5/01/2025

O menino da mata e o seu cão Piloto (Conto), de Figueiredo Pimentel

 

O MENINO DA MATA E O SEU CÃO PILOTO

Havia em outro tempo, no interior de uma mata, certo rachador de lenha, por nome Antônio, que tinha sete filhos, dos quais, o mais novo, nascido alguns anos depois de seus irmãos, se chamava Guilherme.

A mulher do rachador tinha morrido na infância do pequenino, ficando assim os meninos entregues somente aos cuidados do pai.

Antônio, um homem laborioso, levava a vida a cortar lenha no mato. Depois de atá-la em feixes, carregava alguns jumentos e ia vendê-la à vila, empregando o seu produto naquilo de que sua família carecia.

Obrigava os filhos a trabalhar consigo e, como eles fossem robustos, em breve os mais velhos tornaram-se capazes de fazer quase tanto como ele. Um dia, enquanto Antônio e seus filhos faziam lenha uma árvore caiu sobre ele, e molestou-o tão gravemente, que nunca mais pode trabalhar sobrevindo-lhe uma doença, que pouco a pouco o levou à sepultura. Enquanto a morte se aproximava, começou a recordar-se de sua vida passada, lembrando-se que havia desprezado sua mãe, viúva, de cuja casa havia fugido havia muitos anos. Desde então, começou a ensinar aos filhos os seus deveres para com Deus.

Não se passava um só dia, em que o mísero moribundo rachador não pedisse encarecidamente aos rapazes que se virassem para Deus. Estes, porém, escarneciam dele. Como o velho já não podia cuidar deles, nem provê-los do que lhe faltava, seguiram o seu próprio interesse e vontade.

Guilherme era a sua única consolação neste mundo. O rapazinho velava a seu lado, sempre pronto a ir buscar tudo quanto ele carecia.

Um dia em que os filhos mais velhos tinham ido roubar veados na mata, Antônio e seu filhinho, conversavam sentados à porta da choupana, deitando-se Piloto, cão de Guilherme, aos pés dele.

Meu filho! que perverso fui, não guiando teus irmãos quando eles eram como tu! Mas deixei escapar esse ensejo, e agora nada posso fazer. Eles não me atendem, viram-se contra um pai moribundo. Mereço deles esse tratamento.

— Por que diz que o merece, papai? — perguntou Guilherme.

— Por muitas razões, meu querido filhinho. Fui filho desobediente e, só por esse motivo, quando mais algum não houvesse, mereço ter filhos desobedientes. Minha mãe, viúva, morava neste bosque, à distância de três ou quatro dias de caminho. Eu era seu único filho. Um dia fugi, e nunca mais a vi, nem ouvi falar dela.

— Ela vive ainda — perguntou-lhe Guilherme.

— Não sei; mas, quer viva, quer morta, não a tornarei a ver neste mundo. O que desejava era que ela soubesse que estou inteiramente arrependido dos meus pecados.

O rachador não viveu muito tempo.

Os rapazes sepultaram-no no dia seguinte num canto escuro do bosque, pouco distante da choupana. Depois de encherem a cova voltaram para casa, começando desde então a conspirar contra Guilherme, a quem aborreciam por seus costumes não serem iguais aos deles.

— Não devemos tê-lo conosco — lembrou um dele, — para que, quando matarmos os veados do rei, não diga o que fazemos

— Mas não o devemos matar — opinou o outro, — para que o seu sangue se não levante contra nós.

— Levemo-lo pela mata adentro, à distância de três dias de caminho — disse o terceiro, — e deixemo-lo lá ficar. Então não tornará a contar nada de seus irmãos.

— Mas devemos ter cuidado de prender Piloto — disse o quarto, — senão teremos de sofrer algum estorvo, porque, de certo, não há de querer deixar Guilherme.

Tendo esses perversos tramado desse modo tão horrível plano, levantaram-se no dia seguinte de madrugada e prepararam um dos jumentos mais fortes, sobre o qual puseram o seu irmãozinho, que fizeram sair da cama, ajudando-o a vestir-se muito à pressa.

— Onde vamos? — indagou Guilherme, que nenhum mal receava.

— Vamos — respondeu o mais velho, — daqui a três dias de caminho, à caça no bosque, e tu hás de ir conosco?

— Quê? caçar os veados do rei?...

Os irmãos não responderam, mas olharam uns para os outros.

Piloto estava esperando o momento de seguir o jumento em que seu amozinho ia montado, movendo a cauda, e saltando de um para outro lado, a mostrar que estava impaciente para partir, quando um dos moços, trouxe uma corda, que atou ao pescoço do pobre cão, e o arrastou para dentro de casa.

— Piloto não vai conosco? — perguntou Guilherme.

— Não, respondeu o mais velho.

— Mas, como vamos nos demorar alguns dias, seria bom deitar-lhe de comer — acrescentou o menino.

— Trate de sua vida. Nós teremos cuidado dele — responderam.

Piloto ficou preso e estando todos os irmãos prontos, puseram-se a caminho pela mata adentro.

Viajaram durante três dias, só parando para comer e dormir.

Na manhã do quarto dia, Guilherme estava muito cansado, e dormia tão profundamente, que não ouviu seus irmãos levantarem-se e partirem em silêncio para casa, levando consigo o jumento.

Já o sol ia alto quando acordou. Sentou-se observando tudo em redor de si.

A princípio não se lembrou onde estava, nem como tinha vindo para aquele lugar; mas, quando percebeu que os seus companheiros tinham partido, e que ele ficará sozinho, começou a chorar amargamente è a gritar por seus irmãos.

A sua voz retinia pelo bosque, mas nenhuma resposta se ouvia. Os irmãos já estavam muitas léguas distante dele.

Passou o dia inteiro no bosque, a chorar amargamente. À tarde, receando pernoitar ali, naquela solidão, começou a caminhar sem destino.

Quando ia, a correr, descobriu uma corrente de água, que o encheu de receio, por não saber como poderia atravessar para a outra banda. De repente teve um susto terrível, ouvindo atrás de si um estrépito de pés, semelhante ao caminhar de uma fera. O som cada vez mais se aproximava, até que, por fim, o pobre Guilherme, cheio de medo, e não podendo correr mais, caiu estendido no chão, julgando que iria ser imediatamente despedaçado. Então o animal, chegou ao pé dele e pôs-lhe a cabeça tão perto da face, que, sentindo-o respirar, julgou o menino que ia ser devorado. Mas, em vez de o morder ou ferir, começou a lambê-lo e a fazer soar um latido de alegria.

Guilherme reconheceu o seu fiel Piloto, que tinha arrebentado a corda com que estava amarrado em casa, vindo todo o caminho, por entre a mata, em busca do seu amozinho.

Lembrando-se finalmente que ainda estava no bosque, num lugar de grande perigo, continuou a correr o mais depressa que podia, até chegar à corrente, parando por não saber a altura da água. Mas, ouvindo um lobo uivar pouco distante, meteu-se nela, e tentou atravessá-la. A força da corrente, fez faltar-lhe os pés de repente; e, de certo, se teria afogado, se o fiel Piloto o não agarrasse e o trouxesse em segurança para o lado oposto.

Prosseguiram ambos, quando Guilherme viu reluzir no escuro, pouco distante de si, dois olhos de algum animal terrível, e ouviu um uivo semelhante ao do lobo, que o fez parar. Piloto, atirou-se à fera, e, depois de alguns instantes de luta, conseguiu matá-la, sufocando-a, com os dentes.

Guilherme continuou a correr e momentos depois descobriu uma cabana, a cuja porta bateu, sendo tamanha a sua impaciência, e medo de que outro lobo o seguisse, que bateu três vezes, sem dar tempo a que lhe respondessem.

Enfim, ouviu dentro a voz de uma mulher, perguntando:

— Quem está aí?

— Um menino — respondeu Guilherme, — que se perdeu no bosque...

Aberta a porta, viu Guilherme uma velha, já curvada ao peso dos anos, trajando vestido de algodão e com uma touca branca na cabeça.

— Entra, meu menino — disse a velha, — já que felizmente aqui chegaste.

Depois dele, e Piloto entrarem, ela cerrou a porta da cabana.

A boa mulher fê-lo despir-se e mudar toda a roupa. Serviu-lhe depois de comer, e, quando o viu calmo, pediu-lhe que contasse a sua história.

Então Guilherme narrou tudo o que sucedera antes da morte de seu pai; o que ele tinha dito a respeito de sua vida passada, e como se tinha arrependido de seus pecados.

A velha tremia a cada palavra que Guilherme pronunciava, e via-se obrigada a sentar-se porque começou a desconfiar que o pai de Guilherme fosse seu filho, que lhe havia fugido havia muitos anos, e do qual nunca mais havia tido notícias. Esteve sem falar, por alguns minutos e depois perguntou:

— Dize-me: como se chamava teu pai?

— Antônio da Silva — respondeu Guilherme.

— Oh! — disse a velha, juntando as mãos — é ele mesmo! Antônio da Silva era meu filho! E és tu meu filho? meu neto? — Então abraçou-o e choraram ambos de alegria.

Guilherme continuou a viver com a avó, até que se tornou homem, tudo fazendo para torná-la feliz. Tomou a seu cargo tratar das cabras e aves, e trabalhar no jardim; e ela ensinou-o a ler e a escrever. Tiveram grande cuidado de Piloto, enquanto foi vivo; e, depois que morreu, enterraram-no no jardim.

Morrendo a velhinha, deixou-lhe a casa e tudo quanto possuía.

Guilherme casou-se.

Um dia, teria quarenta e tantos anos de idade, quando, por uma linda tarde de verão, estando sentado à porta com sua mulher e filhos, viu sair do lado do bosque seis homens, cujos pálidos semblantes indicavam miséria, sofrimento e privações, com uns velhos sacos de couro às costas, que pareciam estar vazios, sem sapatos nem meias, pendendo de seus ombros esfarrapadas camisas.

Pararam à entrada do jardim.

— Nós somos pobres miseráveis — disseram: Há muitos dias que temos passado sem outro sustento a não ser frutas silvestres; e há muitas noites que não temos descansado com medo dos lobos.

— Devo compadecer-me de vocês — disse Guilherme, — porque, em criança, passei um dia inteiro, e parte da noite, sozinho naquele bosque; e seria comido por esses terríveis animais, se o meu fiel cão, que está sepultado no jardim, não combatesse por mim e me salvasse.

Durante o tempo em que Guilherme falou, olhavam os homens uns para os outros.

— Mas pareceis estar cansados e com fome — continuou Guilherme. — Sentai-vos, e depressa vos daremos alguma coisa de comer.

A mulher correu à casa, e preparou às pressas uma boa refeição.

Aquela pobre gente semimorta e esfarrapada, comeu com sofreguidão. Depois pediram que os deixassem dormir aquela noite no curral.

— Tenho — disse ele, — um celeiro pequeno, onde guardo feno, que pode servir para dormirdes. Entretanto, podeis sentar-vos e estar à vossa vontade.

Os homens ficaram muito agradecidos e Guilherme começou a conversar, enquanto sua mulher e filhos continuavam no trabalho.

— Donde vindes e para onde destinais ir amanhã? Mostrais terdes feito grande jornada, e estardes em má condição. Alguns de vós demonstram estar doentes, e pareceis homens que têm sofrido muito.

— Senhor — respondeu um dele, que aparentava ser o mais velho, nós éramos rachadores, que vivíamos no bosque, quase três dias distante deste lugar mas, caindo há alguns anos do desagrado do rei, a nossa cabana foi queimada, e tiraram-nos tudo, sendo metidos numa enxovia, onde estivemos muito tempo e onde arruinamos totalmente a nossa saúde, de sorte que, quando nos soltaram, estávamos incapazes de trabalhar. Não tendo amigo, temos andado errantes, de lugar em lugar, sofrendo todas as privações, e passando muitas vezes dias inteiros sem comer.

— Receio que cometestes algum crime; que ofendestes sua majestade.

— Sim, senhor, o nosso crime era roubar veados. Contudo, desejamos agora viver com honra, e levar melhor vida. Mas, na nossa vizinhança, ninguém quer saber de nós e não podemos juntar dinheiro, nem ao menos para comprar um machado para cortar lenha, porque, então, seguiríamos o nosso antigo modo de vida, e faríamos toda a diligência para ganharmos o sustento, ainda que estamos realmente reduzidos a tal estado de fraqueza, que pouco poderíamos fazer.

— Mas — disse Guilherme, cujo coração começava a comover-se, — não tendes nenhum parente na vossa terra? Pertenceis todos a uma família?—

— Não temos mais parentes, e somos todos irmãos, filhos dos mesmos pais. O nosso pai era rachador de lenha: chamava-se Antônio da Silva.

— E não tínheis um irmãozinho? — perguntou Guilherme, levantando-se e chegando-se para eles.

Os homens olhavam uns para os outros, com terror, e não sabiam responder.

— Eu sou esse irmãozinho — disse Guilherme. — Deus livrou-me da morte, e trouxe-me a esta casa, onde achei, ainda viva, nossa avó, que me serviu de mãe; e desde então, aqui tenho vivido, sempre em paz e abundância. Nada receeis, meus irmãos; de bom grado vos perdoo e já que a Providência vos trouxe aqui, hei de socorrer-vos e consolar-vos. Jamais sofrereis necessidades.

Os irmãos de Guilherme não puderam responder-lhe, mas lançaram-se a seus pés, derramando lágrimas de arrependimento.

Os seis irmãos de Guilherme, completamente regenerados, viveram durante algum tempo ainda, trabalhando na medida de suas forças.

Tendo, porém, sofrido muito, achavam-se fracos e doentes, até que morreram, um a um, sucessivamente.

Guilherme viveu feliz longos anos, chegando a ver seus netos, e a sua família cada vez mais próspera e feliz.



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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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