Um pastor tinha dois filhos — um rapaz e uma rapariga.
Quando chegou a hora de sua morte,
chamou as duas crianças para junto de si, e disse-lhes:
— Não tenho nada para lhes deixar senão esta choupana e
três carneiros. Dividam, amistosamente a pequena herança, de modo que não
despertem ciúmes nem inveja.
***
Depois, fechou os olhos, e expirou.
No dia seguinte, o rapaz, que se
chamava Henrique, disse à irmã:
— Que prefere você? a choupana ou os carneiros?
— Prefiro a choupana, responde a mocinha.
— Como quiser. Então, ficarei com os carneiros, e vou
por este mundo de Cristo em fora, tentar fortuna. Nasci num domingo, e dizem
que isso dá felicidade.
Partiu. Durante a viagem, passou
dias angustiosos, e sofreu muitíssimas privações.
Um dia, em que estava sentado à
beira do caminho, desanimado, em vista do mau sucesso das suas tentativas, e
não sabendo para onde se dirigir, viu encaminhar-se para o lugar onde se
achava, um homem, acompanhado de três enormes cães, que lhe disse:
— O senhor tem três carneiros muito bonitos. Quer
trocá-los pelos meus três cães?
Apesar da sua tristeza, Henrique
pôs-se a rir e respondeu:
— Ficaria embaraçado se aceitasse sua proposta. Os meus
três carneiros cortam por si mesmo a erva de que têm necessidade, ao passo que
eu seria obrigado a sustentar esses três animais, e nada tenho.
— Ah! é que não sabe, retorquiu o desconhecido, que esses
três cães são verdadeiramente maravilhosos. O senhor não só não terá precisão
de se ocupar da subsistência deles, como eles tratarão da sua e de tudo quanto
necessitar. O mais pequenino chama-se Provedor,
o segundo Despedaçador, e o maior de
todos Quebra-Ferro.
Henrique acabou por consentir na
troca que lhe havia sido proposta, e não tardou em se regozijar com isso.
Uma vez, estando sozinho num
bosque, longe de qualquer habitação, não tendo mais nem uma só migalha de pão,
exclamou:
— Provedor! à obra!...
Não foi preciso repetir a ordem. O
cachorro partiu como uma flecha, e voltou, poucos minutos depois, trazendo um
cesto cheio de excelentes provisões.
— Bem!, disse Henrique. Com um companheiro desta ordem,
não tenho mais que me incomodar com a comida, e posso viajar em paz.
Continuou a caminhar.
***
Um dia encontrou uma esplêndida
carruagem, puxada por dois belos cavalos, e toda pintada de negro. O cocheiro
estava também vestido de preto. Dentro via-se encantadora moça, trajando luto rigorosíssimo,
e chorando amargamente.
À vista dessas demonstrações de
infortúnio, Henrique sentiu o coração comovido. Interrogou o cocheiro, que, a
princípio, o olhou desdenhosamente, do alto da boleia, e afinal se dignou de
responder:
— Perto daqui existe um dragão terrível, que durante
muito tempo devastou o país, e que finalmente se retirou para uma gruta, com a
condição de, todos os anos, numa data marcada, lhe entregarem a jovem que ele
escolhesse. Este ano foi a princesa a vítima designada pelo monstro. O rei e o
povo estão imersos em profundíssima dor, mas é forçoso obedecer à decisão da
sorte, a fim de que o monstro tenha a sua presa.
— Pobre moça!, murmurou Henrique olhando para a princesinha
com os olhos úmidos. E acompanhou a carruagem.
Chegando ao sopé de uma montanha, o
cocheiro parou o carro. A rapariga desceu, e começou a subir lentamente a
ladeira pedregosa. Henrique quis acompanhá-la, apesar das recomendações e dos
gritos do cocheiro, que, prudentemente, havia ficado no vale.
Pelo meio da ladeira apareceu subitamente
o medonho animal, com o corpo revestido de escamas, grandes asas semelhantes às
de um moinho, garras mais duras que o ferro e a língua flamejante. Da goela
saía-lhe um turbilhão de vapores sulfurosos. Avançou para arrebatar a presa.
Então Henrique gritou:
—Despedaçador!... à obra! à obra...
Despedaçador lançou-se rapidamente
sobre o monstro, rasgou-lhe as carnes com os dentes, dilacerou-os e matou-o.
Henrique arrancou-lhe alguns dentes, e meteu-os no bolso.
A princesa havia desmaiado. Quando
recuperou os sentidos, o monstro jazia por terra. Cumprimentou Henrique, com
grande transporte de alegria e gratidão, e pediu-lhe para acompanhá-la ao
palácio de seu pai, de modo a ser dignamente recompensado.
O moço respondeu-lhe que iria vê-la
na capital do reino, mas somente no fim de três anos, porque durante esse
tempo, queria empreender muitas viagens. E, como persistisse inabalavelmente
nessa resolução, a moça retomou a carruagem, e ele dirigiu-se para outro lado.
Não imaginava sequer que a donzela, a quem acabava de salvar, se achava
novamente exposta a inúmeros perigos.
****
O cocheiro havia formado diabólico
projeto.
Ao atravessar uma ponte, sobre um
grande rio, voltou-se para a princesa, e falou-lhe:
— O seu cavalheiro deixou-a, sem nada lhe pedir. A
senhora não deve mais se ocupar dele; e, assim, pode perfeitamente fazer a
fortuna de um pobre homem, dizendo a seu pai que fui eu quem matou o dragão. Se
não aceitar a minha proposta, lançá-la-ei ao rio, e ninguém se lembrará de
perguntar o que lhe sucedeu, porque todos imaginaram que o monstro a devorou.
Em vão a mocinha protestou, pediu,
rogou, suplicou. Para salvar a vida, foi obrigada a se submeter à resolução do
cocheiro, e jurar solenemente que a ninguém revelaria aquela perfídia.
Gritos de prazer, exclamações de
alegria irromperam em toda a cidade, quando viram regressar, sã e salva, essa bela princesa, que devia servir de pasto
ao terrível monstro. Ao vê-la, o rei tomou-a nos braços e choraram ambos de
alegria.
Em seguida, também apertou nos
braços o pérfido cocheiro, e disse-lhe:
— Não somente me restituíste tudo quanto tenho de mais
caro no mundo, mas libertaste o país desse terrível flagelo. Devo-te uma
recompensa: casar-te-ás com minha filha, dentro de um ano. Ela é muito criança
ainda, para se casar antes. Desde hoje, considero-te como meu genro. Terás o
teu palácio e aí viverás como um grande fidalgo.
***
Passado tempo, a princesa, a quem
esse casamento horrorizava, e que não se atrevia a revelar o seu segredo, pediu
mais um ano de espera; e terceiro, ainda.
No fim dessa época, porém, o rei
não consentiu em maior delonga, e fixou definitivamente o dia das bodas.
Na véspera desse dia, viram entrar
um viajante, seguido de três cachorros extravagantes. Notando em todas as ruas
preparativos de festa, perguntou a causa deles.
Responderam-lhe que a filha do rei
ia desposar o homem que a havia salvo das garras do dragão.
—Esse homem, exclamou o viajante, é um impostor!...
Os soldados da polícia, ouvindo-o
falar daquela forma, sobre o genro do soberano, prenderam-no e conduziram-no a
uma prisão gradeada de ferro.
Enquanto o pobre Henrique jazia sobre
a palha úmida engolfado em tristes reflexões, pareceu-lhes ouvir subitamente os
gemidos dos seus cachorros.
Eram, efetivamente, os fiéis
animais que se aproximavam do cárcere.
— Quebra-ferro, à obra!... exclamou.
Quebra-ferro precipitou-se sobre as
grades do xadrez, quebrou-as, e também despedaçou as algemas do amo. O rapaz
ergueu-se satisfeito, por se ver livre, mas triste por se lembrar que um
traidor ia ser esposo da bela princesa.
Não sabia que fazer, e enquanto se
dispunha a tomar uma resolução qualquer, sentiu que tinha fome.
— Provedor, à obra, disse ele.
Alguns minutos depois, Provedor
trouxe-lhe suculentas iguarias, envoltas em um guardanapo, no qual se via
bordada uma coroa real.
Havia se dirigido diretamente ao
palácio. Entrara no salão de jantar, onde o soberano se achava reunido com
todos os membros da sua família e os personagens da corte.
Ao passar perto da noiva,
lambeu-lhe as mãos. A princesa reconheceu-o, e foi ela mesma que arrumou o
guardanapo.
O aparecimento do cão fê-la supor
que o aventuroso mancebo, a quem devia a salvação, não podia estar longe.
Com essa esperança animou-se. Tomou
seu pai pela mão, chamou-o de parte ao aposento vizinho, e narrou-lhe tudo
quanto se havia passado no dia em que devia ser sacrificada.
O monarca mandou buscar Henrique.
Era ele mesmo. A moça alegrou-se ao ver aquele belo e honesto mancebo, que se
adiantou modestamente e tirou do seu saco de viagem os enormes dentes do
dragão.
O rei conduziu o corajoso mancebo
ao salão onde estavam reunidos os convidados. O infame cocheiro empalideceu.
Uma sentença justa condenou-o a
expiar num calabouço o seu crime.
Henrique casou-se com a jovem.
No meio das festas desse feliz
consórcio, lembrou-se de sua irmã, que ficara sozinha na pequena e miserável
choupana. Desejou tornar a vê-la; mandou buscá-la, e abraçou-a com grande carinho
e amizade.
Então, um dos seus fiéis cães, que
eram encantados, tomou a palavra e disse-lhe:
—Agora, a missão que o nosso amo nos confiou, está
finda. Queríamos ver se a fortuna te endurecia o coração, e te faria esquecer a
tua pobre irmã. Adeus, sê feliz!
Ditas essas palavras, os três cães
transformaram-se em passarinhos, e voaram, cantando pelos ares em fora...
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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