Gilles de Retz era um opulento
fidalgo, barão dos tempos feudais, medonhamente feio; e mais horroroso e
repugnante parecia porque tinha a barba azul. Daí a antonomásia pela qual era
conhecido.
Já havia enviuvado vinte vezes,
quando se lembrou de casar novamente, e pediu Helena, formosíssima jovem, filha
de uma vizinha.
A moça recusou, pois não queria
desposar um homem que tinha a barba azul, viúvo vinte vezes, sem que ninguém
soubesse o que era feito de suas esposas, nem de que tinham morrido.
O barão não desanimou. Para
fazer-se agradável levou-a ao castelo, com a mãe, a irmã e algumas amigas, além
de vários moços. Aí, durante uma semana, divertiu os seus convidados,
oferecendo-lhes esplendidas festas, bailes, passeios, cavalhadas, piqueniques,
etc.
Foram tão deslumbrante os
folguedos, que ao fim da semana, Helena principiou a achar que o rico senhor
não era tão horroroso como no começo lhe parecera, que a sua barba não era tão
azul, e que era mesmo um cavalheiro correto e bem prendado.
Resolveu, portanto, aceitar a
proposta. O casamento efetuou-se pouco tempo depois, e os novos esposos foram
residir no esplendoroso palácio feudal.
Menos de um mês passado, o castelão
despediu-se, dizendo à mulher que ia fazer uma pequena viagem.
Recomendou-lhe que se divertisse
quanto quisesse, durante a sua ausência, podendo convidar as amigas.
Ao despedir-se, falou-lhe:
— Aqui tens as chaves de todos os
móveis e aposentos do castelo. Esta pequenina é do gabinete que existe no
extremo oposto à galeria do andar de baixo. Abre, esquadrinha, percorre tudo,
mas proíbo-te terminantemente que entres nesse quarto. Se me desobedeceres, hás
de sentir o peso da minha cólera.
Ela prometeu que observaria
exatamente tudo quanto o barão lhe ordenava. O marido depois de tê-la abraçado,
subiu para a carruagem e partiu.
As amigas e as vizinhas não
esperavam pelo convite. Curiosas em extremo, estavam cheias de desejos de verem
as riquezas e os vários domínios de Helena, cuja sorte invejavam.
No mesmo dia foram visitá-la, e
desde logo percorreram todas as dependências do castelo, canto por canto,
remexendo peça por peça, farejando móvel por móvel.
Não cessavam de exagerar e invejar
a felicidade da amiga, que era a única a não achar prazer naquilo, ansiosa para
examinar o gabinete da galeria.
Depois de percorrerem o vasto
edifício, chegaram ao quarto. A moça esperou que se retirassem para outro
ponto, e, quando se apanhou sozinho abriu a porta.
A princípio nada enxergou, em vista
da escuridão que reinava. Após alguns minutos começou a distinguir: percebeu
que o assoalho estava inundado de sangue coagulado, e sobre ele os cadáveres
das vinte esposas do Barba Azul.
Helena, quando viu aquele pavoroso
espetáculo, quase morreu de susto. Conseguiu, porém, acalmar-se; fechou
novamente o gabinete e foi reunir-se às visitas.
No dia seguinte notou que a chave
estava tinta de sangue. Limpou-a, mas o sangue não saia, aparecendo sempre no
mesmo ponto, porque a chave era encantada.
Quando Barba Azul voltou da viagem,
a mulher fez tudo para testemunhar grande prazer com o seu regresso, que não
esperava tão cedo. O marido, a primeira coisa que fez, foi pedir-lhe as chaves.
Helena entregou-lhas, a tremer.
— Por que motivo— perguntou ele — não
se acha aqui a chave do gabinete?
— Creio que a deixei no meu
quarto... — respondeu ela gaguejando.
— Então vá buscá-la.
Ela saiu, e não teve remédio senão
trazê-la.
— Que sangue é este? — perguntou Barba
Azul.
— Não sei...falou com voz sumida,
quase morrendo...
— Não sabes? Pois eu sei, Quiseste
entrar no gabinete, e agora hás de ir para lá fazer companhia às outras.
A moça caiu aos pés do marido, chorando,
pedindo perdão. Ele mostrou-se inflexível.
Vendo que não podia escapar à
morte, Helena suplicou-lhe que lhe concedesse algum tempo para rezar.
— Concedo uma hora, nem um minuto
mais! — declarou peremptoriamente o perverso assassino.
A mulher subiu no alto da torre,
juntamente com a irmã, que lhe estava fazendo companhia.
— Ana — disse ela, — espia se
nossos irmãos vêm vindo. Prometeram que chegariam hoje, sem falta.
A irmã aproximou-se da janela.
Helena, ajoelhada, enquanto rezava, perguntava de vez em quando:
— Ana, não vês ninguém, Ana?
— Só vejo o campo verdejante.
Barba Azul, embaixo, gritava:
— Avia-te, mulher, que o tempo está
se passando! Olha que te vou buscar...
— Ainda um minuto!— respondia ela.
E para a irmã:
— Mana, minha irmã Ana, não vês
ninguém?
— Só vejo campo verdejante — dizia
a outra.
Barba Azul continuava a gritar:
— Desce! ou eu vou lá em cima.
— Já vou, meu marido — dizia
Helena, e baixinho para Ana: — Não vêm ainda, mana?!
— Estou vendo uma nuvem de pó.
— Serão eles, mana!
— Espera... Não!... É um rebanho de
ovelhas.
— Desces ou não? — tornava Barba
Azul.
— Ainda um instante... Mana, mana,
vêm ou não vêm?
— Vejo dois cavalheiros, que vêm
pela estrada, mas ainda estão muito longe... Ah! são eles! Estão fazendo sinal!
E agitava o lenço, chamando-os.
Barba Azul, impaciente começou a
gritar com tanta força, que toda a casa estremecia. A desgraçada mulher desceu,
e foi lançar-lhe aos pés.
— Qual Isso é inútil; escusas
chorar, porque tens de morrer.
E pegando-lhe nos cabelos com a mão
esquerda, puxou a espada com a direita. A infeliz criatura, voltando para ele
os seus olhos moribundos, pediu-lhe mais uns minutos de espera.
— Não! Não! Recomenda-te a Deus.
E levantou a espada.
Nesse momento bateram, com tal
estrondo, que Barba Azul suspendeu o golpe. A porta foi arrombada, e dois moços
entraram, de espada desembainhada, dirigindo-se para o carrasco.
Barba Azul reconheceu os seus
cunhados, ambos tenentes do exército, e fugiu. Mas os dois oficiais correram em
sua perseguição; e, apanhando-o, mataram-no.
Helena nem tinha forças para
abraçar os irmãos; vendo-se, porém, livre do perigo, recobrou ânimo.
Ficando viúva herdou a imensa
fortuna de seu marido, e empregou-se em fazer benefícios vivendo feliz com a
mãe, a irmã e os irmãos.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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