NADIR VAI AO INFERNO
Assim que almoçou uma suculenta feijoada, Nadir foi fazer a sua sesta costumeira. Nem bem cochilara, ouviu como um bater de asas em algum canto da casa. Abrindo inteiramente os olhos, viu diante de si um ser resplandecente e todo de preto, o qual lhe sorria discretamente ao mesmo tempo em que recolhia suas asas. De um pulo ela ergueu-se de olhos arregalados do sofá e se pôs de joelhos diante daquela majestosa criatura. Esta, tomando-lhe pelas mãos assoprou-lhe brandamente no rosto um hálito quente que a fez levantar como uma corça quando sente a presença de seu predador.
— Sossegai teu coração e abrandai teu espírito agitado, minha boa serva! Foste escolhida para testemunhar os mistérios até agora desconhecidos dos mortais. Acompanhar-me-ás aos subterrâneos do inferno, onde verás com teus próprios olhos as almas perdidas, as quais, por suas vidas dissolutas na terra, padecem ali as mais atrozes torturas.
Nadir, que até ali permanecia pálida e inerte como uma estátua, sentindo a mão daquele ser poderoso tocar-lhe num dos ombros, pôs a andar de um lado para o outro sem saber o que dizer e como agir diante do ente fantástico, bem como da sua terrível incumbência. Porém, parando bruscamente diante dele, prostrou-se mais uma vez com temor e deslumbramento, dizendo sobressaltada:
— Oh, imortal e poderosa criatura! Faças de mim o vosso instrumento. Aqui me ponho inteiramente ao vosso dispor para cumprir com essa árdua missão. Se vós me vedes merecedora dessa graça, prostro-me aos vossos pés sem reserva.
Dizendo essas palavras, Nadir lançou o rosto em terra entre risos e lágrimas. O espectro então tomou-a nos seus braços e, batendo as asas num movimento de relâmpago, arrancou dali para o infinito tenebroso.
Ali chegando, pararam em frente a um enorme portão de ferro maciço, cujo aspecto transparecia um metal aquecido numa forja por mãos de um hábil ferreiro. Nadir, deslumbrada diante daquelas maravilhas, estremeceu e sentiu que ia desfalecer. Logo, porém, o ente fantástico abraçou-a tão fortemente que ela sentiu um calor de fogo tomar todo o seu corpo, o que a faz despertar num salto brusco para frente, e então o temor se lhe esvaiu por completo da mente.
— Este grande portão é a entrada principal do Inferno — disse o espectro caminhando em direção a ele. — Dentro dele há outros sete portões, sendo cada um deles reservado a diferentes tipos de pessoas. No primeiro portão estão os homens e mulheres poderosos: reis, rainhas, imperadores, presidentes e ditadores. No segundo portão estão as celebridades mundanas: cantores, atores, jogadores de futebol, entre muitos outros os quais foram idolatrados quando eram vivos. No terceiro portão estão os políticos em geral, os quais prometeram e não cumpriram e que se utilizaram do seu poder para corromper e serem corrompidos. No quarto portão estão os religiosos que usaram em vão a santa palavra, os quais com suas artimanhas enganaram e roubaram multidões de pessoas. No quinto portão estão os homens e as mulheres que adulteraram e usaram seus corpos para gozar das luxúrias do pecado, que se utilizaram de posições malignas nas suas intimidades, os quais durante o coito santo gemeram e pronunciaram palavras torpes. No sexto portão estão aqueles que se embeberam da vaidade: mulheres que se maquiaram, que pintaram suas unhas, que fizeram as sobrancelhas e que realizaram plásticas para modificar seus corpos; também os homens que se depilaram, que se deixaram tatuar e que malharam seus corpos por pura frivolidade. Finalmente, no sétimo portão estão os chamados ateus, os quais na sua soberbia diziam descrerem das coisas sobrenaturais, e que por isso ali estão comprovando em seus corpos as consequências de suas supostas incredulidades.
A essa explicação o espectro tirou então de seu roupão branco resplandecente uma grande chave toda de ouro, com a qual num movimento rápido escancarou o imenso portão em brasas.
Entraram.
Já dentro do inferno, subiram no pináculo de uma torre. Dali o espectro aponta para os sete portões e traça o plano de suas peregrinações por cada um deles. Antes, porém, adverte a Nadir para que não se deixe levar pelas emoções, pois o que ela verá ali serão cenas de tal modo horríveis que nenhum ser humano, desde Adão, jamais pôde contemplar. Nadir, que se atentava a tudo com profundo interesse, estremeceu mais uma vez e bagas de suor quente se derramaram em sua fronte. Logo, porém, recuperou sua total lucidez e disse:
— Sim, poderoso ser, serei forte!
Nesse momento o espectro toma-lhe pelas mãos e salta com a rapidez de um relâmpago, indo parar bem rente ao primeiro portão do inferno. Ali chegando, toma de uma pequena chave de prata e abre o hediondo portal.
Entraram...
Dentro, Nadir não pôde sufocar um grito de terror: ao fundo, numa enorme moenda movida por uma parelha de bois, seis escravos introduziam o velho Imperador D. Pedro I, que era esmagado como cana, espargindo todo em sangue, para logo em seguida retornar como antes, num processo contínuo de extrema tortura. A boa mulher, toda trêmula, sentiu fraquejar suas pernas. O espectro, porém, com um olhar penetrante fê-la recobrar os ânimos, e continuaram a caminhada. Mais adiante se depararam com uma masmorra toda branca, construída de grandes pedras de sal. Dentro dela, o ditador Getúlio Vargas, com as duas mãos amarradas e a cabeça presa entre dois blocos de brasas, tinha introduzida na boca um tipo de mangueira na qual dois homens com roupas de prisioneiros despejavam ininterruptamente água salgada de bacalhau. Nadir, que parecia já ter superados seus temores, olhava tudo agora como se tivesse assistindo um filme de terror. É bem verdade que ainda tremia diante de cenas tão brutais e pavorosas, no entanto, aos poucos ia perdendo toda sensibilidade pela dor daqueles pecadores, de modo que poderia atentar-se mais detidamente para tudo o que lhe era mostrado, sem ceder à emoção humana. Ao se aproximarem do termo deste portão, o espectro apontou para um lugar reservado para as almas futuras, as quais ainda gozavam e praticavam suas perfídias sobre a terra. Mirando bem, ela viu claramente, como num filme, Lula e Bolsonaro, ambos correndo e latindo como cães sardentos, sendo perseguidos por uma legião de demônios que os chacoteavam com chibatas incandescentes. — Estes dois homens — disse o espectro — colocaram irmão contra irmão, filho contra pai, mulher contra marido, e destilaram ódio no meio de seu povo. Neste momento, quem reparasse bem, veria uma lágrima de tristeza descer das pupilas da boa mulher, que indagou: — Mas como pode ser isso, se Bolsonaro frequentava as igrejas e Lula ajudava aos pobres? — Ao que respondeu o espectro: — O Diabo também faz todas essas coisas.
Saindo dali, num voo rápido, chegaram ao segundo portão, que foi aberto por uma chave de platina.
Entraram...
Sob uma enorme cavidade subterrânea, à esquerda do portão, três funkeiros famosos se banhavam numa piscina de enxofre, enquanto caíam ininterruptamente sobre eles, em forma de brasas vivas, os objetos que ostentaram quando viviam sobre a terra. À direita, alguns jogadores da Seleção Brasileira disputavam uma partida de futebol, cujas gramas do campo eram fagulhas que se soltavam dum terreno arenoso de carvão em brasas, sendo a bola uma enorme esfera de partículas pontiagudas. Por fim, bem no centro, num teatro em chamas, um grupo de atores e atrizes famosos participava de uma encenação em que pequenos demônios os beijavam com línguas de fogo, ao passo que outros grandes demônios em estrondosas gargalhadas filmavam tudo. A tudo isso Nadir estava boquiaberta. Para esses, porém, não derramou lágrimas nem se comoveu.
Neste instante, o espectro toma Nadir no colo e ambos partem ligeiros para o próximo portão, que é o terceiro. Este é imediatamente aberto por uma chave de paládio.
Entraram...
No seu interior havia um enorme edifício no mesmo formato do Palácio do Congresso Nacional. Em cada conjunto de sete andares, determinado grupo de políticos sofria penas específicas. Nos sete primeiros estavam os deputados corruptos, os quais por suas vidas de rapinagem na terra, eram ali atormentados por treze demônios, os quais munidos de açoites laminados os golpeavam continuamente. Nos sete andares seguintes, estavam os senadores, os quais, além de roubar, foram também omissos e não pleitearam em favor dos que os elegeram. Como punição, sete demônios introduziam em suas bocas um líquido esbraseado, que enchiam suas enormes panças, fazendo-os evacuar brasas vivas. Nos sete próximos andares, estavam os ministros do Supremo Tribunal Federal, todos eles vestidos de togas confeccionadas de material fétido. Entre gritos e exasperações, eles exigiam punições aos demônios que cuspiam em seus rostos larvas ardentes. Por fim, nos últimos sete andares, estavam todos os que lucraram para bajular homens públicos, os quais, sem nenhum escrúpulo, rastejaram nos pés de seus políticos de estimação. Como castigo, eles eram obrigados a lamber botas de brasas vivas de uma legião de pequenos demônios, que riam às escâncaras. Nadir a tudo via com certo gosto e em alguns momentos chegou mesmo a rir interiormente daquelas grotescas cenas.
Partindo dali, o espectro deslocou-se velozmente pelos ares, alcançando rapidamente o quarto portão, que foi aberto por uma chave de ródio.
Entraram...
Grande foi a surpresa de Nadir ao ver reunidos no mesmo recinto pastores de diversas denominações, todos eles sofrendo as mesmas penas, que consistia no uso de vestidos de pesadas capas de chumbo dourado, ao mesmo tempo em que andavam descalços sobre carvão em brasas. Entre gritos e lamentos, eles clamavam aos céus por misericórdia, ao que lhe respondia uma voz como num eco infinito: “Apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade, porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber; sendo estrangeiro, não me hospedastes; estando nu, não me vestistes; e enfermo, e na prisão, não me visitastes.” Neste momento, Nadir cai de joelhos e implora também por misericórdia, pois da mesma forma sente que tem sido omissa, ao que o espectro a conforta, dizendo que ela terá ainda muito tempo para corrigir suas falhas. A essas palavras, a boa mulher tem um suspiro de alívio e sorriu.
Findo este curto diálogo, o espectro alçou voo e, como num raio, chegou o quinto portão, o qual fora aberto com uma chave de irídio.
Entraram...
Adentrando naquele horrendo recinto, Nadir soltou um grito e levou as mãos ao rosto, como para vedar os olhos, pois as cenas que ali contemplava era por demais repugnantes para serem suportadas. O espectro, porém, abrandou-lhe o ânimo, dizendo ser necessário presenciar tudo aquilo, uma vez que o seu testemunho serviria para alertar os devassos da terra para que abandonem suas práticas pecaminosas. Então ela abriu bem os olhos e viu homens e mulheres numa orgia diabólica, todos nus dentro de enorme piscina de água pútrida. No entanto, o que a mais impressionou era o fato de que eles pareciam sentir prazer naquelas práticas bizarras e até se deliciavam com toda aquela nauseante fedentina. Horrorizada e visivelmente perturbada em seus brios de mulher casta, ela implorou para que fosse poupada de cenas tão sórdidas, ao que o espectro de pronto atendeu, indo diretamente para o sexto portão, que foi aberto por uma chave de ósmio.
Entraram...
Adentrando nesse infernal recinto, o espectro apontou para uma montanha à distância, onde se via enormes tochas de fogos que expelia larvas escaldantes, as quais escorriam como água para um rio abaixo, onde uma multidão de homens e mulheres nadavam contra ondas que as empurravam de volta ao imenso braseiro líquido. — Quem são essas miseráveis criaturas? — perguntou Nadir. Ao que o espectro respondeu que se tratava de pessoas que na terra achavam feio o que não era espelho, cujo mundo girava em torno de seus próprios umbigos. — Essas pessoas — disse ele — viveram em função de suas vaidades, sem se importarem com a verdadeira essência do ser humano, que consiste em viver a vida em sua simplicidade, amando e sendo amado. Nadir muito admirou essas palavras, principalmente a parte que tratava do espelho, pois era o seu ponto fraco.
Partindo dali, o espectro saltou num voo ligeiro, chegando por fim ao sétimo e último portão, o qual abriu com uma chave de tungstênio.
Entraram...
— Aqui — disse o espectro — estão aqueles que na vida manifestaram com soberba suas descrenças, que se orgulharam em apontar com seus dedos sujos a sujeiras dos outros, isto é, como crentes criticaram os crentes. Eles nunca foram ateus. Na verdade apenas foram seletivos em suas descrenças, pois no fundo de suas almas presunçosas acreditaram em homens aos quais atribuíam o poder da ciência. São eles os piores tipos de crentes, pois se fingiam de não sê-los, agindo como se fossem os verdadeiros iluminados, quando eram apenas meros grãos de areias no oceano da vida. O seu castigo — continuou — consiste em permanecerem sentados eternamente em cadeiras de pregos, lendo para sempre o livro a que tanto odiavam. Nadir achou justa a punição, pois sempre considerou essa laia de gente como seres desprezíveis, sendo que muitas vezes fora vítima de suas malignas artimanhas.
— Aqui termina nossa jornada — disse o anjo. — Agora voltarás à terra e alertarás os homens sobre tudo o que aqui viste. Se fores fiel ao que te ordeno, brevemente serás agraciada com uma nova jornada no céu. Vai!
Dizendo essas palavras, o espectro batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do inferno, arrancou da sombra para o infinito azul. No mesmo instante Nadir se viu na mesma sala, deitada no mesmo sofá, ainda assustada com os horrores do inferno e sentindo o mesmo gosto da apetitosa feijoada.
---
Por: Iba Mendes, julho de 2025.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...