procurer ces objets aux vaisseaux. Une longue navigation a occasioné le scorbut pour les equipages. V. Exe. n'obligerait infinement si elle voulait m'indiquer un lieu oú je puisse debarquer les marins atteints de cette maladie. Je prie V. Exe. d'agréer l'assurance de ma haute reconnaissance. Jerôme Bonaparte.

"A S. Exa. Mr. le gouverneur á S. Salvador".

Assim, com espanto do governador, aportava em S. Salvador aquele curioso, aventurosíssimo Jerônimo Bonaparte, um dos mais romanescos príncipes que já tem tido a História.

O conde da Ponte pôs-se logo em polvorosa para recebê-lo dignamente.

Enquanto o irmão de Napoleão desembarca no casa do Brigadeiro Inácio Brasil, indo alejar-se em Accioli de Vasconcellos Brandão, rememoremos a vida lírica dos nossos hóspedes. Falemos um pouco dos Bonapartes.

* * *

Napoleão Bonaparte teve quatro irmãos: José, Luciano, Luiz, Jerônimo. A existência destes homens, guindados imprevistamente a alturas vertiginosas, daria, cada qual, novela pitoresca e saborosa. Todos eles receberam, da grandeza de Napoleão, fortíssimo jato de luz. Todos eles, no entanto, foram uns ingratarrões para com o irmão munificente. Eis porque dizia Stendhal:

"Il eut été beaucoup plus heureux pour Napoléon de n'avoir point de famille". Conceito êsse que o general Rapp assim esclarecia:

"Tous, exepté sa mére, onte abreuvé cessé de leur prodiguer les biens et les honneurs".

José, por exemplo, nunca suportou os sucessos fantásticos do irmão. Mais velho do que Bonaparte, julgando-se gênio, pensou sempre que era ele, e não o mano, quem deveria ascender às posições de glória. Daí, como se compreende, uma rivalidade de morte. Fez-se logo amigo íntimo de Madame de Stael, a tremenda inimiga de Napoleão. E quando Bonaparte, nas fulgurâncias do poder, foi coroado Imperador, José, recusando o título de príncipe, pôs-se, às escâncaras, a ridicularizar desabridamente o novo soberano. Nem sequer admitia que os da sua família dessem a Napoleão o título de Majestade!

E Napoleão, indignado:

"Mais que veut donc Joseph? Que prétend il? Il se met en opposition avec moi; il réunit tous mes ennemis. Qui est-ce donc qui lui monte la tête? Il ne veut pas être prince. Ses filles ne savent par qu'on m'appelle Empereur; elles m'appellent encor Consul"...

Pois apesar disso, indulgentíssimo, Bonaparte galardoa José com o Reino de Nápoles. Foi um desastre. O novo Rei mostrou-se absolutamente incapaz. Napoleão encolerizou-se. José encolerizou-se. Brigaram ambos seriamente. Mas Napoleão tinha para com os irmãos fraquezas imperdoáveis. Logo que pôde, retira José da pequenina Nápoles e coloca-o no trono da Espanha!

Em Espanha, ao invés de seguir a política do irmão, José rebela-se. Afasta de si todos os franceses. Rodeia-se de espanhóis. Traça um programa de governo inteiramente espanhol, e, portanto, inteiramente contrário a Bonaparte.

"Si l'on veut —dizia José à mulher — si l'on veut que je gouverne l'Espagne pour le bien de la France, on ne doit pas esperer cela de moi".

Napoleão enfurecia-se exatamente com isso e dizia:

"C'est un reproche que je lui fais de s'être fait Espagnol! Les français ne peuvent plus s'approcher de lui. Il n'a que des ministres espagnols. Et il faut, cependant, que le Roi soit français, que l'Espagne soit française. C'est pour la France que J'ai conquis l'Espagne".

A gente imagina logo, por essas intimidades, as mágoas que teve o Imperador com o seu irmão mais velho. A empáfia de José foi-lhe um espinho no coração. Infelizmente, no capítulo desgostos, não figura só José. Figuram todos os outros. Vejamos Luciano.

* * *

Luciano meteu-se desde cedo na política. Quando Napoleão partiu para o Egito, veio Luciano a Paris como deputado eleito pela Córsega. Uma boa estrela sorriu-lhe logo, magnificamente. Bonaparte, ao voltar, assumiu o consulado. O primeiro ato de Napoleão, como cônsul, foi chamar Luciano para ministro do Exterior.

Mas o rapaz desmoralizou-se num pronto: meteu-se em escandalosíssimas negociatas. Napoleão, urgido pelo general Moreau, obrigou o mano ministro a pedir demissão.

Isto seria nada para quem tinha a fortuna de ver o irmão elevado a imperador. Contudo, apesar das vitórias de Bonaparte, Luciano continuou na desgraça. Eis a razão:

Em 1794, com vinte anos, Luciano casara-se com uma burguesinha, Catarina Boyer, irmã do dono da casa de pensão em que morava. O casamento, nessa época, fora de igual para igual. Napoleão aprovou-o. Teve sempre a cunhada em grande estima.

Mas Luciano enviuvou. Como viúvo, num baile, encontrou-se Luciano por acaso com mademoiselle Jouberthon. Era uma criatura lindíssima. Luciano apaixonou-se perdidamente por ela. Napoleão, no entanto, opôs-se com energia ao casamento. E isto por uma séria razão de Estado. Era esta: não tendo José filhos homens, o herdeiro da coroa seria um filho de Luciano, caso fosse varão. Nada mais natural que o Imperador vigiasse a escolha do irmão. Eis porque Bonaparte se opunha a que Luciano se casasse à toa. Luciano, diante das exigências da sucessão, não podia, realmente, casar-se com qualquer uma.

Bonaparte chegou ao extremo de "dar ordens ao maire da décima circumscrição de Paris para que não realizasse o casamento".

Luciano, na cegueira da paixão, não atendeu a coisa alguma. Bonaparte, numa noite de festa, em Malmaison, soube da notícia terrível. Foi tal a sua cólera, tão violenta, que mandou imediatamente expulsar o irmão do território francês.

Viveram ambos separados longo tempo. Napoleão, porém, quis mais tarde acomodar as coisas. Deu-se, em Mântua, uma entrevista entre o Imperador, todo-poderoso, e Luciano, o desterrado, romântico em plena desgraça. Essa entrevista ficou célebre. Foi um dos casos mais reboantes da época. O desfecho dela impressionou a todos: os dois irmãos separaram-se mais inimigos do que nunca.

* * *

Luiz não foi apenas irmão de Bonaparte: foi o seu filho amado. Veio esta afeição forte desde os escuros tempos de pobreza. Napoleão era um simples segundo-tenente. Ganhava noventa e dois francos e quinze cêntimos. Comia uma só vez. Limpava as suas roupas. Não frequentava bares nem cafés. Foi assim, nessa miséria, que Napoleão sustentou Luiz. Educou-o.Ele próprio, já Imperador, exclamava:

"Ce Louis que j'ai fait elever sur ma solde de lieutenant, Dieu sait aux prix de quelles privations! Savez-vous comment j'y parvenais? C'était en ne metent jamais les pieds dans un café ou dans le monde; c'était en mangeant du pain sec, en brossant mes habits moi-même, afin qu'il durassent plus long-temps propres".

Era evidente que Napoleão, triunfando, arrastaria o irmão no seu carro de glórias. Luiz foi o seu ajudante de ordens nas campanhas da Itália e do Egito. Foi, ao depois, promovido a general. Casou-se com Hortênsia Beauharnais, filha de Josefina. Recebeu afinal, em 1806, o reino da Holanda.

Mas o novo soberano não esteve à altura da sua realeza. Fracassou. No meio dos seus desastres, imitando a José, Luiz chegou a ponto de hostilizar a Napoleão. Não queria saber da França e de francês. Bonaparte, furioso, indagava:

"Etes-vous l'allié de la France ou de l'Angleterre? Je l'ignore..."

Afinal, como supremo desgosto, Napoleão assistiu ao tremendo escândalo de Luiz: um dia, sem que ninguém o suspeitasse, o Rei da Holanda abandona o seu palácio, larga a coroa, foge inexplicavelmente dos seus Estados. Uma bomba! Ah, a fúria de Napoleão...

* * *

Jerônimo, como os irmãos, teve uma existência de romance. Este foi perdulário. Gastou sem contar, como louco. Entrou na vida quando Bonaparte, exatamente, atingia o pináculo da glória.

Napoleão, diz o historiador, vivia sempre em brigas com Jerônimo. É que o moço se metia nas despesas mais extravagantes. Comprava à vontade, caprichosamente, tudo o que lhe passava pela cabeça. Fazia dívidas absurdas nos fornecedores da corte.

Bonaparte cansou-se das prodigalidades do irmão. Colocou-o na marinha. Jerônimo teve, singelamente, o posto de aspirante de segunda classe. Mas não suportou muito tempo aquela vida. Desaveio-se logo com o almirante. Abandonou o brigue.

Jerônimo passou-se para a América. Em Baltimore, onde mal chegara, apaixonou-se romanticamente por Elisabete Paterson, pessoa encantadora, filha de riquíssimo comerciante da cidade. Apaixonou-se apenas, não. Apaixonou-se e casou-se. Eis Napoleão novamente enfurecido!

Mas Jerônimo era menor. Não podia casar-se sem consentimento legal. Napoleão aproveitou-se da circunstância e anulou o casamento. O processo correu agitado. Houve discussões azedas. Parlamentou-se muito. Afinal, concertou-se a situação por um acordo simples: a moça americana conveio na anulação, recebendo, anualmente, a pensão de sessenta mil francos, soma altíssima para a época.

Jerônimo, livre de novo, tornou à França. Napoleão nomeou-o capitão de fragata. Ele comandou então o navio Veteran, onde deu provas notáveis da sua capacidade de marinheiro, perseguindo terrivelmente os ingleses.

Depois, por um "senatus-consultus", Jerônimo foi declarado príncipe e sucessor eventual do trono.

Casou-se com a princesa Catarina, filha do Rei de Wurtemberg. Enfim, pelo tratado de Tilsitt, em 1807, Jerônimo recebeu o trono de Westfália. O trono fora criado expressamente para ele. Jerônimo, o dissipador, Rei de Westfalia!

Eis o que diz o historiador:

"O reinado de Jeronymo outra coisa não foi para Napoleão sinão fonte inexgottavel de contrariedades. Tudo provinha do comportamento insensato deste irmão, da frivolidade com que elle geria as finanças do reino, da sua vida faustosissima, igual á corte de França, que elle timbrava de levar em Cassel, sua capital, sem considerar a penuria do seu orçamento".

Para ter-se uma ideia das grandezas que vivia Jerônimo basta considerar que, para conduzir a sua minúscula corte, ele necessitava somente disto:

"Un grand marechal de palais, deux prefets du palais, un grand chambellan, quinze chambellans ordinaires, un grand maître de céremonies, huit aides-de-céremonies, plus de vingt aides-de-champ, un grand écuyer, six écuyers d'honneur, um premier aumonier, des aumoniers ordinaires...”

A vida da corte era escandalosa. Reboavam em Paris os ecos das maluquices de Jerônimo. Napoleão sabia que "as senhoras de Cassel que têm filhas bonitas não queriam por nada mandar as filhas aos bailes e festas da corte; que, nos convites feitos em Napoleonshoe, residencia de verão, raramente os maridos e as mulheres eram convidados ao mesmo tempo".

Ora, foi justamente este Jerônimo Bonaparte, este príncipe gastador e suntuário, aquele que aportou ao Brasil em 1806, ao tempo do governo do conde da Ponte. A sua estada foi curta. Assim mesmo, para comemorá-la houve jantares e festas que fizeram época em São Salvador.


II

Salva de 17 tiros reboou com estrondo. A esquadra francesa ancorou na baía. Era meia-noite. O conde da Ponte, no seu relato ao Ministro do Reino, pormenorizou os sucessos que se desenrolaram em S. Salvador, depois de fundeadas as naus. Lá diz o governador:

"No dia seguinte, 3 de Abril, pelas 11 horas da manhan, vieram ao palacio quatro officiaes da marinha franceza a fazer os seus cumprimentos e entregar-me um officio do almirante. Eu, igualmente, tinha mandado dois dos meus ajudantes fazer ao almirante uma visita. Dirigi tambem a Sua Alteza, o principe Jeronymo Bonaparte, o officio da copia n. 3. Fiz constar ao chefe da esquadra que eu ficava na intelligencia de receber no dia seguinte, ao meio dia, a sua visita e dos seus officiaes, visita essa que me fôra annunciada no officio que acabava de receber".

No dia seguinte, seriam duas horas da tarde, o almirante Willaumés, circundado da alta oficialidade, desembarcava no Arsenal Real da Ribeira. Os ajudantes de ordens do governo lá estavam, uniformizados, em grande gala. Havia várias seges. Tudo aquilo, luzido e pomposo, tocou para o palácio do Conde da Ponte, onde sua Excelência os recebeu com severos protocolos.

Nessa mesma tarde, ao saírem os hóspedes, fez o Conde partir o seu ajudante ao Príncipe Jerônimo. Ia explicar o mensageiro os motivos que haviam impedido o governador de visitar a Sua Alteza naquele dia. Rogava a Sua Alteza, no entanto, que desse a honra de receber o Conde no dia seguinte pelas 11 horas. O oficial não encontrou mais a bordo o Príncipe Jerônimo. Encontrou-o, com os de sua privança, já desembarcado. Estava alojado em casa do Brigadeiro Inácio Accioli Vasconcellos Brandão.

Mandou o governador, imediatamente, pôr a serviço do Príncipe o corpo da guarda, dirigido por um capitão de guerra, um tenente e um alferes. Agradeceu Sua Alteza a todos esses cativadores obséquios. Marcou, para o dia seguinte, às 11 horas, a visita solicitada. O conde da Ponte deu ciência dela e do que nela se passou ao Ministro do Reino. Assim:

"No dia 5, pelas 11 horas, com os meus ajudantes de ordens, fui cumprimentar o Principe Jeronymo. Sua Alteza Imperial me recebeu à porta da sala de visitas e fez-me sentar no mesmo canapé onde se sentou, dando-me a direita. Durou a nossa conversação tres quartos de hora; foram della unicos objectos: a batalha de Austerlitz, esperanças de paz geral, a morte de Pitt e a sua frustrada expedição. Houve tambem expressões de agradecimento sobre as providencias que eu havia dado para se prover a esquadra do Imperador, onde havia falta de tudo e quatrocentos a quinhentos doentes com scorbuto".

Nesse mesmo dia o governador retribuiu, por sua vez, a visita do almirante Willaumés. Nessa entrevista, que se deu a bordo, entre muitíssimas atenções e honrosas formalidades, Willaumés requereu ao Conde da Ponte, em nome de Napoleão:

"Que lhe emprestasse dos reaes cofres o dinheiro necessario para o supprimento da esquadra...”

Não gostou muito o governador do requerimento. Chegou mesmo a atemorizar-se. A estada no Brasil daquela gente de Napoleão, gente tão polida, é verdade, mas que requeria dinheiro com tanto desembaraço, pôs-lhe na alma apreensões sérias.

Respondeu ao almirante que "nos cofres não havia dinheiro, mas que, talvez o commissario da esquadra achasse negociantes que pudessem apromptar alguma quantia, com interesses proporcionados...”

Willaumés respondeu simplesmente que não tinha trazido crédito junto aos comerciantes daquela praça, pois nunca fora intenção sua o arribar no Brasil. Neslas circunstâncias, bem embaraçosas, aliás, o Conde achou apenas uma saída. É ele quem o diz:

"No dia 8, chamei cinco commerciantes dos bem acreditados desta cidade, e propondo-lhes o quanto era conveniente "aos interesses desta praça e ao socego da Colonia", e igualmente o quanto seria do agrado do Príncipe, Nosso Senhor, o prompto provimento dessa esquadra, "abreviando logo a sahida della deste porto"; tive, então, a satisfação de todos me responderem que, em taes circumstancias, concorreriam com a melhor bôa vontade com o que pudessem e eu arbitrasse, sendo todos conformes com o meu arbitrio. Nesta intelligencia mandei-os tratar com o commissario para que, á vista do pedido e dos preços, se calculasse a quantia precisa, que seria emprestada com o premio de vinte por cento, passando-se letras sobre o Thesouro do Imperio, etc.".

Enquanto assim se iam provendo as naus, o Prin cipe Jerônimo, alma de voluptuoso e de suntuário, afogava os seus sócios em festas e jantares.

Sua Alteza ofereceu ao governador uma comida de gala. E o Conde da Ponte quem o diz ao ministro:

"No dia quatorze, ao meio dia, veiu procurar-me um ajudante de ordens de Sua Alteza Imperial, o Principe Jeronymo, convidando-me para jantar com elle em seu alojamento. Não podia esquivar-me a um tal convite, vindo eu a receber um obsequio que devia ser o primeiro a fazel-o se o Palacio fôra capaz, se pelo menos estivera ornado.

O Principe Jerônimo convidou pouca gente. Mas foi tudo o que a cidadezinha tinha de mais alto e de mais luzido.

O Conde da Ponte e a Condessa da Ponte compareceram de sege. A Condessa muito garrida e custosa, o Conde muito enfeitado de alamares e riços. Lá estava o brigadeiro Accioli de Vasconcellos. Lá estava o Intendente da Marinha. Lá estava Felisberto Caldeira Brant, o nosso futuro Marquês de Barbacena, então morador na Bahia, casado com uma enteada do Brigadeiro Accioli. Todos, a pedido de Sua Alteza, trouxeram as mulheres para fazerem galantemente companhia à senhora Condessa da Ponte. Nem se esqueceu o príncipe dos dois tenente-coronéis, que estavam à frente das forças da Bahia e dos respectivos comandantes dos corpos. O almirante Willaumés também veio. As senhoras admiraram muito a sua casaca azul bordada a ouro.

Sentaram-se. O Príncipe deu a direita à Condessa da Ponte e a esquerda à Brigadeira Accioli de Vasconcellos. Eram, ao todo, dezoito pessoas.

O jantar foi um primor. Magnificamente servido. As iguarias vieram todas de bordo. Houve muito beychevelle antigo e muito vinho branco de Anjou. Os criados, que eram os particulares do príncipe, traziam librés agalatoadas, calções com braguilhas de prata, meias altas de seda negra.

São Salvador, até aquele momento, ainda não assistira a tão mimosa comida de gala. O jantar do Príncipe fez época.

O Conde da Ponte, na qualidade de governador, viu-se forçado a responder a tão fina galantaria. E ofereceu a Jerônimo, por seu turno, um jantar no palácio. Andou o pobre conde numa dobadoura. Correu, durante dias, atrás de petiscos, comezainas, contemplações para o chá, baixela, criadagem, o diabo!

Quis mesmo, por altíssimo requinte, que houvesse canto e música na festança. É assim que narra o governador o acontecido:

"Roguei a sua Alteza Imperial a vir jantar commigo no dia dezesete. Convidei o chefe e mais commandantes das embarcações, convidando, igualmente, para jantar, afim de lhes fazer companhia, além das pessoas que já tinham assistido ao outro jantar do Principe, outras das primeiras e mais distinctas desta cidade, em numero de trinta. Arranjei, como pude o que havia de contemplação para o chá; apresentei a Sua Alteza o que melhor havia na cidade em instrumental e cantoria...”

Jerônimo Bonaparte encantou-se com tudo. Para bem significar ao Conde o seu agrado, mimoseou-o, nesse jantar, com a medalha de ouro, gravada em relevo, comemorativa da coroação de Napoleão como Rei da Itália. Como, entre as futilidades que se disseram, mostrassem as senhoras grande entusiasmo pelo "Veteran", barco em que viajava o Príncipe, convidou-as gentilmente Sua Alteza para um almoço a bordo.

Assim, com vasto escândalo da província, foram as senhoras da Bahia (unicamente as senhoras!) almoçar com Jerônimo Bonaparte. O "Veteran" alindou-se garridamente. O Príncipe, que se ufanava de elegâncias requintadíssimas, tinha o navio alcatifado de tapetes caros, muitos panos colgados às paredes, telas de coloridos fortes, espelhos de Veneza dardejando por tudo. As provincianas de S. Salvador viram, com olhos atônitos, essa pequenina amostra do que foram os deslumbramentos napoleônicos.

* * *

No dia 21, depois dessa estada fulgurante, as naus francesas fizeram-se à vela. Jerônimo, antes de partir, endereçou os seus agradecimentos ao Conde da Ponte:

"A bord du Veteran, en rade de S. Salvador le 20 Avril 1806. Mr. le gouverneur. Au moment de quitter un pays, ou' vous representez votre souverain, il m'est infiniment agreable de vous exprimer le sentiment que m'a inspiré votre conduite à l'egard de l'escadre de S. Majesté l'Empereur. Dans la depêche, que je viens d'avoir l'honneur de lui adresser, je n'ai pint oublié de lui faire connaitre l'empressement et les attentions que Votre Excellente a mis à procurer á ses vaisseaux tout ce dont ils pouvaient avoir besoin.

Aprés vous avoir rendu cette justice auprés de mon souverain, permettez Mr. le gouverneur, que je vous temoigne mon obligation particuliére pour les procedés aimables que j'ai reçu de vous. J'aimarai á en conserver toujours le souvenir et à saisir les occasions de les reconnaitre. Je prie V. Excie. d'agreer l'assurance de ma consideration trés distinguée. JERONYME BONAPARTE".

O Príncipe, bem se vê, era galanteador. Não se contentou em oferecer jantares e festas. Deixou a todos que o serviram, quando partiu, lembranças vencedoras. Foi assim que brindou o brigadeiro Accioli de Vasconcellos, os amáveis hospedeiros dele, com um riquíssimo e profusíssimo faqueiro de prata "casquinha de ouro", que era pura maravilha de arte. Este faqueiro passou em herança à filha de Accioli, então senhora do comendador Antônio Pedroso de Albuquerque.

Não se esqueceu o Príncipe, de Caldeira Brant, o nosso futuro Barbacena. Obsequiou-o com variadas prendas. Ficou famosa, entre elas, a opulenta espada de prata, com armas napoleônicas, que o Príncipe cavalheirescamente lhe ofertou.

Eis aí, através de jantares e de festas, a estada de Jerônimo Bonaparte no Brasil.

O Rei de Westfália, aquele que fez na vida as loucuras mais atordoantes de luxo e de fausto, não podia passar pelo Brasil sem deixar, como deixou, um traço simpático de suas galas e suntuosidades. 


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Um projeto de:
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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