
JERÔNIMO BONAPARTE
É
na cidadezinha de S. Salvador. Aos dois de abril de 1806. No palácio, dentro da
câmara dos despachos, o senhor Conde da Ponte —
João de Saldanha da Gama e Mello Torres —
governador e capitão general, limpa na baeta vermelha a pena de pato e borrifa
de areia as suas grossas laudas de pergaminho. Depois, tomando dum
pau-de-lacre, lacra as letras que traçara ao Conde de Anadia, ministro do
Reino.
Nisto,
pela câmara, entra com brusqueza o oficial de serviço:
— Acaba de chegar o
vigia da costa. Diz que há naus à vista.
— Faça entrar o
vigia!
O
vigia entra. Tem o ar inquieto. E o governador:
— Que há?
—Naus à vista, Excelência. Seis barcos,
desde a madrugada, vêm entrando a barra.
— Barcos do Reino?
— Não, Excelência.
Parece, ao que pude ver, que vêm no mastro as cores da França.
— Diabo, exclamou o
governador surpreso; diabo! Naus francesas por aqui? Naus de Napoleão Bonaparte?
Que coisas pretenderá o corso do Brasil?
E
virando-se para o oficial:
— Qual o bergantim
que está no porto?
— O Condessa de
Rezende, Excelência!
— Pois mande
aprestar o Condessa de Rezende. Que
vá sondar a esquadra e reconhecer a força. Que vá já!
Não
tinha o oficial desaparecido e já o Conde da Ponte recebia a comunicação de que
abicara à praia um escaler.
Vinha
nele um oficial. O homem saltou em terra e correu ao palácio do Governador. O
Conde da Ponte recebeu-o. E soube então que estava ali uma esquadra de
Napoleão.
A
esquadra saíra à caça duns navios ingleses que haviam tomado Santa Helena e o
cabo da Boa-Esperança. Não conseguiu combatê-los. Aconteceu, no entanto, que se
alastrara pelas naus uma epidemia de escorbuto. Estavam os franceses há longos
dias pelo mar. Precisavam de refrescar e de curar os doentes. Eis porque, na
necessidade que os urgia, aportaram eles em terras do Brasil. A esquadra era
comandada pelo contra-almirante Willamés, que vinha na corveta Foudroyant. O oficial assim rematou o
relato:
— E vem na esquadra, senhor Conde, a
Sua Alteza Imperial o Príncipe Jerônimo Bonaparte, irmão do Imperador Napoleão.
— O Príncipe Jerônimo Bonaparte?
— O Príncipe em pessoa, Excelência. Vem
a bordo do Veteran. É ele que envia a
vossa Excelência este ofício.
O
oficial passou às mãos do governador a mensagem de Jerônimo Bonaparte.
O
conde da Ponte tomou ansiadamente daquele vasto pergaminho, onde ressaltavam,
num relevo forte, as águias napoleônicas. E leu:
"Au
bord du Veteran, dans la baie de S.
Salvador, aux 2 Avril 1806.
"Mr.
le gouverneur. J'ai l'honneur de vous prévenir que je viens de mouiller dans
cette baie avec la seconde division de Sa Majesté Impériale et Royale, aux
ordres du contre-amiral Willamés; la premiére ne tardera pas de venir au
mouillage.
"Partie
de France depuis plusiers mois, toute l'escadre éprouve des besoins en eau,
bois et provisions fraiches. J'espére trouver dans un gouvernement ami de
l'Empire français toutes les facilités pour procurer ces objets aux vaisseaux. Une longue navigation
a occasioné le scorbut pour les equipages. V. Exe. n'obligerait infinement si
elle voulait m'indiquer un lieu oú je puisse debarquer les marins atteints de
cette maladie. Je prie V. Exe.
d'agréer l'assurance de ma haute reconnaissance. Jerôme Bonaparte.
"A
S. Exa. Mr. le gouverneur á S. Salvador".
Assim,
com espanto do governador, aportava em S. Salvador aquele curioso,
aventurosíssimo Jerônimo Bonaparte, um dos mais romanescos príncipes que já tem
tido a História.
O
conde da Ponte pôs-se logo em polvorosa para recebê-lo dignamente.
Enquanto
o irmão de Napoleão desembarca no casa do Brigadeiro Inácio Brasil, indo
alejar-se em Accioli de Vasconcellos Brandão, rememoremos a vida lírica dos
nossos hóspedes. Falemos um pouco dos Bonapartes.
* * *
Napoleão
Bonaparte teve quatro irmãos: José, Luciano, Luiz, Jerônimo. A existência
destes homens, guindados imprevistamente a alturas vertiginosas, daria, cada
qual, novela pitoresca e saborosa. Todos eles receberam, da grandeza de
Napoleão, fortíssimo jato de luz. Todos eles, no entanto, foram uns ingratarrões
para com o irmão munificente. Eis porque dizia Stendhal:
"Il
eut été beaucoup plus heureux pour Napoléon de n'avoir point de famille".
Conceito êsse que o general Rapp assim esclarecia:
"Tous,
exepté sa mére, onte abreuvé cessé de leur prodiguer les biens et les
honneurs".
José,
por exemplo, nunca suportou os sucessos fantásticos do irmão. Mais velho do que
Bonaparte, julgando-se gênio, pensou sempre que era ele, e não o mano, quem
deveria ascender às posições de glória. Daí, como se compreende, uma rivalidade
de morte. Fez-se logo amigo íntimo de Madame de Stael, a tremenda inimiga de
Napoleão. E quando Bonaparte, nas fulgurâncias do poder, foi coroado Imperador,
José, recusando o título de príncipe, pôs-se, às escâncaras, a ridicularizar
desabridamente o novo soberano. Nem sequer admitia que os da sua família dessem
a Napoleão o título de Majestade!
E
Napoleão, indignado:
"Mais
que veut donc Joseph? Que prétend il? Il se met en opposition avec moi; il
réunit tous mes ennemis. Qui est-ce donc
qui lui monte la tête? Il ne veut pas être prince. Ses filles ne savent
par qu'on m'appelle Empereur; elles
m'appellent encor Consul"...
Pois
apesar disso, indulgentíssimo, Bonaparte galardoa José com o Reino de Nápoles.
Foi um desastre. O novo Rei mostrou-se absolutamente incapaz. Napoleão
encolerizou-se. José encolerizou-se. Brigaram ambos seriamente. Mas Napoleão
tinha para com os irmãos fraquezas imperdoáveis. Logo que pôde, retira José da
pequenina Nápoles e coloca-o no trono da Espanha!
Em
Espanha, ao invés de seguir a política do irmão, José rebela-se. Afasta de si
todos os franceses. Rodeia-se de espanhóis. Traça um programa de governo
inteiramente espanhol, e, portanto, inteiramente contrário a Bonaparte.
"Si
l'on veut —dizia José à mulher — si l'on veut que je gouverne l'Espagne pour le
bien de la France, on ne doit pas esperer cela de moi".
Napoleão
enfurecia-se exatamente com isso e dizia:
"C'est
un reproche que je lui fais de s'être fait Espagnol! Les français ne peuvent
plus s'approcher de lui. Il n'a que des ministres espagnols. Et il faut,
cependant, que le Roi soit français, que l'Espagne soit française. C'est pour
la France que J'ai conquis l'Espagne".
A
gente imagina logo, por essas intimidades, as mágoas que teve o Imperador com o
seu irmão mais velho. A empáfia de José foi-lhe um espinho no coração.
Infelizmente, no capítulo desgostos, não figura só José. Figuram todos os
outros. Vejamos Luciano.
* * *
Luciano
meteu-se desde cedo na política. Quando Napoleão partiu para o Egito, veio
Luciano a Paris como deputado eleito pela Córsega. Uma boa estrela sorriu-lhe
logo, magnificamente. Bonaparte, ao voltar, assumiu o consulado. O primeiro ato
de Napoleão, como cônsul, foi chamar Luciano para ministro do Exterior.
Mas
o rapaz desmoralizou-se num pronto: meteu-se em escandalosíssimas negociatas.
Napoleão, urgido pelo general Moreau, obrigou o mano ministro a pedir demissão.
Isto
seria nada para quem tinha a fortuna de ver o irmão elevado a imperador.
Contudo, apesar das vitórias de Bonaparte, Luciano continuou na desgraça. Eis a
razão:
Em
1794, com vinte anos, Luciano casara-se com uma burguesinha, Catarina Boyer,
irmã do dono da casa de pensão em que morava. O casamento, nessa época, fora de
igual para igual. Napoleão aprovou-o. Teve sempre a cunhada em grande estima.
Mas
Luciano enviuvou. Como viúvo, num baile, encontrou-se Luciano por acaso com
mademoiselle Jouberthon. Era uma criatura lindíssima. Luciano apaixonou-se
perdidamente por ela. Napoleão, no entanto, opôs-se com energia ao casamento. E
isto por uma séria razão de Estado. Era esta: não tendo José filhos homens, o
herdeiro da coroa seria um filho de Luciano, caso fosse varão. Nada mais
natural que o Imperador vigiasse a escolha do irmão. Eis porque Bonaparte se
opunha a que Luciano se casasse à toa. Luciano, diante das exigências da
sucessão, não podia, realmente, casar-se com qualquer uma.
Bonaparte
chegou ao extremo de "dar ordens ao maire da décima circumscrição de Paris
para que não realizasse o casamento".
Luciano,
na cegueira da paixão, não atendeu a coisa alguma. Bonaparte, numa noite de
festa, em Malmaison, soube da notícia terrível. Foi tal a sua cólera, tão
violenta, que mandou imediatamente expulsar o irmão do território francês.
Viveram
ambos separados longo tempo. Napoleão, porém, quis mais tarde acomodar as
coisas. Deu-se, em Mântua, uma entrevista entre o Imperador, todo-poderoso, e
Luciano, o desterrado, romântico em plena desgraça. Essa entrevista ficou
célebre. Foi um dos casos mais reboantes da época. O desfecho dela impressionou
a todos: os dois irmãos separaram-se mais inimigos do que nunca.
* * *
Luiz
não foi apenas irmão de Bonaparte: foi o seu filho amado. Veio esta afeição
forte desde os escuros tempos de pobreza. Napoleão era um simples segundo-tenente.
Ganhava noventa e dois francos e quinze cêntimos. Comia uma só vez. Limpava as
suas roupas. Não frequentava bares nem cafés. Foi assim, nessa miséria, que
Napoleão sustentou Luiz. Educou-o.Ele próprio, já Imperador, exclamava:
"Ce
Louis que j'ai fait elever sur ma solde de lieutenant, Dieu sait aux prix de
quelles privations! Savez-vous comment j'y parvenais? C'était en ne metent jamais les pieds
dans un café ou dans le monde; c'était en mangeant du pain sec, en brossant mes
habits moi-même, afin qu'il durassent plus long-temps propres".
Era
evidente que Napoleão, triunfando, arrastaria o irmão no seu carro de glórias.
Luiz foi o seu ajudante de ordens nas campanhas da Itália e do Egito. Foi, ao
depois, promovido a general. Casou-se com Hortênsia Beauharnais, filha de
Josefina. Recebeu afinal, em 1806, o reino da Holanda.
Mas
o novo soberano não esteve à altura da sua realeza. Fracassou. No meio dos seus
desastres, imitando a José, Luiz chegou a ponto de hostilizar a Napoleão. Não
queria saber da França e de francês. Bonaparte, furioso, indagava:
"Etes-vous
l'allié de la France ou de l'Angleterre? Je l'ignore..."
Afinal,
como supremo desgosto, Napoleão assistiu ao tremendo escândalo de Luiz: um dia,
sem que ninguém o suspeitasse, o Rei da Holanda abandona o seu palácio, larga a
coroa, foge inexplicavelmente dos seus Estados. Uma bomba! Ah, a fúria de
Napoleão...
* * *
Jerônimo,
como os irmãos, teve uma existência de romance. Este foi perdulário. Gastou sem
contar, como louco. Entrou na vida quando Bonaparte, exatamente, atingia o
pináculo da glória.
Napoleão,
diz o historiador, vivia sempre em brigas com Jerônimo. É que o moço se metia
nas despesas mais extravagantes. Comprava à vontade, caprichosamente, tudo o
que lhe passava pela cabeça. Fazia dívidas absurdas nos fornecedores da corte.
Bonaparte
cansou-se das prodigalidades do irmão. Colocou-o na marinha. Jerônimo teve,
singelamente, o posto de aspirante de segunda classe. Mas não suportou muito
tempo aquela vida. Desaveio-se logo com o almirante. Abandonou o brigue.
Jerônimo
passou-se para a América. Em Baltimore, onde mal chegara, apaixonou-se
romanticamente por Elisabete Paterson, pessoa encantadora, filha de riquíssimo
comerciante da cidade. Apaixonou-se apenas, não. Apaixonou-se e casou-se. Eis
Napoleão novamente enfurecido!
Mas
Jerônimo era menor. Não podia casar-se sem consentimento legal. Napoleão
aproveitou-se da circunstância e anulou o casamento. O processo correu agitado.
Houve discussões azedas. Parlamentou-se muito. Afinal, concertou-se a situação
por um acordo simples: a moça americana conveio na anulação, recebendo,
anualmente, a pensão de sessenta mil francos, soma altíssima para a época.
Jerônimo,
livre de novo, tornou à França. Napoleão nomeou-o capitão de fragata. Ele
comandou então o navio Veteran, onde
deu provas notáveis da sua capacidade de marinheiro, perseguindo terrivelmente
os ingleses.
Depois,
por um "senatus-consultus", Jerônimo foi declarado príncipe e
sucessor eventual do trono.
Casou-se
com a princesa Catarina, filha do Rei de Wurtemberg. Enfim, pelo tratado de
Tilsitt, em 1807, Jerônimo recebeu o trono de Westfália. O trono fora criado
expressamente para ele. Jerônimo, o dissipador, Rei de Westfalia!
Eis
o que diz o historiador:
"O
reinado de Jeronymo outra coisa não foi para Napoleão sinão fonte inexgottavel
de contrariedades. Tudo provinha do comportamento insensato deste irmão, da
frivolidade com que elle geria as finanças do reino, da sua vida faustosissima,
igual á corte de França, que elle timbrava de levar em Cassel, sua capital, sem
considerar a penuria do seu orçamento".
Para
ter-se uma ideia das grandezas que vivia Jerônimo basta considerar que, para
conduzir a sua minúscula corte, ele necessitava somente disto:
"Un
grand marechal de palais, deux prefets du palais, un grand chambellan, quinze
chambellans ordinaires, un grand maître de céremonies, huit aides-de-céremonies,
plus de vingt aides-de-champ, un grand écuyer, six écuyers d'honneur, um
premier aumonier, des aumoniers ordinaires...”
A
vida da corte era escandalosa. Reboavam em Paris os ecos das maluquices de
Jerônimo. Napoleão sabia que "as senhoras de Cassel que têm filhas bonitas
não queriam por nada mandar as filhas aos bailes e festas da corte; que, nos
convites feitos em Napoleonshoe, residencia de verão, raramente os maridos e as
mulheres eram convidados ao mesmo tempo".
Ora,
foi justamente este Jerônimo Bonaparte, este príncipe gastador e suntuário,
aquele que aportou ao Brasil em 1806, ao tempo do governo do conde da Ponte. A
sua estada foi curta. Assim mesmo, para comemorá-la houve jantares e festas que
fizeram época em São Salvador.
II
Salva
de 17 tiros reboou com estrondo. A esquadra francesa ancorou na baía. Era
meia-noite. O conde da Ponte, no seu relato ao Ministro do Reino, pormenorizou
os sucessos que se desenrolaram em S. Salvador, depois de fundeadas as naus. Lá
diz o governador:
"No
dia seguinte, 3 de Abril, pelas 11 horas da manhan, vieram ao palacio quatro
officiaes da marinha franceza a fazer os seus cumprimentos e entregar-me um
officio do almirante. Eu, igualmente, tinha mandado dois dos meus ajudantes
fazer ao almirante uma visita. Dirigi tambem a Sua Alteza, o principe Jeronymo
Bonaparte, o officio da copia n. 3. Fiz constar ao chefe da esquadra que eu
ficava na intelligencia de receber no dia seguinte, ao meio dia, a sua visita e
dos seus officiaes, visita essa que me fôra annunciada no officio que acabava
de receber".
No
dia seguinte, seriam duas horas da tarde, o almirante Willaumés, circundado da
alta oficialidade, desembarcava no Arsenal Real da Ribeira. Os ajudantes de
ordens do governo lá estavam, uniformizados, em grande gala. Havia várias
seges. Tudo aquilo, luzido e pomposo, tocou para o palácio do Conde da Ponte,
onde sua Excelência os recebeu com severos protocolos.
Nessa
mesma tarde, ao saírem os hóspedes, fez o Conde partir o seu ajudante ao
Príncipe Jerônimo. Ia explicar o mensageiro os motivos que haviam impedido o
governador de visitar a Sua Alteza naquele dia. Rogava a Sua Alteza, no
entanto, que desse a honra de receber o Conde no dia seguinte pelas 11 horas. O
oficial não encontrou mais a bordo o Príncipe Jerônimo. Encontrou-o, com os de
sua privança, já desembarcado. Estava alojado em casa do Brigadeiro Inácio
Accioli Vasconcellos Brandão.
Mandou
o governador, imediatamente, pôr a serviço do Príncipe o corpo da guarda,
dirigido por um capitão de guerra, um tenente e um alferes. Agradeceu Sua
Alteza a todos esses cativadores obséquios. Marcou, para o dia seguinte, às 11
horas, a visita solicitada. O conde da Ponte deu ciência dela e do que nela se
passou ao Ministro do Reino. Assim:
"No
dia 5, pelas 11 horas, com os meus ajudantes de ordens, fui cumprimentar o
Principe Jeronymo. Sua Alteza Imperial me recebeu à porta da sala de visitas e
fez-me sentar no mesmo canapé onde se sentou, dando-me a direita. Durou a nossa
conversação tres quartos de hora; foram della unicos objectos: a batalha de
Austerlitz, esperanças de paz geral, a morte de Pitt e a sua frustrada
expedição. Houve tambem expressões de agradecimento sobre as providencias que
eu havia dado para se prover a esquadra do Imperador, onde havia falta de tudo
e quatrocentos a quinhentos doentes com scorbuto".
Nesse
mesmo dia o governador retribuiu, por sua vez, a visita do almirante Willaumés.
Nessa entrevista, que se deu a bordo, entre muitíssimas atenções e honrosas
formalidades, Willaumés requereu ao Conde da Ponte, em nome de Napoleão:
"Que
lhe emprestasse dos reaes cofres o dinheiro necessario para o supprimento da
esquadra...”
Não
gostou muito o governador do requerimento. Chegou mesmo a atemorizar-se. A
estada no Brasil daquela gente de Napoleão, gente tão polida, é verdade, mas
que requeria dinheiro com tanto desembaraço, pôs-lhe na alma apreensões sérias.
Respondeu
ao almirante que "nos cofres não havia dinheiro, mas que, talvez o
commissario da esquadra achasse negociantes que pudessem apromptar alguma
quantia, com interesses proporcionados...”
Willaumés
respondeu simplesmente que não tinha trazido crédito junto aos comerciantes
daquela praça, pois nunca fora intenção sua o arribar no Brasil. Neslas
circunstâncias, bem embaraçosas, aliás, o Conde achou apenas uma saída. É ele
quem o diz:
"No
dia 8, chamei cinco commerciantes dos bem acreditados desta cidade, e
propondo-lhes o quanto era conveniente "aos interesses desta praça e ao socego da Colonia", e
igualmente o quanto seria do agrado do Príncipe, Nosso Senhor, o prompto
provimento dessa esquadra, "abreviando
logo a sahida della deste porto"; tive, então, a satisfação de todos
me responderem que, em taes circumstancias, concorreriam com a melhor bôa
vontade com o que pudessem e eu arbitrasse, sendo todos conformes com o meu
arbitrio. Nesta intelligencia mandei-os tratar com o commissario para que, á
vista do pedido e dos preços, se calculasse a quantia precisa, que seria
emprestada com o premio de vinte por
cento, passando-se letras sobre o Thesouro do Imperio, etc.".
Enquanto
assim se iam provendo as naus, o Prin cipe Jerônimo, alma de voluptuoso e de
suntuário, afogava os seus sócios em festas e jantares.
Sua
Alteza ofereceu ao governador uma comida de gala. E o Conde da Ponte quem o diz
ao ministro:
"No
dia quatorze, ao meio dia, veiu procurar-me um ajudante de ordens de Sua Alteza
Imperial, o Principe Jeronymo, convidando-me para jantar com elle em seu
alojamento. Não podia esquivar-me a um tal convite, vindo eu a receber um
obsequio que devia ser o primeiro a fazel-o se o Palacio fôra capaz, se pelo menos
estivera ornado.
O
Principe Jerônimo convidou pouca gente. Mas foi tudo o que a cidadezinha tinha
de mais alto e de mais luzido.
O
Conde da Ponte e a Condessa da Ponte compareceram de sege. A Condessa muito
garrida e custosa, o Conde muito enfeitado de alamares e riços. Lá estava o
brigadeiro Accioli de Vasconcellos. Lá estava o Intendente da Marinha. Lá
estava Felisberto Caldeira Brant, o nosso futuro Marquês de Barbacena, então
morador na Bahia, casado com uma enteada do Brigadeiro Accioli. Todos, a pedido
de Sua Alteza, trouxeram as mulheres para fazerem galantemente companhia à
senhora Condessa da Ponte. Nem se esqueceu o príncipe dos dois
tenente-coronéis, que estavam à frente das forças da Bahia e dos respectivos comandantes
dos corpos. O almirante Willaumés também veio. As senhoras admiraram muito a
sua casaca azul bordada a ouro.
Sentaram-se.
O Príncipe deu a direita à Condessa da Ponte e a esquerda à Brigadeira Accioli
de Vasconcellos. Eram, ao todo, dezoito pessoas.
O
jantar foi um primor. Magnificamente servido. As iguarias vieram todas de
bordo. Houve muito beychevelle antigo
e muito vinho branco de Anjou. Os criados, que eram os particulares do príncipe,
traziam librés agalatoadas, calções com braguilhas de prata, meias altas de
seda negra.
São
Salvador, até aquele momento, ainda não assistira a tão mimosa comida de gala.
O jantar do Príncipe fez época.
O
Conde da Ponte, na qualidade de governador, viu-se forçado a responder a tão
fina galantaria. E ofereceu a Jerônimo, por seu turno, um jantar no palácio.
Andou o pobre conde numa dobadoura. Correu, durante dias, atrás de petiscos,
comezainas, contemplações para o chá, baixela, criadagem, o diabo!
Quis
mesmo, por altíssimo requinte, que houvesse canto e música na festança. É assim
que narra o governador o acontecido:
"Roguei
a sua Alteza Imperial a vir jantar commigo no dia dezesete. Convidei o chefe e mais
commandantes das embarcações, convidando, igualmente, para jantar, afim de lhes
fazer companhia, além das pessoas que já tinham assistido ao outro jantar do
Principe, outras das primeiras e mais distinctas desta cidade, em numero de
trinta. Arranjei, como pude o que havia de contemplação
para o chá; apresentei a Sua Alteza o que melhor havia na cidade em instrumental
e cantoria...”
Jerônimo
Bonaparte encantou-se com tudo. Para bem significar ao Conde o seu agrado,
mimoseou-o, nesse jantar, com a medalha de ouro, gravada em relevo,
comemorativa da coroação de Napoleão como Rei da Itália. Como, entre as
futilidades que se disseram, mostrassem as senhoras grande entusiasmo pelo
"Veteran", barco em que viajava o Príncipe, convidou-as gentilmente
Sua Alteza para um almoço a bordo.
Assim,
com vasto escândalo da província, foram as senhoras da Bahia (unicamente as
senhoras!) almoçar com Jerônimo Bonaparte. O "Veteran" alindou-se garridamente. O Príncipe, que se ufanava
de elegâncias requintadíssimas, tinha o navio alcatifado de tapetes caros,
muitos panos colgados às paredes, telas de coloridos fortes, espelhos de Veneza
dardejando por tudo. As provincianas de S. Salvador viram, com olhos atônitos,
essa pequenina amostra do que foram os deslumbramentos napoleônicos.
* * *
No
dia 21, depois dessa estada fulgurante, as naus francesas fizeram-se à vela.
Jerônimo, antes de partir, endereçou os seus agradecimentos ao Conde da Ponte:
"A
bord du Veteran, en rade de S. Salvador le 20 Avril 1806. Mr. le gouverneur. Au
moment de quitter un pays, ou' vous representez votre souverain, il m'est
infiniment agreable de vous exprimer le sentiment que m'a inspiré votre
conduite à l'egard de l'escadre de S. Majesté l'Empereur. Dans la depêche, que
je viens d'avoir l'honneur de lui adresser, je n'ai pint oublié de lui faire
connaitre l'empressement et les attentions que Votre Excellente a mis à
procurer á ses vaisseaux tout ce dont ils pouvaient avoir besoin.
Aprés
vous avoir rendu cette justice auprés de mon souverain, permettez Mr. le
gouverneur, que je vous temoigne mon obligation particuliére pour les procedés
aimables que j'ai reçu de vous. J'aimarai á en conserver toujours le souvenir
et à saisir les occasions de les reconnaitre. Je prie V. Excie. d'agreer
l'assurance de ma consideration trés distinguée. JERONYME BONAPARTE".
O
Príncipe, bem se vê, era galanteador. Não se contentou em oferecer jantares e
festas. Deixou a todos que o serviram, quando partiu, lembranças vencedoras.
Foi assim que brindou o brigadeiro Accioli de Vasconcellos, os amáveis
hospedeiros dele, com um riquíssimo e profusíssimo faqueiro de prata
"casquinha de ouro", que era pura maravilha de arte. Este faqueiro
passou em herança à filha de Accioli, então senhora do comendador Antônio
Pedroso de Albuquerque.
Não
se esqueceu o Príncipe, de Caldeira Brant, o nosso futuro Barbacena.
Obsequiou-o com variadas prendas. Ficou famosa, entre elas, a opulenta espada
de prata, com armas napoleônicas, que o Príncipe cavalheirescamente lhe
ofertou.
Eis
aí, através de jantares e de festas, a estada de Jerônimo Bonaparte no Brasil.
O Rei de Westfália, aquele que fez na vida as loucuras mais atordoantes de luxo e de fausto, não podia passar pelo Brasil sem deixar, como deixou, um traço simpático de suas galas e suntuosidades.
---
Um projeto de:
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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