4/21/2025

Uma audiência de D. Pedro I (Conto histórico), de Paulo Setúbal



UMA AUDIÊNCIA DE D. PEDRO I

Não há, em história, gênero mais fascinante do que o gênero "memórias". Esses depoimentos pessoais, lançados por um observador pachorrento, ou fixados com febre, ao calor das paixões, por um protagonista de vida em foco, têm, quando o tempo os esfuma com a sua patina esmaecedora, um sabor mágico, sugestionador, um fortíssimo poder de evocação.

As memórias são uma ressurreição. É delicioso o que há nelas de flagrante, de nota colorida, de documento humano, de fixação de individualidades e de fatos.

Pena que os homens públicos, no Brasil, não tenham a preocupação de escrevê-las. Não há, para a pintura viva dos acontecimentos, como a palavra morta de quem os viu e viveu. As poucas memórias que existem por aí demonstram-no à saciedade.

Como haveríamos de fixar a nobre grandeza dos Andradas se não fossem as memórias de Vasconcelos Drummond?

Como deslindar a meada de muitíssimos fatos do primeiro reinado se não fossem as memórias do Visconde de S. Leopoldo?

Como pintar a corte, as suas pompas, as suas etiquetas, se não fossem as memórias do padre Luiz Gonçalves dos Santos?

É que os homens e as coisas filtrados por elas tomam o seu aspecto real. As divindades humanizam-se.

Os heróis ficam de carne e osso. A verdade exurge nua. Imaginai que manancial soberbo não seria para a história da República as memórias de Floriano! Umas páginas de Deodoro! Recordações de Glicério.

É triste, é desconsolador, ver os três presidentes paulistas, que foram, talvez, os maiores presidentes da República Prudente, Campos Salles, Rodrigues Alves não terem deixado uma única linha das suas vidas! Não tenta aos nossos pró-homens essa boa norma. Só há, que eu saiba, uma única exceção. É o Dr. Altino Arantes. Tracejou o cultíssimo presidente de S. Paulo, dia por dia, o seu quatriênio. Aí fixou ele os homens. Os fatos. As combinações políticas. Os discursos. As festas. Uma presidência inteira! A posteridade, lendo o curioso diário, há de evocar nitidamente uma época e descarnar bem descarnadamente os homens que a viveram, Ainda bem!

* * *

Ora, nesta faina, em que agora vive toda a gente, de ressurgir coisas velhas, fui descobrir, por acaso, de umas memórias interessantes. E descobri-as no nosso velho Mello Moraes.

Há de haver muita gente que se espante de ouvir dizer: "descobri em Mello Moraes". Um autor de ontem! Pois é a pura verdade: descobri em Mello Moraes!

É que não conheço cronista mais desordenado que o chistoso evocador das intimidades de São Cristóvão. A sua obra é imensa. Uma enfiada de grossíssimos livros. Mas cada livro meu Deus! um verdadeiro cipoal. Vai neles barafunda tremenda!

É o processo de Tiradentes misturado com os amores de D. Pedro. É a descoberta do Brasil com a corte de Dona Amélia. É a invasão holandesa com as açafatas de Dona Leopoldina. E tudo isso a monte, desconexo, sem liame. Aqui principia o depoimento de um conjurado. Continua na página cem. Termina na página oitocentos e quarenta e cinco. Um horror! Desanima a gente.

Pois foi aí, nesse labirinto, que dei de chofre com umas memórias inteiramente esquecidas dos homens. Memórias muito palpitantes. Nelas vêm fotografados certos aspectos imprevistos da corte de 1824. Lá estão os ministros. Lá está, flagrantíssima, bem ao vivo, uma audiência de D. Pedro I. Lá está o gênio explosivo do nosso monarca. Tudo com singeleza, sem paixão. Um verdadeiro depoimento. Depoimento que conta as coisas como as coisas são.

* * *

São as memórias de Basílio Quaresma Torreão. Foi este um dos deputados que Manoel Paes de Carvalho mandou à corte parlamentar com o imperador.

Encabe

Paes de Carvalho toda a gente sabe — encabeçou a revolução republicana de Pernambuco em 1824. O caudilho apossou-se da presidência da sua província. Era o presidente de fato. O imperador, no entanto, havia nomeado para presidi-la Francisco da Rocha Paes Barreto, chamado o "Morgado do Cabo". Este era o presidente de direito. Paes de Carvalho, diante da dualidade de poderes, enviou uma embaixada a D. Pedro I. Missão grave e melindrosíssima.

O monarca andava furioso com a rebeldia dos pernambucanos. No auge das cóleras, exatamente, é que surgem na corte os emissários. Um deles, o primeiro deputado, deixou sobre este episódio as tais memórias. Vou transcrevê-las para aqui. Depois de tantos anos de sepultamento, que saíam, enfim, à luz que se espanejem ao sol, que se desembolorem: e que sirvam de gozo aos carunchos de arquivo e maníacos por velharias.

* * *

"A historia da rebellião que teve logar na provincia de Pernambuco, em 1824, está já contada e escripta por varias pessoas coevas. Faltam, porém, alguns episodios curiosos que seriam bom transmittil-os á posteridade. Eis um facto que nós, testemunhas, vamos relatar.

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Foram designados, como membros da deputação, as seguintes pessoas: Basilio Quaresma Torreão, capitão de artilharia; o padre Periquito, vigario de Pasmado; Bastos Junior, official da Fazenda.

Munidos dos competentes titulos, partiram a bordo de um brigue americano "ad hoc" fretado. Levando a bandeira parlamentar, afim de passar o bloqueio que apertava Recife, conseguiu a deputação seguir o seu destino, chegando á corte depois de dezesseis dias de viagem penivel.

Não se achava o imperador D. Pedro I, no Rio, pois havia partido para Minas para suffocar a sedição que lá rebentara. Então apresentou-se o primeiro deputado ao ministro do Imperio, Marquez de Queluz, que o recebeu com attenção, perguntando-lhe o objecto da sua missão. Respondeu o deputado que, tendo sido mandado directamente ao imperador, seria deslealdade, sinão desrespeito, communicar o proposito a outrem que não o monarcha.

Durante a ausencia do imperador, vivemos como interdictos. Varias pessoas amigas me escreveram. E todas assim:

"Não venhais cá, nem eu vou lá, pois estais excommungado. Cuidado! O homem tem cem olhos..."

Todos me fugiam excepto o bispo, dom José Caetano, a quem visitei no dia do desembarque, o qual se pagou com a minha visita. Mandei-lhe, dois dias depois, uns caixões de doce de goiaba de Pernambuco. Depois veiu me visitar da parte de s. exa., um minorista.

Cinco dias depois, voltou de sua viagem o monarcha. No dia seguinte, convocou o conselho cuja sessão durou dois dias. O objecto della foi Pernambuco, cuja deputação se olhava como insulto á magestade.

O conselho tinha que decidir se se deveria enxotar a deputação ou recebel-a e, neste caso, onde e como: se no Paço da Boa Vista, ou no da cidade; se os três deputados juntos, ou cada um de per si; se em audiencia publica ou particular.

O visconde Maricá e o de Cayrú eram de parecer que nos mandassem metter todos na Lage, afim de ensinar a vindouros que rebeldes não mandam deputação ao Imperante.

Outros eram de opinião que se não fizesse caso da deputação, ficando os deputados sem poder sahir da cidade, nem mesmo ser recebidos pelos ministros.

Os Marquezes de Queluz e de Carvalho foram de opinião que nos ouvissem. "São, dizia o Snr. Queluz, uns pobres homens, meros portadores de recado; ouça-os S. Magestade da maneira que quizer e dê-lhes uma resposta adequada á pergunta".

Nisto ficaram. Mas toda esta ogeriza vinha cahir sobre a cabeça do primeiro deputado, cuja conducta fôra denegrida no animo do governo por desaffectos de Pernambuco.

Quiz a fortuna que fossemos morar na rua do Ourives, defronte á igreja de S. Pedro, tendo por vizinho um italiano, homem de merito, muy conspicuo na politica de então. Um dia, chegando ambos á janela, depois de uma simples inclinação de cabeça, disse-me elle:

Se me der duas palavras na janella do quintal, talvez, não se arrependa.

Não o deixei repetir duas vezes. Em tres segundos estava no quintal cara a cara com o meu vizinho. Este principiou logo:

Meu caro senhor, não vá á casa de nenhum amigo afim de não o comprometter. O senhor está rodeado de espiões. Não tem notado um sujeito á paisana, com chapéo militar, que sempre o acompanha? É um capitão de fuzileiros. É o homem incumbido pela policia de espial-o.

Com effeito, eu tinha encontrado em varias partes o tal sujeito. Mas nunca imaginei que fosse o meu espião.

Emfim, um dia, quando menos esperava, veiu um official dizer-me da parte do ministro do Império que S. M. Imperial nos ouviria no dia seguinte, antes ou depois da audiencia.

Eram tres para quatro horas. Chamaram-me para jantar. Fui mas ao passar no corredor, vi uma figura de mendigo que me entregou um papel que dizia:

Se quizer estar com seus amigos, ache-se á noitinha no principio da Rua Nova do Conde.

A principio, cuidei que era uma cilada; mas, melhor reflectindo, perguntei:

 Quem lhe deu este papel?

Respondeu-me:

Não conheço; deram-me umas moedas para entregar a V. M. este bilhete.

Disse eu, então:

 Pois diga que serei exacto.

Depois do jantar, sahi. Eis que dou de face com o meu espião. Seguiu-me a pista. Parava quando eu parava. Quiz a fortuna que passasse alli uma sége. Segui e disse ao cocheiro que andasse. Vi, por um vidro do fundo, o meu homem assomar na esquina. 'Olhou para cima; depois para baixo. Falou a um preto cuja resposta o não satisfez. Emfim, perdi o de vista.

Tomamos por Matta-porcos e me achei no logar do rendez-vous. Não se tinham passado cinco minutos, senti uma mão pousar no meu hombro:

V. Mecê é um membro da commissão de Pernambuco?

E com a minha affirmativa, accrescentou:

Siga-me.

Tomamos por uma travessa. Paramos na porta de um sobrado de pouca apparencia. Entramos pelo interior e achei-me numa sala onde se achavam umas vinte pessoas. Entre ellas, o senhor Estevam de Magalhães e Evaristo da Veiga. Foi o general Nobrega quem me falou:

Veja o que vae dizer amanhan ao imperador! O plano é, no caso de V. Mecê dizer qualquer phrase que fira ao de leve a susceptibilidade do monarcha, fazerem-lhe uma dessas desfeitas que não têm represalia e conduzirem-n'o á fortaleza do Lage. Pese bem o que vae dizer!

Respondi que eu já havia pensado no que ia dizer; que a nossa missão se limitava somente em fazei um parallelo entre os dois presidentes.

Com isto, todos ficaram satisfeitos.

Depois de um chá de meia cortina, separamo-nos. O meu guia levou-me até a rua do Sabão. Nunca soube o genero de desfeita que me aguardava. Me parece que os executores della eram Francisco Martins e um filho do general Paulino, que, a essa epoca, adulavamo imperador, que delle se serviam para as patuscadas nocturnas.

Emfim, chegou o dia solenne. Como não achassemos um carro de dois assentos, tomamos uma sege de bolea e partimos. Entramos no Paço debaixo de applausos e de reprovações.

um

Aqui, viamos um signal de encorajamento; alli, um diabo os leve! Mais longe, um attencioso que nos facilitava a passagem; logo um outro que dizia com medo: presidir á Provincia de Pernambuco.

Fomos introduzidos na Sala do Docel. Nesta sala, só era permittido entrar os militares acima de major. Estivemos á espera supportando as risadinhas sarcasticas do Francisco Martins, do Chalaça, e mais sucia. O imperador dava audiencia em pé, sobre o primeiro degrau do throno. Reparei que estava vestido de sobrecasaca verde e com uma só condecoração.

Finda a audiencia, entrou para os seus aposentos, tomou a farda de que usava, com a gran cruz e mais condecorações. E em seis minutos mais ou menos nos tornou a apparecer: Mandou-nos chamar. Entramos com as formalidades do estylo. Eu, sem mais preambulos, fui lendo o papel em que estavamos todos assignados. O imperador, tomando o papel, disse muito secco.

Tenho resolvido que seja presidente, não o Morgado, e nunca o Carvalho. Obrei como bom pae. Cortei a questão, nomeando um terceiro, José Carlos Mayrinck, para presidir á Provincia de Pernambuco.

Até aqui tudo lisongeiro. E, se pudessemos nos retirar naquelle momento, sahiriamos airosos, com grande desapontamento do Martins, que nos espiava. Mas o Imperador continuou:

Sinto que os pernambucanos me tenham sido trahidores.

Ao que repliquei:

Senhor, os pernambucanos..

O imperador atalhou-me rispido:

Não preciso que me diga nada! Eu sei mais que V. Mecê a historia da sua provincia.

Abalancei-me a replicar (isto é que foi o meu erro):

Mas, Senhor, permitta V. M. que eu defenda os meus...

Mal tinha eu esboçado a phrase, quando o homem, com os olhos chammejantes, pondo na bocca o dedo indicador:

Psiu! Psiu! Nem mais uma palavra! ouviu? E apontou-nos a porta da sahida.

Fizemos então a ultima reverencia e sahimos acompanhados do Martins e caterva".

* * *

As memórias continuam. Contam as aventuras da volta, vários episódios com Cochrane e Taylor, a entrada no Recife. Tudo interessante, tudo pictural. Mas são longas demais para esta crônica. Se alguém quiser corrê-las na íntegra, vá ao nosso emaranhadíssimo Mello Moraes, folheie com paciência o Brasil-Histórico e lá topará a coisa tim-tim por tim-tim.


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Um projeto de:
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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