O MENINO DA MATA E O SEU CÃO PILOTO
Havia em outro tempo, no interior
de uma mata, certo rachador de lenha, por nome Antônio, que tinha sete filhos,
dos quais, o mais novo, nascido alguns anos depois de seus irmãos, se chamava
Guilherme.
A mulher do rachador tinha morrido
na infância do pequenino, ficando assim os meninos entregues somente aos
cuidados do pai.
Antônio, um homem laborioso, levava
a vida a cortar lenha no mato. Depois de atá-la em feixes, carregava alguns
jumentos e ia vendê-la à vila, empregando o seu produto naquilo de que sua
família carecia.
Obrigava os filhos a trabalhar
consigo e, como eles fossem robustos, em breve os mais velhos tornaram-se
capazes de fazer quase tanto como ele. Um dia, enquanto Antônio e seus filhos
faziam lenha uma árvore caiu sobre ele, e molestou-o tão gravemente, que nunca
mais pode trabalhar sobrevindo-lhe uma doença, que pouco a pouco o levou à sepultura.
Enquanto a morte se aproximava, começou a recordar-se de sua vida passada,
lembrando-se que havia desprezado sua mãe, viúva, de cuja casa havia fugido
havia muitos anos. Desde então, começou a ensinar aos filhos os seus deveres
para com Deus.
Não se passava um só dia, em que o
mísero moribundo rachador não pedisse encarecidamente aos rapazes que se virassem
para Deus. Estes, porém, escarneciam dele. Como o velho já não podia cuidar deles,
nem provê-los do que lhe faltava, seguiram o seu próprio interesse e vontade.
Guilherme era a sua única
consolação neste mundo. O rapazinho velava a seu lado, sempre pronto a ir
buscar tudo quanto ele carecia.
Um dia em que os filhos mais velhos
tinham ido roubar veados na mata, Antônio e seu filhinho, conversavam sentados
à porta da choupana, deitando-se Piloto, cão de Guilherme, aos pés dele.
— Meu filho! que perverso fui, não guiando teus irmãos
quando eles eram como tu! Mas deixei escapar esse ensejo, e agora nada posso
fazer. Eles não me atendem, viram-se contra um pai moribundo. Mereço deles esse
tratamento.
— Por que diz que o merece, papai?
— perguntou Guilherme.
— Por muitas razões, meu querido
filhinho. Fui filho desobediente e, só por esse motivo, quando mais algum não
houvesse, mereço ter filhos desobedientes. Minha mãe, viúva, morava neste
bosque, à distância de três ou quatro dias de caminho. Eu era seu único filho.
Um dia fugi, e nunca mais a vi, nem ouvi falar dela.
— Ela vive ainda — perguntou-lhe
Guilherme.
— Não sei; mas, quer viva, quer
morta, não a tornarei a ver neste mundo. O que desejava era que ela soubesse
que estou inteiramente arrependido dos meus pecados.
O rachador não viveu muito tempo.
Os rapazes sepultaram-no no dia
seguinte num canto escuro do bosque, pouco distante da choupana. Depois de
encherem a cova voltaram para casa, começando desde então a conspirar contra
Guilherme, a quem aborreciam por seus costumes não serem iguais aos deles.
— Não devemos tê-lo conosco — lembrou
um dele, — para que, quando matarmos os veados do rei, não diga o que fazemos
— Mas não o devemos matar — opinou
o outro, — para que o seu sangue se não levante contra nós.
— Levemo-lo pela mata adentro, à
distância de três dias de caminho — disse o terceiro, — e deixemo-lo lá ficar. Então
não tornará a contar nada de seus irmãos.
— Mas devemos ter cuidado de
prender Piloto — disse o quarto, — senão teremos de sofrer algum estorvo,
porque, de certo, não há de querer deixar Guilherme.
Tendo esses perversos tramado desse
modo tão horrível plano, levantaram-se no dia seguinte de madrugada e
prepararam um dos jumentos mais fortes, sobre o qual puseram o seu irmãozinho,
que fizeram sair da cama, ajudando-o a vestir-se muito à pressa.
— Onde vamos? — indagou Guilherme,
que nenhum mal receava.
— Vamos — respondeu o mais velho, —
daqui a três dias de caminho, à caça no bosque, e tu hás de ir conosco?
— Quê? caçar os veados do rei?...
Os irmãos não responderam, mas
olharam uns para os outros.
Piloto estava esperando o momento
de seguir o jumento em que seu amozinho ia montado, movendo a cauda, e saltando
de um para outro lado, a mostrar que estava impaciente para partir, quando um
dos moços, trouxe uma corda, que atou ao pescoço do pobre cão, e o arrastou
para dentro de casa.
— Piloto não vai conosco? — perguntou
Guilherme.
— Não, respondeu o mais velho.
— Mas, como vamos nos demorar
alguns dias, seria bom deitar-lhe de comer — acrescentou o menino.
— Trate de sua vida. Nós teremos
cuidado dele — responderam.
Piloto ficou preso e estando todos
os irmãos prontos, puseram-se a caminho pela mata adentro.
Viajaram durante três dias, só
parando para comer e dormir.
Na manhã do quarto dia, Guilherme
estava muito cansado, e dormia tão profundamente, que não ouviu seus irmãos
levantarem-se e partirem em silêncio para casa, levando consigo o jumento.
Já o sol ia alto quando acordou.
Sentou-se observando tudo em redor de si.
A princípio não se lembrou onde
estava, nem como tinha vindo para aquele lugar; mas, quando percebeu que os
seus companheiros tinham partido, e que ele ficará sozinho, começou a chorar
amargamente è a gritar por seus irmãos.
A sua voz retinia pelo bosque, mas
nenhuma resposta se ouvia. Os irmãos já estavam muitas léguas distante dele.
Passou o dia inteiro no bosque, a
chorar amargamente. À tarde, receando pernoitar ali, naquela solidão, começou a
caminhar sem destino.
Quando ia, a correr, descobriu uma
corrente de água, que o encheu de receio, por não saber como poderia atravessar
para a outra banda. De repente teve um susto terrível, ouvindo atrás de si um
estrépito de pés, semelhante ao caminhar de uma fera. O som cada vez mais se
aproximava, até que, por fim, o pobre Guilherme, cheio de medo, e não podendo
correr mais, caiu estendido no chão, julgando que iria ser imediatamente
despedaçado. Então o animal, chegou ao pé dele e pôs-lhe a cabeça tão perto da
face, que, sentindo-o respirar, julgou o menino que ia ser devorado. Mas, em
vez de o morder ou ferir, começou a lambê-lo e a fazer soar um latido de
alegria.
Guilherme reconheceu o seu fiel
Piloto, que tinha arrebentado a corda com que estava amarrado em casa, vindo
todo o caminho, por entre a mata, em busca do seu amozinho.
Lembrando-se finalmente que ainda
estava no bosque, num lugar de grande perigo, continuou a correr o mais
depressa que podia, até chegar à corrente, parando por não saber a altura da
água. Mas, ouvindo um lobo uivar pouco distante, meteu-se nela, e tentou atravessá-la.
A força da corrente, fez faltar-lhe os pés de repente; e, de certo, se teria
afogado, se o fiel Piloto o não agarrasse e o trouxesse em segurança para o
lado oposto.
Prosseguiram ambos, quando
Guilherme viu reluzir no escuro, pouco distante de si, dois olhos de algum
animal terrível, e ouviu um uivo semelhante ao do lobo, que o fez parar.
Piloto, atirou-se à fera, e, depois de alguns instantes de luta, conseguiu
matá-la, sufocando-a, com os dentes.
Guilherme continuou a correr e
momentos depois descobriu uma cabana, a cuja porta bateu, sendo tamanha a sua impaciência,
e medo de que outro lobo o seguisse, que bateu três vezes, sem dar tempo a que
lhe respondessem.
Enfim, ouviu dentro a voz de uma
mulher, perguntando:
— Quem está aí?
— Um menino — respondeu Guilherme, —
que se perdeu no bosque...
Aberta a porta, viu Guilherme uma
velha, já curvada ao peso dos anos, trajando vestido de algodão e com uma touca
branca na cabeça.
— Entra, meu menino — disse a
velha, — já que felizmente aqui chegaste.
Depois dele, e Piloto entrarem, ela
cerrou a porta da cabana.
A boa mulher fê-lo despir-se e
mudar toda a roupa. Serviu-lhe depois de comer, e, quando o viu calmo, pediu-lhe
que contasse a sua história.
Então Guilherme narrou tudo o que
sucedera antes da morte de seu pai; o que ele tinha dito a respeito de sua vida
passada, e como se tinha arrependido de seus pecados.
A velha tremia a cada palavra que
Guilherme pronunciava, e via-se obrigada a sentar-se porque começou a
desconfiar que o pai de Guilherme fosse seu filho, que lhe havia fugido havia
muitos anos, e do qual nunca mais havia tido notícias. Esteve sem falar, por
alguns minutos e depois perguntou:
— Dize-me: como se chamava teu pai?
— Antônio da Silva — respondeu
Guilherme.
— Oh! — disse a velha, juntando as
mãos — é ele mesmo! Antônio da Silva era meu filho! E és tu meu filho? meu
neto? — Então abraçou-o e choraram ambos de alegria.
Guilherme continuou a viver com a
avó, até que se tornou homem, tudo fazendo para torná-la feliz. Tomou a seu
cargo tratar das cabras e aves, e trabalhar no jardim; e ela ensinou-o a ler e
a escrever. Tiveram grande cuidado de Piloto, enquanto foi vivo; e, depois que
morreu, enterraram-no no jardim.
Morrendo a velhinha, deixou-lhe a
casa e tudo quanto possuía.
Guilherme casou-se.
Um dia, teria quarenta e tantos
anos de idade, quando, por uma linda tarde de verão, estando sentado à porta
com sua mulher e filhos, viu sair do lado do bosque seis homens, cujos pálidos
semblantes indicavam miséria, sofrimento e privações, com uns velhos sacos de
couro às costas, que pareciam estar vazios, sem sapatos nem meias, pendendo de
seus ombros esfarrapadas camisas.
Pararam à entrada do jardim.
— Nós somos pobres miseráveis —
disseram: Há muitos dias que temos passado sem outro sustento a não ser frutas
silvestres; e há muitas noites que não temos descansado com medo dos lobos.
— Devo compadecer-me de vocês — disse
Guilherme, — porque, em criança, passei um dia inteiro, e parte da noite,
sozinho naquele bosque; e seria comido por esses terríveis animais, se o meu
fiel cão, que está sepultado no jardim, não combatesse por mim e me salvasse.
Durante o tempo em que Guilherme
falou, olhavam os homens uns para os outros.
— Mas pareceis estar cansados e com
fome — continuou Guilherme. — Sentai-vos, e depressa vos daremos alguma coisa
de comer.
A mulher correu à casa, e preparou
às pressas uma boa refeição.
Aquela pobre gente semimorta e
esfarrapada, comeu com sofreguidão. Depois pediram que os deixassem dormir
aquela noite no curral.
— Tenho — disse ele, — um celeiro
pequeno, onde guardo feno, que pode servir para dormirdes. Entretanto, podeis
sentar-vos e estar à vossa vontade.
Os homens ficaram muito agradecidos
e Guilherme começou a conversar, enquanto sua mulher e filhos continuavam no
trabalho.
— Donde vindes e para onde
destinais ir amanhã? Mostrais terdes feito grande jornada, e estardes em má
condição. Alguns de vós demonstram estar doentes, e pareceis homens que têm
sofrido muito.
— Senhor — respondeu um dele, que
aparentava ser o mais velho, nós éramos rachadores, que vivíamos no bosque,
quase três dias distante deste lugar mas, caindo há alguns anos do desagrado do
rei, a nossa cabana foi queimada, e tiraram-nos tudo, sendo metidos numa
enxovia, onde estivemos muito tempo e onde arruinamos totalmente a nossa saúde,
de sorte que, quando nos soltaram, estávamos incapazes de trabalhar. Não tendo
amigo, temos andado errantes, de lugar em lugar, sofrendo todas as privações, e
passando muitas vezes dias inteiros sem comer.
— Receio que cometestes algum
crime; que ofendestes sua majestade.
— Sim, senhor, o nosso crime era
roubar veados. Contudo, desejamos agora viver com honra, e levar melhor vida.
Mas, na nossa vizinhança, ninguém quer saber de nós e não podemos juntar
dinheiro, nem ao menos para comprar um machado para cortar lenha, porque,
então, seguiríamos o nosso antigo modo de vida, e faríamos toda a diligência
para ganharmos o sustento, ainda que estamos realmente reduzidos a tal estado
de fraqueza, que pouco poderíamos fazer.
— Mas — disse Guilherme, cujo
coração começava a comover-se, — não tendes nenhum parente na vossa terra?
Pertenceis todos a uma família?—
— Não temos mais parentes, e somos
todos irmãos, filhos dos mesmos pais. O nosso pai era rachador de lenha:
chamava-se Antônio da Silva.
— E não tínheis um irmãozinho? — perguntou
Guilherme, levantando-se e chegando-se para eles.
Os homens olhavam uns para os
outros, com terror, e não sabiam responder.
— Eu sou esse irmãozinho — disse
Guilherme. — Deus livrou-me da morte, e trouxe-me a esta casa, onde achei,
ainda viva, nossa avó, que me serviu de mãe; e desde então, aqui tenho vivido,
sempre em paz e abundância. Nada receeis, meus irmãos; de bom grado vos perdoo
e já que a Providência vos trouxe aqui, hei de socorrer-vos e consolar-vos.
Jamais sofrereis necessidades.
Os irmãos de Guilherme não puderam
responder-lhe, mas lançaram-se a seus pés, derramando lágrimas de
arrependimento.
Os seis irmãos de Guilherme,
completamente regenerados, viveram durante algum tempo ainda, trabalhando na
medida de suas forças.
Tendo, porém, sofrido muito,
achavam-se fracos e doentes, até que morreram, um a um, sucessivamente.
Guilherme viveu feliz longos anos,
chegando a ver seus netos, e a sua família cada vez mais próspera e feliz.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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