3/16/2025

João Grande e João Pequeno (Hans Christian Andersen), por Monteiro Lobato



 JOÃO GRANDE E JOÃO PEQUENO

Havia lá não sei onde dois rapazes de igual nome. Ambos se chamavam João. Mas um possuía quatro cavalos e o outro apenas um. Para evitar trapalhadas, o dono dos quatro cavalos passou a chamar-se João Grande, e o outro, João Pequeno. Vamos agora ver o que aconteceu aos dois Joões.

João Pequeno trabalhava a semana inteira para João Grande, ele e o seu cavalo. Como pagamento desse serviço João Grande lhe cedia aos domingos os seus quatro animais, e como João Pequeno possuísse umas terras, aproveitava-se desse dia para correr nelas o arado. Era de ver então o orgulho com que estalava o chicote sobre os cinco animais atrelados à charrua, pois que João Pequeno tinha naquelas horas a ilusão de que todos os cavalos fossem seus.

— Vamos, meus cinco cavalos! gritava ele.

João Grande soube e protestou.

— Você não pode dizer isto, porque seu mesmo só há um cavalo. Não se esqueça.

Mas foi inútil. João Pequeno não resistia. Bastava que visse passar pela estrada gente que ia à igreja, de livrinho debaixo do braço, para repetir aquilo.

— Vamos, meus cinco cavalos!

João Grande ficou danado e veio com ameaças.

— Se tornar a repetir essa frase, eu mato o seu cavalo a pau e quero ver! Tome cuidado, está ouvindo?

João Pequeno, amedrontado, prometeu calar-se.

Prometer, porém, é simples; o difícil é cumprir e João Pequeno faltou logo ao prometido. No próximo domingo, ao aproximar-se um grupo de gente endomingada, gritou de novo:

— Vamos, meus cinco cavalos!

João Grande, que estava espiando, apareceu, furioso, com um pau na mão.

— É agora, seu patife! e pã! — derrubou-lhe o cavalo com uma formidável cacetada na cabeça.

O pobre João Pequeno pôs a boca no mundo; chorou a mais não poder. Perdera o cavalo, que era tudo quanto possuía na vida. Por fim, como não houvesse remédio, teve de conformar-se e então tirou o couro do cavalo morto e secou-o ao sol. Depois dobrou-o, botou-o num saco, foi à vila ver se o negociava.

Para chegar à vila tinha de atravessar uma floresta, na qual foi colhido por uma terrível tempestade. Teve de parar debaixo duma árvore, pois não enxergava dois passos à frente.

Quando a chuva cessou viu a pequena distância uma casa de porta e janelas fechadas, mas com luz dentro. Como já ia anoitecendo João foi lá bater para pedir pousada.

Veio abrir uma mulher de cara feia, dizendo-lhe que o marido não estava e pois não podia recolhê-lo.

— Dormirei aqui fora, disse João enquanto a mulher lhe fechava a porta no nariz.

Olhando em redor o rapaz descobriu um rancho de palha, sobre o qual uma cegonha havia construído um ninho. "Passarei a noite em cima desse rancho, pensou ele, e espero que a cegonha não me atrapalhe o sono."

Subiu em cima do rancho e acomodou-se. De lá podia ver o que se passava dentro da casa, pela bandeira da porta. E viu sentados à mesa da sala de jantar a mulher e mais um sacristão. O sacristão trinchava um peixe enquanto a mulher enchia de vinho o copo.

João ficou a espiar aquele gostoso regabofe, até que ouviu tropel de cavalo. Era o dono da casa que vinha vindo.

Esse homem era um bom homem; só que tinha grande birra do sacristão e por isso o sacristão só na sua ausência vinha regalar-se com os bons quitutes que a mulher sabia preparar.

Ao ouvir o tropel do cavalo, a mulher assustou-se e pediu ao sacristão que se escondesse numa canastra vazia que estava a um canto da sala. Depois tirou a mesa, escondeu o peixe e o vinho e deixou tudo como se nada houvesse.

— Que pena! exclamou lá do telhado João Pequeno ao ver a mesa limpa; mas falou mais alto do que devia e o homem ouviu.

— Quem está falando aí? indagou ele.

João Pequeno desceu e contou a sua história, acabando por lhe pedir agasalho por uma noite apenas — e o homem, que era bondoso, não pôs dúvida. Fê-lo entrar e ainda o convidou para a ceia.

A mulher de novo arrumou a mesa e serviu um prato de sopa a cada um. O marido tomou a sua com grande apetite, mas João só pensava no peixe recheado que vira a mulher esconder dentro do forno.

Ao sentar-se ele havia posto debaixo da mesa o saco de couro do cavalo e como estivesse com os pés em cima, cada vez que fazia um movimento o couro ringia. E a cada ringido ele exclamava:

— "Bico calado!" — mas pisava o couro ainda com mais força para que ringisse ainda mais alto. Que é que há dentro desse saco? perguntou o homem.

— Um couro mágico, respondeu o rapaz. Está a dizer que não devemos nos contentar com sopa, visto haver quitutes gostosos escondidos no forno.

O homem levantou-se e foi ver — e encontrando no forno o peixe recheado convenceu-se de que na realidade o couro era mesmo mágico. Trouxe tudo para mesa e os dois regalaram-se.

Finda a ceia, João fez o couro ringir de novo.

— Que diz ele agora? perguntou o homem.

— Diz que atrás do fogão há três garrafas de vinho.

Mordendo os lábios de ódio, a mulher fingiu-se de desentendida e teve de ir lá e trazer as garrafas de vinho. Depois de bebido o vinho, o homem manifestou desejos de adquirir o couro mágico.

— Esse couro será capaz de me fazer aparecer aqui o diabo? indagou ele, já com cabeça meio toldada pelo vinho.

— Como não? Faz tudo quanto a gente pede. Mas o diabo é tão feio que o senhor vai assustar-se. Não há perigo, não sou criança. Que jeito tem ele?

— Muitos jeitos, mas gosta sobretudo de aparecer disfarçado de sacristão.

— Oh, nesse caso deve ser horrível! exclamou o homem. Eu tenho tal ódio a sacristãos que não posso vê-los nem pintados. Mas sabendo que não é sacristão de verdade e sim o diabo com forma de sacristão, creio que não haverá, Faça que apareça o diabo — mas que não se aproxime de mim.

— Vou consultar o couro, disse o rapaz e apertando-o com o pé provocou outro ringido.

— Que diz ele?

— Diz que se o senhor abrir aquela canastra, ali no canto, encontrará o diabo encolhido dentro e disfarçado em sacristão.

Cautelosamente o homem foi abrir a canastra — e recuou com um berro, vendo que de fato lá estava um sacristão todo encolhido e a tremer.

— Irra! exclamou. Já posso gabar-me de ter visto o diabo em pessoa! E é tal qual o nosso sacristão da aldeia.

Depois, para apagar o mau efeito do que vira na canastra, bebeu mais vinho e ali ficou até altas horas em companhia de João Pequeno. Por fim disse: Quanto quer pelo couro mágico? Dou uma quarta cheia de dinheiro.

O rapaz fez-se de rogado, mas tanto homem insistiu que afinal cedeu.

— Pois seja. Aceito em troca do couro uma quarta de dinheiro — mas quero-a bem, bem cheia.

— Está fechado o negócio — com uma condição, disse o homem: levar daqui a canastra com o diabo dentro. Não quero saber do diabo em minha casa.

Combinado o negócio, João Pequeno deu ao sitiante o couro do cavalo, recebendo em troca uma quarta de dinheiro bem medida. Para que pudesse levar tudo aquilo, recebeu ainda, de lambujem, um carrinho de mão. E despedindo-se do homem, o rapaz lá se foi com a canastra de sacristão dentro e a quarta de dinheiro.

Do outro lado da floresta havia um rio muito largo, atravessado por uma ponte. Ao chegar ao meio da ponte João parou e disse em voz alta, a fim de ser ouvido pelo sacristão:

Esta canastra de nada me serve e só irá dar-me trabalho. Pesa como se estivesse cheia de pedras. O melhor a fazer é atirá-la ao rio.

E com estas palavras pôs-se a erguer a canastra, como se realmente fosse arrojá-la às águas.

— Pelo amor de Deus, não faça isso! implorou lá dentro o sacristão.

— Céus! exclamou João Pequeno, simulando grande espanto e medo. O diabo ainda está aqui dentro! Toca a atirá-lo ao rio sem demora para que morra afogado.

— Tenha dó de mim, suplicou o sacristão. Darei uma quarta de dinheiro em troca da minha vida. -Isso já soa melhor, disse João Pequeno abrindo a canastra.

Mais morto que vivo, o sacristão saltou fora, e empurrando a canastra vazia para dentro d’água dirigiu-se à sua casa, onde mediu uma quarta de dinheiro e deu-a a João em paga do que prometera. Com o que já havia recebido do sitiante, o rapaz ficou com o seu carrinho abarrotado de moedas.

— Fui bem pago pelo meu cavalo! disse ele consigo ao chegar em casa e ao amontoar as moedas no chão do seu quarto. Só quero ver a cara de João Grande quando souber da fortuna que ganhei com o couro do meu cavalo. Mas é melhor guardar segredo sobre a minha esperteza.

Em seguida mandou pedir emprestada a João Grande uma quarta.

— Que irá fazer com uma quarta? matutou João Grande desconfiado. E teve a idéia de esfregar visgo no fundo da medida, na esperança de que na volta ela trouxesse algum vestígio do que fosse medido.

E foi justamente o que aconteceu. Ao ser devolvida a quarta vieram três moedas coladas ao fundo.

— Quê?! Não é que o homenzinho conseguiu dinheiro? exclamou João Grande admirado, e apressou-se em ir indagar como ele obtivera tanto dinheiro que chegava a medi-lo em quarta.

— Foi o que recebi pelo couro do meu cavalo, respondeu João Pequeno ao ser interpelado.

— Vou fazer o mesmo, resolveu João Grande — e correu a matar os seus quatro cavalos. Feito isto tirou-lhes o couro e levou-os à vila para vender.

— Couros! Couros! Quem compra couros gritava pelas ruas da povoação.

Vários sapateiros indagaram do preço, mas ao ser-lhes dito que custavam uma quarta de dinheiro cada um, riram-se do vendedor.

— Será que este bobo cuida que dinheiro se mede às quartas? disseram todos.

Certo de obter o preço desejado, João Grande continuou a percorrer as ruas da aldeia, oferecendo os seus couros. E a todos que lhe indagavam do custo, respondia invariavelmente:

— Uma quarta de dinheiro, não dou por menos.

— Ele está mangando conosco! gritaram os sapateiros e tomando boas guascas deram-lhe uma formidável sova. "Couro nele, sem dó nem piedade!" berravam. "Vamos pô-lo fora da cidade a chicote!"

E o pobre homem viu-se obrigado a correr tanto quanto lhe permitiam as pernas, pois nunca apanhara tal surra em toda a sua vida.

Desta vez João Pequeno me paga! rosnou ele furioso, ao chegar em casa. Pico-o em pedacinhos. Nesse meio tempo faleceu a avó de João Pequeno, e embora tivesse sido ela muito má para ele, João sentiu a sua morte. Piedoso como era, colocou o cadáver da ancia na cama, coberto com um cobertor, a fim de ver se o calor a faria viver novamente. Depois de bem ajeitar a defunta, preparou-se para passar ali a noite, velando numa cadeira.

Altas horas entra João Grande, pé ante pé, de machado em punho. Sabendo perfeitamente onde ficava a cama de João Pequeno, aproximou-se cautelosamente e com vigorosa machadada abriu a cabeça da velha, certo de que estava liquidando o rival.

— Toma, para não se fazer de esperto! exclamou ao retirar-se.

— De que escapei! murmurou João Pequeno lá com os seus botões. Felizmente minha avó já estava morta, pois do contrário nem sua alma escaparia!...

Em seguida cuidou de vestir a velha com o seu melhor vestido e foi pedir emprestado ao vizinho um cavalo. Atrelou-o ao carrinho e arrumou o cadáver no assento traseiro, de modo que se mantivesse sentado, mesmo com o veículo em movimento. Feito isto atravessou a floresta. No dia seguinte pela manhã parou numa hospedaria para tomar qualquer coisa. O estalajadeiro era homem rico e bondoso, mas irritadiço em extremo, desses que perdem a cabeça por qualquer coisinha.

— Bom dia, disse ele ao ver João Pequeno entrar. Que é que procura tão cedo em minha casa?

— Estou de passagem, pois vou levar minha avó à vila, respondeu João. Deixei-a lá fora, no carrinho. Não poderá o senhor levar-lhe uma xícara de café? Mas é preciso que lhe fale em voz alta, pois é surda como uma porta.

O estalajadeiro foi levar o café.

— Aqui está o café, disse ao ouvido da anciã. Como era de esperar, o cadáver não murmurou palavra.

— Aqui está o café que o seu neto mandou trazer! repetiu o homem alçando a voz. Mas como a velha continuasse muda, ele resolveu berrar-lhe ao ouvido. Nada adiantou. A velha permaneceu imóvel. Na quarta vez, perdendo a paciência, o estalajadeiro arrumou-lhe com a xícara na cabeça. A violência do choque fez que o cadáver perdesse o equilíbrio e tombasse de lado.

— Meus Deus! exclamou João Pequeno, que só esperava por aquilo. O senhor matou minha avó! Olha só a brecha que abriu na testa da pobre velha! Coitada da minha avó!...

O estalajadeiro lamentou profundamente o acontecido, e para evitar que o caso fosse parar na polícia prometeu dar a João Pequeno uma quarta de moedas e ainda fazer o enterro, contanto que tudo ficasse por isso.

João Pequeno, após alguma relutância, acabou aceitando a proposta. Recebeu uma quarta de dinheiro, assistiu aos funerais da velha custeados pelo estalajadeiro e voltou para casa. Lá chegando, a primeira coisa que fez foi mandar pedir a João Grande uma quarta para medir o dinheiro.

— Que diabo! exclamou o outro surpreso. Teria ele ressuscitado? Vamos ver o que é isso, e resolveu ele mesmo levar a medida a João Pequeno.

Grande foi o seu espanto ao encontrar o outro de perfeita saúde, sem um arranhão, e maior foi o assombro ao vê-lo ainda mais rico.

— Estas moedas são o resultado de um engano, dis— se João Pequeno. Certo de que me assassinava, você matou minha avó, e para não ter trabalho com o enterro eu vendi o cadáver por uma quarta de moedas.

Entusiasmado ante a perspectiva de ótimo lucro, João Grande correu à sua casa e passando a mão no machado abriu a cabeça da sua avó. Em seguida rumou para a cidade vizinha, onde sabia existir um médico que adquiria cadáveres para experiências.

— Quem é o morto e como o obteve? indagou o médico.

— É o cadáver da minha avó. Matei-a para vender o cadáver por uma quarta de dinheiro.

— Santo Deus! exclamou o médico horrorizado. Este homem está maluco! Não diga tal disparate, se tem amor à vida e não quer ver-se pendurado a uma forca.

E tanto fez ver a João Grande a hediondez do seu ato e a grave pena em que incorrera, que o rapaz saltou do seu trole e saiu na disparada. Como o estivesse tomando por louco, o doutor deixou-o fugir em paz.

— Desta vez ele me paga! rosnou João Grande logo que se viu longe da aldeia. Mostrarei a João Pequeno quem sou eu!

— Chegando em casa arranjou um enorme saco e saiu em procura de João Pequeno, ansioso por vingar-se. Encontrou-o, agarrou-o e dirigiu-se com ele às costas ao rio para atirá-lo n’água. Se ele, João Grande, perdera quatro cavalos e a avó, João Pequeno iria perder a vida — morreria afogado.

Para alcançar o rio, João Grande tinha de caminhar vários quilômetros, e o fardo que transportava não era dos mais leves. Passando por uma igreja e ouvindo o badalar dos sinos que chamava os fiéis, resolveu entrar e rezar uma oração, deixando o saco à porta do templo, certo de que o prisioneiro não escaparia.

Ao ver-se só João Pequeno pôs-se a suspirar, lamentando-se em voz alta e fazendo esforços sobre-humanos para escapulir. Um velho pastor, que na ocasião ia passando a conduzir algumas ovelhas, ouviu as lamentações e veio averiguar do que se tratava.

— Ai de mim! suspirou João Pequeno. Tão moço e já condenado a ir para o reino dos céus!

— Pois eu, já sou velho, só sonho com essa ventura, suspirou o ancião.

— Nesse caso a felicidade eterna está ao seu alcance, disse o rapaz. Basta que abra o saco e se ponha no meu lugar. Num abrir e fechar de olhos estará no paraíso.

Sem esperar por mais o pastor desatou o cordel que amarrava a boca do saco e João Pequeno saltou fora. O pastor, então, pediu-lhe que tomasse conta das suas ovelhas e entrou para o saco. João atou sòlidamente o cordel e tratou de afastar-se depressa, levando por diante as ovelhas.

Momentos depois João Grande sai da igreja e repõe o saco às costas. Achou-o mais leve, pois o velho pastor pesava menos que João Pequeno, e atribuiu isso à oração que acabara de rezar. Chegando ao rio, que era largo e profundo, arrojou o fardo às águas, exclamando:

— Desta vez não escapará, e dentro em pouco estará ajustando contas com o demo.

Feito isto vinha voltando para casa muito satisfeito quando, numa encruzilhada, topou João Pequeno a tanger calmamente um rebanho de gordas ovelhas.

— Que diabo! Eu então não o afoguei? Responda!...

— Sim, respondeu João Pequeno. Você atirou-me ao rio, deve fazer aí uma meia-hora.

— Mas como se salvou e onde obteve esses carneiros?

— São ovelhas aquáticas. Vou contar-lhe toda a história, pois foi graças a você que consegui estes belos animais que me vão dar muito dinheiro.

Quando me vi arrojado ao rio, senti a queda vertiginosa e quase desmaiei de medo. Mas assim que o saco encostou no fundo, apareceu uma linda donzela, envolta num manto de gaze branca como a neve e tendo à cabeça uma coroa de louros. Chegou e pôs-me em liberdade, dizendo num sorriso: "Oh, é João Pequeno? Que agradável surpresa! Eis aqui alguns carneiros para você. Mais adiante encontrará muitos outros mais. É um presente que lhe faço." Olhei em torno e vi grande número de animais aquáticos andando de um lado para outro. O fundo do rio estava atapetado de flores. Pequeninos peixes passavam rente aos meus ouvidos, como fazem os pássaros aqui na terra. Que belas mulheres vivem lá embaixo! E que lindas e gordas ovelhas pastam a relva aveludada que nasce nos remansos...

— Se tudo era assim tão bonito, por que não ficou morando lá? É o que eu teria feito.

— Tenho cá as minhas razões. Mas, como ia contando, a ninfa avisou-me de que alguns quilômetros rio abaixo eu poderia juntar outras ovelhas ao meu rebanho. Conhecendo de sobejo o rio, e não ignorando as inúmeras voltas que ele dá, achei mais conveniente sair em terra e tomar por um atalho. Assim encurtaria de meio quilômetro a minha caminhada e entraria ainda mais cedo na posse dos carneiros.

— Que homem de sorte! exclamou João Grande tomado de inveja. Acha que também poderei obter algumas ovelhas se chegar até ao fundo do rio?

— Sem dúvida. Sinto não poder transportá-lo. Se, porém, estiver disposto a ir comigo até a ponte e meter-se num saco, poderei jogá-lo ao rio. O prazer será todo meu.

— Fico-lhe desde já muito grato. Mas advirto-o de que se não encontrar nada do que me falou, farei você ir para o inferno antes do tempo, entendeu?

Depois de garantir ao outro que só havia dito a verdade, João Pequeno dirigiu-se para o rio, acompanhado do rival.

Logo que os carneiros avistaram o rio apressaram a marcha, sequiosos que estavam por matar a sede.

— Veja como correm! disse João Pequeno. É que já estão com saudades do fundo d’água.

— Vamos! Depressa com isso, se não quiser levar uns trancos! rosnou João Grande enfiando-se num enorme saco que um dos carneiros trazia ao lombo. Amarre uma boa pedra ao saco para que afunde bem depressa.

— Não tenha medo. Embora não seja preciso, farei a sua vontade.

João Pequeno amarrou a pedra e depois amarrou fortemente a boca do saco — e empurrou-o ponte abaixo. Segundos depois o fardo desaparecia sob as águas, com estrondo.

E acabou-se João Grande. João Pequeno ficou sozinho no mundo e lá se foi calmamente com os seus carneiros pela estrada afora.


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

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