A CONVERSÃO DE UM DIABO
Conta
uma lenda urbana recente que um certo Diabo, muito enfadado por perpassar os
séculos como o grande vilão da humanidade, resolveu converter-se à religião evangélica.
Inicialmente
comprou um paletó de linho e uma Bíblia de capa preta. Em seguida aparou o
cabelo, fez a barba e cortou as unhas das mãos, passando doravante a cuidar de
sua aparência pessoal, de modo que adquirisse os traços de um crente
conservador. Concomitantemente a isso começou a observar o comportamento dos fiéis,
buscando imitá-los em tudo, incluindo aí a maneira de falar, o modo de se
comportar perante a sociedade, os hábitos de devoção e outras particularidades
doutrinárias. Concluída, enfim, essa etapa, ele mirou com satisfação o espelho
e sorriu mentalmente, vendo ali, não o velho Diabo das noites sulfúreas, dos
contos soníferos, o terror das crianças e dos religiosos, mas sim uma nova
criatura, imagem e semelhança dos mortais.
Uma
vez se inteirado dessas particularidades, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se
pressa em procurar uma igreja para frequentar. Em qual delas teria mais êxito? Esse
passo foi decisivo e exigiu dele minuciosa pesquisa.
Ao
princípio, descartou aquelas mais tradicionais, cujas práticas teológicas o remetessem
ao seu passado tenebroso de mortes e perseguições. Havia se convertido,
portanto, sentia necessidade de encontrar novidade que lhe despertasse novos
projetos, algo que lhe fizesse partilhar livremente seus elevados conhecimentos.
Esse
processo foi demorado e exigiu dele longas e aprofundadas meditações. Mas, por
fim, não teve mais dúvida: seria um crente pentecostal!
***
Quem
o visse no domingo seguindo em direção à igreja, de paletó e gravata e com a
Bíblia debaixo do braço, não teria a menor dúvida de que ali estava um
verdadeiro crente.
Ao
entrar no templo, sob os olhares curiosos dos presentes, inclinou-se
humildemente sob o banco de madeira e dobrou os joelhos numa ligeira prece.
Durante todo o culto permaneceu atento aos mínimos detalhes do cerimonial,
participando com visível alegria dos cânticos e das orações.
Daí
em diante, por espaço de alguns meses, tornou-se um membro fervoroso e ativo,
tomando parte de várias atividades da igreja: ao mesmo tempo em que cantava no
coral, tocava violino na orquestra e fazia a colheita das ofertas. Sua
assiduidade com os dízimos, bem como sua exímia habilidade em lidar com as
finanças da igreja levou-o, mais tarde, ao posto de tesoureiro.
Nesta
situação decorreram mais alguns anos, quando fora nomeado ao cargo de diácono.
A partir daí sua ascensão foi rápida: passando ao presbitério, alçou
seguidamente ao cargo de Pastor e, por fim, Presidente da Convenção Geral.
Seu
notável poder de liderança, aliado ao seu grande carisma, tornou-o respeitado
por todos os grandes líderes, inclusive aqueles de outras denominações. Não
raro era convidado a pregar em grandes eventos, nos quais as multidões o
aplaudiam entre glórias e aleluias.
Contudo,
não obstante sua elevada posição eclesiástica e seus inúmeros afazeres ministeriais,
ainda assim de ordinário reservava um dia da semana para visitar os doentes e
os menos necessitados. Para aqueles intercedia e operava prodígios, para esses
levava alimentos e palavras de consolações.
Com
o andar do tempo, porém, embora todos os ventos lhes fossem favoráveis, sendo respeitado
por todos com exemplar unanimidade, ainda sentia alguma coisa perturbadora no
seu íntimo, sendo acometido daquele vazio tão comum nos pobres mortais. Quando,
agora, diante do espelho, não se via propriamente como um convertido, mas apenas
como um Diabo em desconstrução.
Os
anos corriam assim, entre a certeza da conversão e a dúvida sobre sua real
natureza.
Um
dia quando se dirigia a uma congregação longínqua, onde fora convidado a
pregar, notou à beira de uma estrada desconhecida um antro miserando de
mulheres pervertidas. Parou o automóvel e pôs-se então a mirá-lo com saudades
dos seus velhos tempos de devassidão. Tentado assim por seus originários
instintos, não teve dúvida: ali entrou e consumou da pior forma toda sua
luxúria diabólica. Em outra ocasião, ao ver um casal trocando carícias numa
praça, deliberou lançar uma de suas setas malignas, e de repente os dois
amantes, antes tão felizes, passaram agora a agredirem-se mutuamente. Em suas
conversas com pessoas estranhas, em vez de pregar as boas novas, passou a
motivá-las à rebelião contra a divindade e contra seus semelhantes. Às
escondidas pregava o ódio, o roubo, o adultério, o assassinato e tudo o mais
que condenava no altar da igreja. Enfim, aos poucos o seu caráter foi
readquirindo às antigas feições e ele já não conseguia manter as aparências.
Um
dia de domingo em que o templo estava tomado por uma multidão em frenesi
contagioso, que aguardava ansiosa a poderosa pregação da noite, ele chegou, não
como de costume, alegre e ruidoso, mas introspectivo e calado. Sob sonorosos
gritos de “aleluias”, o Diabo subiu ao púlpito e foi direito ao microfone:
— Prezados
mortais, peço encarecidamente que mantenham absoluto silêncio e que vos atentem
ao que sairá agora dos meus lábios.
Os
expectadores firmaram os ouvidos e fixaram os olhares no grande pregador, que
continuou sua fala de forma ainda mais estranha e surpreendente:
— Chega
das velhas doutrinas, chega das velhas fórmulas e dos velhos preconceitos! Eis
o momento oportuno para vos libertares dos antigos grilhões que vos foram
impostos pela força do medo e da opressão!
Os
membros, que até então nunca o vira tão exaltado e com um aspecto tão severo e
amedrontador, permaneceram ainda mais atentos, como se estivessem paralisados
por um raio anestésico. Ele prosseguiu:
— Sim,
pobres mortais! Faz-se necessário que renegues vosso passado, vossas tradições,
vossos conceitos puristas, vossos valores herdados, que renuncieis as utopias e
as aspirações que vos foram impostas pela força dos séculos e que foram
arraigadas em vossas mentes pelo estigma do pecado.
E
aumentando ainda mais a voz:
— Eis
o momento de cortares o cordão umbilical que vos prende a esta vida monótona!
Eis o instante oportuno de abandonares o casulo em que vos prenderam vossos
ancestrais!
A
multidão, atônita e confusa, mantinha-se paralisada, com os olhares fixos no
pregador exaltado:
— Eles
vos privaram dos prazeres que deleitam, de modo que seguis a incômoda rotina da
desafortunada multidão, a qual, por desconhecer os mananciais do prazer anda como
reles quadrúpedes satisfazendo apenas seus instintos rudimentares. Sinto que
estais sedentos de estrelas, que tendes sede de liberdade! Sim, percebo que
vossos corpos já não suportam mais essa canga doutrinária e esse pesado julgo
que sobre vossos ombros foram colocados sem qualquer resistência. Quereis
conhecer a verdadeira felicidade? Quereis livrar-vos deste cativeiro de
opressão, que vos impede de usufruir da vida o que nela há de melhor? Se a isso
quereis, habituai-vos, então, a pensar que a morte nada é para vós, uma vez que
todo o mal e todo o bem residem na sensibilidade. Sim, a morte é tão somente a
privação desta mesma sensibilidade. Quanto ao céu — fez uma pausa para ajeitar
o microfone: — este nada mais é do que mera invenção de homens castrados pela
fraqueza, os quais não tiveram a coragem de assumir os seus próprios destinos e
por isso criaram esse paraíso imaginário, onde a realidade de prazeres e dores
presentes será substituída pela utopia
da imortalidade futura. E quanto ao inferno? Ah, sim! Acerca disso eles também
espalharam falsamente o tormento vindouro, e com isso se mantêm senhores das
vossas pobres almas que, subjugadas ao temor infundado, obedecem como
cordeirinhos a esses falsos pastores. Portanto, pobres e cativos mortais, não
vos deveis jamais deixar atormentar por estes pavores imaginários, por estas
prisões mentais que vos colocam num cativeiro renegado do gozo e da verdadeira
vida. Sabeis, pois, que onde impera o prazer e a alegria, nem a dor do corpo
nem a dor do espírito, ou ambos, hão de prevalecer dentro de vós. Vossas
satisfações serão de tal maneira perenes que vos não terão tempo para pensar
nessas tolices, as quais existem apenas para vos afastarem dos prazeres que
deliram. Portanto, não deveis ter qualquer preocupação com a morte, nem com o
além-túmulo, seja céu, seja inferno. Seria um absurdo preocupar-se com o que
segue a morte, com o que vós não tendes nenhum controle... Eia! O homem
despojado do prazer é como uma videira sem frutos, é como um jarro sem flores...
A virtude, a ciência, a sabedoria, tudo isso perderá o seu valor se não buscardes
o verdadeiro prazer desta vida, o gozo daquilo que podemos tocar e sentir. Só o
prazer é o princípio e o fim de uma vida bem-aventurada... Felicidade!
Felicidade! O que é a felicidade senão o presente bem vivido? O que é a ventura
senão os vapores cálidos do vinho, os braços e os beijos ardentes dos amantes?
Envelheçam, pois, rindo, tal como as árvores fortes envelhecem!
E
concluiu com os punhos para o alto:
— Viva
a liberdade! Viva a libertinagem!
Neste instante o ambiente fora tomado por um cheiro acre de enxofre, e uma enorme balbúrdia tomou conta do recinto. Pessoas corriam como se fugisse de um incêndio, outras caíam desmaiadas, algumas ajoelhavam e suplicavam a intervenção divina. Enquanto isso, no púlpito, o Diabo aparecia sem qualquer disfarce. Sentindo que se achava no ar, ergueu as mãos e desapareceu como se fosse um ilusionista de palco. Sua verdadeira natureza foi finalmente revelada ante os olhos estupefatos da multidão que até aí o idolatrava.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...