7/09/2025

A conversão de um Diabo (Conto), da Iba Mendes

 

A CONVERSÃO DE UM DIABO

Conta uma lenda urbana recente que um certo Diabo, muito enfadado por perpassar os séculos como o grande vilão da humanidade, resolveu converter-se à religião evangélica.

Inicialmente comprou um paletó de linho e uma Bíblia de capa preta. Em seguida aparou o cabelo, fez a barba e cortou as unhas das mãos, passando doravante a cuidar de sua aparência pessoal, de modo que adquirisse os traços de um crente conservador. Concomitantemente a isso começou a observar o comportamento dos fiéis, buscando imitá-los em tudo, incluindo aí a maneira de falar, o modo de se comportar perante a sociedade, os hábitos de devoção e outras particularidades doutrinárias. Concluída, enfim, essa etapa, ele mirou com satisfação o espelho e sorriu mentalmente, vendo ali, não o velho Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, o terror das crianças e dos religiosos, mas sim uma nova criatura, imagem e semelhança dos mortais.

Uma vez se inteirado dessas particularidades, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em procurar uma igreja para frequentar. Em qual delas teria mais êxito? Esse passo foi decisivo e exigiu dele minuciosa pesquisa.

Ao princípio, descartou aquelas mais tradicionais, cujas práticas teológicas o remetessem ao seu passado tenebroso de mortes e perseguições. Havia se convertido, portanto, sentia necessidade de encontrar novidade que lhe despertasse novos projetos, algo que lhe fizesse partilhar livremente seus elevados conhecimentos.

Esse processo foi demorado e exigiu dele longas e aprofundadas meditações. Mas, por fim, não teve mais dúvida: seria um crente pentecostal!

***

Quem o visse no domingo seguindo em direção à igreja, de paletó e gravata e com a Bíblia debaixo do braço, não teria a menor dúvida de que ali estava um verdadeiro crente.

Ao entrar no templo, sob os olhares curiosos dos presentes, inclinou-se humildemente sob o banco de madeira e dobrou os joelhos numa ligeira prece. Durante todo o culto permaneceu atento aos mínimos detalhes do cerimonial, participando com visível alegria dos cânticos e das orações.

Daí em diante, por espaço de alguns meses, tornou-se um membro fervoroso e ativo, tomando parte de várias atividades da igreja: ao mesmo tempo em que cantava no coral, tocava violino na orquestra e fazia a colheita das ofertas. Sua assiduidade com os dízimos, bem como sua exímia habilidade em lidar com as finanças da igreja levou-o, mais tarde, ao posto de tesoureiro.

Nesta situação decorreram mais alguns anos, quando fora nomeado ao cargo de diácono. A partir daí sua ascensão foi rápida: passando ao presbitério, alçou seguidamente ao cargo de Pastor e, por fim, Presidente da Convenção Geral.

Seu notável poder de liderança, aliado ao seu grande carisma, tornou-o respeitado por todos os grandes líderes, inclusive aqueles de outras denominações. Não raro era convidado a pregar em grandes eventos, nos quais as multidões o aplaudiam entre glórias e aleluias.

Contudo, não obstante sua elevada posição eclesiástica e seus inúmeros afazeres ministeriais, ainda assim de ordinário reservava um dia da semana para visitar os doentes e os menos necessitados. Para aqueles intercedia e operava prodígios, para esses levava alimentos e palavras de consolações.

Com o andar do tempo, porém, embora todos os ventos lhes fossem favoráveis, sendo respeitado por todos com exemplar unanimidade, ainda sentia alguma coisa perturbadora no seu íntimo, sendo acometido daquele vazio tão comum nos pobres mortais. Quando, agora, diante do espelho, não se via propriamente como um convertido, mas apenas como um Diabo em desconstrução.

Os anos corriam assim, entre a certeza da conversão e a dúvida sobre sua real natureza.

Um dia quando se dirigia a uma congregação longínqua, onde fora convidado a pregar, notou à beira de uma estrada desconhecida um antro miserando de mulheres pervertidas. Parou o automóvel e pôs-se então a mirá-lo com saudades dos seus velhos tempos de devassidão. Tentado assim por seus originários instintos, não teve dúvida: ali entrou e consumou da pior forma toda sua luxúria diabólica. Em outra ocasião, ao ver um casal trocando carícias numa praça, deliberou lançar uma de suas setas malignas, e de repente os dois amantes, antes tão felizes, passaram agora a agredirem-se mutuamente. Em suas conversas com pessoas estranhas, em vez de pregar as boas novas, passou a motivá-las à rebelião contra a divindade e contra seus semelhantes. Às escondidas pregava o ódio, o roubo, o adultério, o assassinato e tudo o mais que condenava no altar da igreja. Enfim, aos poucos o seu caráter foi readquirindo às antigas feições e ele já não conseguia manter as aparências.

Um dia de domingo em que o templo estava tomado por uma multidão em frenesi contagioso, que aguardava ansiosa a poderosa pregação da noite, ele chegou, não como de costume, alegre e ruidoso, mas introspectivo e calado. Sob sonorosos gritos de “aleluias”, o Diabo subiu ao púlpito e foi direito ao microfone:

— Prezados mortais, peço encarecidamente que mantenham absoluto silêncio e que vos atentem ao que sairá agora dos meus lábios.

Os expectadores firmaram os ouvidos e fixaram os olhares no grande pregador, que continuou sua fala de forma ainda mais estranha e surpreendente:

— Chega das velhas doutrinas, chega das velhas fórmulas e dos velhos preconceitos! Eis o momento oportuno para vos libertares dos antigos grilhões que vos foram impostos pela força do medo e da opressão!

Os membros, que até então nunca o vira tão exaltado e com um aspecto tão severo e amedrontador, permaneceram ainda mais atentos, como se estivessem paralisados por um raio anestésico. Ele prosseguiu:

— Sim, pobres mortais! Faz-se necessário que renegues vosso passado, vossas tradições, vossos conceitos puristas, vossos valores herdados, que renuncieis as utopias e as aspirações que vos foram impostas pela força dos séculos e que foram arraigadas em vossas mentes pelo estigma do pecado.

E aumentando ainda mais a voz:

— Eis o momento de cortares o cordão umbilical que vos prende a esta vida monótona! Eis o instante oportuno de abandonares o casulo em que vos prenderam vossos ancestrais!

A multidão, atônita e confusa, mantinha-se paralisada, com os olhares fixos no pregador exaltado:

— Eles vos privaram dos prazeres que deleitam, de modo que seguis a incômoda rotina da desafortunada multidão, a qual, por desconhecer os mananciais do prazer anda como reles quadrúpedes satisfazendo apenas seus instintos rudimentares. Sinto que estais sedentos de estrelas, que tendes sede de liberdade! Sim, percebo que vossos corpos já não suportam mais essa canga doutrinária e esse pesado julgo que sobre vossos ombros foram colocados sem qualquer resistência. Quereis conhecer a verdadeira felicidade? Quereis livrar-vos deste cativeiro de opressão, que vos impede de usufruir da vida o que nela há de melhor? Se a isso quereis, habituai-vos, então, a pensar que a morte nada é para vós, uma vez que todo o mal e todo o bem residem na sensibilidade. Sim, a morte é tão somente a privação desta mesma sensibilidade. Quanto ao céu — fez uma pausa para ajeitar o microfone: — este nada mais é do que mera invenção de homens castrados pela fraqueza, os quais não tiveram a coragem de assumir os seus próprios destinos e por isso criaram esse paraíso imaginário, onde a realidade de prazeres e dores presentes será  substituída pela utopia da imortalidade futura. E quanto ao inferno? Ah, sim! Acerca disso eles também espalharam falsamente o tormento vindouro, e com isso se mantêm senhores das vossas pobres almas que, subjugadas ao temor infundado, obedecem como cordeirinhos a esses falsos pastores. Portanto, pobres e cativos mortais, não vos deveis jamais deixar atormentar por estes pavores imaginários, por estas prisões mentais que vos colocam num cativeiro renegado do gozo e da verdadeira vida. Sabeis, pois, que onde impera o prazer e a alegria, nem a dor do corpo nem a dor do espírito, ou ambos, hão de prevalecer dentro de vós. Vossas satisfações serão de tal maneira perenes que vos não terão tempo para pensar nessas tolices, as quais existem apenas para vos afastarem dos prazeres que deliram. Portanto, não deveis ter qualquer preocupação com a morte, nem com o além-túmulo, seja céu, seja inferno. Seria um absurdo preocupar-se com o que segue a morte, com o que vós não tendes nenhum controle... Eia! O homem despojado do prazer é como uma videira sem frutos, é como um jarro sem flores... A virtude, a ciência, a sabedoria, tudo isso perderá o seu valor se não buscardes o verdadeiro prazer desta vida, o gozo daquilo que podemos tocar e sentir. Só o prazer é o princípio e o fim de uma vida bem-aventurada... Felicidade! Felicidade! O que é a felicidade senão o presente bem vivido? O que é a ventura senão os vapores cálidos do vinho, os braços e os beijos ardentes dos amantes? Envelheçam, pois, rindo, tal como as árvores fortes envelhecem!

E concluiu com os punhos para o alto:

— Viva a liberdade! Viva a libertinagem!

Neste instante o ambiente fora tomado por um cheiro acre de enxofre, e uma enorme balbúrdia tomou conta do recinto. Pessoas corriam como se fugisse de um incêndio, outras caíam desmaiadas, algumas ajoelhavam e suplicavam a intervenção divina. Enquanto isso, no púlpito, o Diabo aparecia sem qualquer disfarce. Sentindo que se achava no ar, ergueu as mãos e desapareceu como se fosse um ilusionista de palco. Sua verdadeira natureza foi finalmente revelada ante os olhos estupefatos da multidão que até aí o idolatrava.

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