5/01/2025

O Barba Azul (Conto), de Figueiredo Pimentel

O BARBA AZUL

Gilles de Retz era um opulento fidalgo, barão dos tempos feudais, medonhamente feio; e mais horroroso e repugnante parecia porque tinha a barba azul. Daí a antonomásia pela qual era conhecido.

Já havia enviuvado vinte vezes, quando se lembrou de casar novamente, e pediu Helena, formosíssima jovem, filha de uma vizinha.

A moça recusou, pois não queria desposar um homem que tinha a barba azul, viúvo vinte vezes, sem que ninguém soubesse o que era feito de suas esposas, nem de que tinham morrido.

O barão não desanimou. Para fazer-se agradável levou-a ao castelo, com a mãe, a irmã e algumas amigas, além de vários moços. Aí, durante uma semana, divertiu os seus convidados, oferecendo-lhes esplendidas festas, bailes, passeios, cavalhadas, piqueniques, etc.

Foram tão deslumbrante os folguedos, que ao fim da semana, Helena principiou a achar que o rico senhor não era tão horroroso como no começo lhe parecera, que a sua barba não era tão azul, e que era mesmo um cavalheiro correto e bem prendado.

Resolveu, portanto, aceitar a proposta. O casamento efetuou-se pouco tempo depois, e os novos esposos foram residir no esplendoroso palácio feudal.

Menos de um mês passado, o castelão despediu-se, dizendo à mulher que ia fazer uma pequena viagem.

Recomendou-lhe que se divertisse quanto quisesse, durante a sua ausência, podendo convidar as amigas.

Ao despedir-se, falou-lhe:

— Aqui tens as chaves de todos os móveis e aposentos do castelo. Esta pequenina é do gabinete que existe no extremo oposto à galeria do andar de baixo. Abre, esquadrinha, percorre tudo, mas proíbo-te terminantemente que entres nesse quarto. Se me desobedeceres, hás de sentir o peso da minha cólera.

Ela prometeu que observaria exatamente tudo quanto o barão lhe ordenava. O marido depois de tê-la abraçado, subiu para a carruagem e partiu.

As amigas e as vizinhas não esperavam pelo convite. Curiosas em extremo, estavam cheias de desejos de verem as riquezas e os vários domínios de Helena, cuja sorte invejavam.

No mesmo dia foram visitá-la, e desde logo percorreram todas as dependências do castelo, canto por canto, remexendo peça por peça, farejando móvel por móvel.

Não cessavam de exagerar e invejar a felicidade da amiga, que era a única a não achar prazer naquilo, ansiosa para examinar o gabinete da galeria.

Depois de percorrerem o vasto edifício, chegaram ao quarto. A moça esperou que se retirassem para outro ponto, e, quando se apanhou sozinho abriu a porta.

A princípio nada enxergou, em vista da escuridão que reinava. Após alguns minutos começou a distinguir: percebeu que o assoalho estava inundado de sangue coagulado, e sobre ele os cadáveres das vinte esposas do Barba Azul.

Helena, quando viu aquele pavoroso espetáculo, quase morreu de susto. Conseguiu, porém, acalmar-se; fechou novamente o gabinete e foi reunir-se às visitas.

No dia seguinte notou que a chave estava tinta de sangue. Limpou-a, mas o sangue não saia, aparecendo sempre no mesmo ponto, porque a chave era encantada.

Quando Barba Azul voltou da viagem, a mulher fez tudo para testemunhar grande prazer com o seu regresso, que não esperava tão cedo. O marido, a primeira coisa que fez, foi pedir-lhe as chaves.

Helena entregou-lhas, a tremer.

— Por que motivo— perguntou ele — não se acha aqui a chave do gabinete?

— Creio que a deixei no meu quarto... — respondeu ela gaguejando.

— Então vá buscá-la.

Ela saiu, e não teve remédio senão trazê-la.

— Que sangue é este? — perguntou Barba Azul.

— Não sei...falou com voz sumida, quase morrendo...

— Não sabes? Pois eu sei, Quiseste entrar no gabinete, e agora hás de ir para lá fazer companhia às outras.

A moça caiu aos pés do marido, chorando, pedindo perdão. Ele mostrou-se inflexível.

Vendo que não podia escapar à morte, Helena suplicou-lhe que lhe concedesse algum tempo para rezar.

— Concedo uma hora, nem um minuto mais! — declarou peremptoriamente o perverso assassino.

A mulher subiu no alto da torre, juntamente com a irmã, que lhe estava fazendo companhia.

— Ana — disse ela, — espia se nossos irmãos vêm vindo. Prometeram que chegariam hoje, sem falta.

A irmã aproximou-se da janela. Helena, ajoelhada, enquanto rezava, perguntava de vez em quando:

— Ana, não vês ninguém, Ana?

— Só vejo o campo verdejante.

Barba Azul, embaixo, gritava:

— Avia-te, mulher, que o tempo está se passando! Olha que te vou buscar...

— Ainda um minuto!— respondia ela. E para a irmã:

— Mana, minha irmã Ana, não vês ninguém?

— Só vejo campo verdejante — dizia a outra.

Barba Azul continuava a gritar:

— Desce! ou eu vou lá em cima.

— Já vou, meu marido — dizia Helena, e baixinho para Ana: — Não vêm ainda, mana?!

— Estou vendo uma nuvem de pó.

— Serão eles, mana!

— Espera... Não!... É um rebanho de ovelhas.

— Desces ou não? — tornava Barba Azul.

— Ainda um instante... Mana, mana, vêm ou não vêm?

— Vejo dois cavalheiros, que vêm pela estrada, mas ainda estão muito longe... Ah! são eles! Estão fazendo sinal!

E agitava o lenço, chamando-os.

Barba Azul, impaciente começou a gritar com tanta força, que toda a casa estremecia. A desgraçada mulher desceu, e foi lançar-lhe aos pés.

— Qual Isso é inútil; escusas chorar, porque tens de morrer.

E pegando-lhe nos cabelos com a mão esquerda, puxou a espada com a direita. A infeliz criatura, voltando para ele os seus olhos moribundos, pediu-lhe mais uns minutos de espera.

— Não! Não! Recomenda-te a Deus.

E levantou a espada.

Nesse momento bateram, com tal estrondo, que Barba Azul suspendeu o golpe. A porta foi arrombada, e dois moços entraram, de espada desembainhada, dirigindo-se para o carrasco.

Barba Azul reconheceu os seus cunhados, ambos tenentes do exército, e fugiu. Mas os dois oficiais correram em sua perseguição; e, apanhando-o, mataram-no.

Helena nem tinha forças para abraçar os irmãos; vendo-se, porém, livre do perigo, recobrou ânimo.

Ficando viúva herdou a imensa fortuna de seu marido, e empregou-se em fazer benefícios vivendo feliz com a mãe, a irmã e os irmãos.



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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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