Estando às portas da morte, um
moleiro, já adiantado em anos, chamou para junto de si os seus três únicos
filhos, Augusto, Heitor e Felipe. Depois de lhes dar muitos conselhos,
disse-lhes que só lhe podia deixar por herança o seu moinho, o seu burro e o
seu gato Malhado. Em seguida
abençoou-os e expirou.
Os rapazes, depois de chorarem a
morte de seu bom pai, dividiram o pequeno legado. Augusto, o mais velho ficou
com o moinho; Heitor teve o burro; e ao mais moço, Felipe, coube o gato.
O dono de Malhado não ficou muito satisfeito com o que lhe havia tocado, e
saiu de casa para ir ganhar a vida. No meio do caminho sentou-se tristemente à
sombra de uma árvore, refletindo em voz alta sobre a sua triste sorte:
— Meus irmãos, com o que têm,
poderão ganhar a vida honradamente e sem grande canseira, ao passo que eu,
quando tiver comido o meu gato, morrerei de fome.
Malhado, ouvindo aquilo, sossegou-o.
— Não se desespere, meu amo. Dê-me
um saco, mande-me fazer um parte de botas de verniz, e verá que não há de ser
tão infeliz como pensa.
Felipe não tinha grande confiança
nos serviços do bichano. Entretanto, lembrando-se quanto era astucioso para
caçar ratos, não desanimou de todo, e mandou fazer as botas.
Assim que o gato as obteve,
calçou-as, colocou o saquinho ao pescoço pegou nos cordões com as patas
dianteiras e dirigiu-se para um campo onde havia muitos coelhos.
Meteu comida dentro; e
estendendo-se como se estivesse morto, esperou que alguns coelhinhos viessem comer.
Não haviam decorridos vinte
minutos, quando um coelhinho entrou. Malhado,
puxando pelos cordões do saco, agarrou-o.
Satisfeito com seu estratagema,
saiu dali, marchou para o palácio do rei, e pediu audiência. O monarca
recebeu-o nos seus aposentos particulares, onde ele entrou, fazendo cortesias,
seguindo a mais rigorosa etiqueta.
— Permita-me Vossa Magestade
oferecer-lhe este coelho, que meu amo, o muito ilustre senhor Marquês de
Carabás, me encarregou de trazer.
O rei agradeceu muito, admirado de
ver aquele bicho tão bonito calçado de botas de verniz.
Malhado, durante perto de três meses, continuou a caçar daquele
modo, ora coelhos, ora lebres, perdizes etc. Levava-os para sustento de Felipe;
e, de vez em quando, ia oferecê-los ao rei sempre em nome do Marquês de
Carabás, cujo título ficou sendo conhecido na corte.
Um dia soube que o poderoso
príncipe ia passear, devendo passar pelas margens do rio. Correu para o senhor
e disse-lhe:
— Se quiser seguir o meu conselho,
a sua fortuna está feita. Vá banhar-se ao rio, perto da ponte e deixe o resto
por minha conta.
Felipe, isto é, o Marquês de
Carabás, fez o que o animal lhe aconselhara embora não soubesse o fim a que
queria chegar.
Pouco depois de entra n’água, o rei
passou; e o gato, colocando-se em frente à carruagem bradou:
— Socorro! Socorro! Acudam ao Sr.
Marquês de Carabás, que se está afogando!...
A esse apelo, o rei pôs a cabeça
fora da carruagem; e reconhecendo o gato, ordenou aos soldados da sua guarda,
que acudissem ao fidalgo.
Enquanto se retirava o marquês, Malhado contou, que, na ocasião em que
seu amo estava tomando banho alguns ladrões lhe haviam roubado a roupa.
O monarca mandou buscar um dos seus
mais belos e luxuosos trajes. Felipe, vestindo-se, ficou um verdadeiro fidalgo,
era moço distinto e bonito. Foi agradecer a Sua Majestade e lançou ternos
olhares para a jovem princesa, que correspondeu ao namoro.
Depois o rei convidou-o a subir para
o carro.
O gato contente por ver que seus
planos estavam sendo bem executados, saiu adiante, pelo caminho por onde o
ilustre príncipe e sua comitiva tinham de passar.
— Se vocês não disserem ao rei que estes
campos pertencem ao Sr. Marquês de Carabás, morrerão...
O rei, passando poucos minutos
depois, perguntou efetivamente a quem pertenciam.
— São do Sr. Marquês de Carabás — responderam
eles, receosos da ameaça do gato de botas.
Malhado, seguindo sempre na frente, fazia a mesma recomendação aos
trabalhadores que via, quer fossem homens de lavoura, quer pastores.
O rei fazia a todos a mesma
pergunta, e obtinha sempre a mesma resposta. Ficou admirado da riqueza do
Marquês de Carabás, e felicitou-o.
Finalmente o inteligente e
astucioso animal chegou ao majestoso castelo de um gigante, muito afamado
naquele país. Pediu para lhe falar, e disse-lhe que não tinha querido passar
por ali sem chegar para cumprimentar uma pessoa distinta.
— Ouvi também dizer — falou ele, — que
vossa excelência tem a habilidade de se transformar naquilo que quiser, num
animal... por exemplo... num leão. Será verdade?
— Ora, respondeu o gigante, — isso
nada me custa. Em que queres que me transforme?
— Num leão, se for possível.
— Vai ver.
Imediatamente o gigante virou um
leão, e Malhado teve tanto medo que
pulou para cima do telhado, só voltando quando o mágico retornou sua forma
natural.
— Ora, também não é muito de
admirar — disse o gato, porque o leão é um animal grande, e Vossa Excelência é
um gigante. Duvido, mas é que se transforme num bichinho pequeno...
— Como é que duvidas?!... — interrompeu
o gigante com voz terrível. — Diz em que bichinho queres que me transforme!...
— Num camundongo...
Mal tinha acabado, quando o
homenzarrão se mudou em ratinho.
Malhado, mais que depressa, abocanhou-o e comeu-o.
Meia hora depois, o rei passou em
frente ao castelo e o gato, assim que ouviu o rodar do carro, correu para a
porta principal, gritando:
— Seja bem-vindo, real senhor, à
choupana do Sr. Marquês de Carabás!
— Como, Marquês?! — exclamou o rei,
— pois esse palácio majestoso também é seu?
Entraram. Uma lauta refeição estava
preparada para o gigante. O rei, a princesa e os fidalgos sentaram-se e comeram
à farta.
Então, Sua Majestade, encantado com
a opulência do marquês, ofereceu-lhe a filha em casamento, e Felipe desposou-a
dias depois, no meio de grandes festas.
Malhado teve carta de nobreza, e nunca mais correu atrás dos ratos,
senão de vez em quando, por desfastio.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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