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11/12/2018

A morte do Camicego (Conto), de Monteiro Lobato



A morte do Camicego

Foi o Edgard quem “lançou” esse monstro. O Camicego era para sua imaginação de quatro anos um “bicho malvado”, grande como o guarda-louça. Depois foi crescendo, chegou a ficar do tamanho do morro.

Morávamos na fazenda, num casarão rodeado de morros, e ser grande como o morro avistado da “porta da rua” era algo sério...

Comia gente o Camicego, e tinha um bico assim! Este assim não era explicado com palavras, mas figurado numa careta de lábios abrochados em bico e olhos esbugalhados.

Com tão gentil focinho, não devia ser má rês o monstro — pensava a “gente grande” que, de passagem, via o Edgard refranzir os beicinhos naquela onomatopeia muscular. Mas para os nervosos cinco anos de sua irmã, a Marta, era de crer que fosse horrendo, tal o ríctus de pavor com que, enfitando a macaquice do irmão, instintivamente lhe arremedava o muxoxo.

E todas as noites, na rede da sala de jantar, ficavam os dois absorvidos no caso do Camicego — ele a desfiar as proezas incontáveis do monstro, ela a interrompê-lo com perguntas.

— E come gente?

(Preocupava à Marta, sempre que se lhe antolhava algo desconhecido, visto pela primeira vez — um besourão, um lagarto, uma coruja —, saber o grau de antropofagia da novidade. Para ela o mundo se dividia em duas classes: a dos seres bons, que não comem gente, e a dos maus, que comem gente.)

— Come sim! — inventava o Edgard. — Pois não sabe que comeu o filhinho da Mariana no dia da chuvarada?

Marta volvia os olhos sonhadores para a paisagem enquadrada na janela e quedava-se a cismar...

Nisto vinha para a rede um terceiro, o Guilherme, cujos dois anos e pico o traziam ainda muito amodorrado de imaginativa. Ouvia as histórias mas não se impressionava coisa nenhuma, e no meio da papagueada hoffmânica saltava ao chão e pedia coisa mais positiva — o pão de ló, o bolinho de milho, a gulodice qualquer do dia, entrevista no armário.

E a história continuava a dois, sempre na rede, onde eles se balançavam isócronos como dois ponteiros de metrônomo — sempre entremeada das perguntas da menina, futura leitora de Wallace e cabalmente dilucidada pelo Edgard, um Wells em embrião.

— E onde mora o Camicego?

No quarto escuro, no porão, debaixo da cama, no buraco do forno, naquele barranco onde caiu a vaca pintada — o Edgard encontrava incontinenti uma dúzia de biocos tenebrosos onde encafuar a sua criação.

Às vezes brincavam de casinha na sala de visitas, um grande salão sempre mergulhado em penumbra. Sob o sofá antigo, de canela-preta, armavam com álbuns de música e almofadas a casinha da Irene, a grande boneca de louça sem uma perna.

Que maravilhosa mobília tinha a casa da Irene! Coloridos cacos de tigela figuravam de suntuosa porcelana. Havia travessas e sopeiras “de mentira”. Em torno sentavam-se sabugos de milho representando as grandes personagens da fazenda — Anastácia, a cozinheira; Esaú, o preto tirador de leite; Leôncio, o domador. Quando comparecia à mesa este herói, não deixava de figurar também, solidamente amarrado a um pé de cadeira, o último animal que ele amansara. Este último animal era sempre o mesmo chuchu com quatro palitos à guisa de pernas, uma pena de galinha como cauda e três caroços de feijão figurando boca e olhos — sugestiva escultura da cozinheira que aquelas crianças preferiam aos mais bem-feitos cavalinhos de pau vindos da cidade.

Assim brincavam horas, até que, de súbito, farto já, o Edgard apontava para um canto da sala, onde eram mais intensas as sombras, e berrava com cara de terror:

— O Camicego!

Debandavam todos em grita, tomados de pânico, rumo à sala de jantar, a rirem-se do susto.

Um dia apareceu no quintal um grande morcego moribundo, de asas rotas por uma vassourada da copeira.

O Edgard foi quem o descobriu; trouxe-o para dentro e sem vacilar o identificou:

— O Camicego!

Reuniram-se os três em torno do monstro, em demorada contemplação: a menina mais arredada, no instintivo asco da sua sensibilidade feminil; o Guilherme espichado de barriga, o rosto moreno apoiado nas duas mãos; o Edgard pegando sem nojo nenhum no bicharoco, estirando-lhe as asas em gomos de guarda-chuva, abrindo-lhe a boca para mostrar a serrilha dos alvos dentinhos. E explicava petas a respeito.

— E este Camicego também come gente? — perguntou a menina.

— Boba! Pois não vê que é um coitado que nem come esta palhinha? — e Edgard enfiou uma palha goela adentro do bicho já morto.

Nesse momento “gente grande” apareceu na sala e pilhou-os na “porcaria”, e com ralhos ásperos dispersou o bando, pondo termo à lição anatômica.

O morcego, pegado com asco pela pontinha da asa, lá voou por cima do muro, pinchado, e xingado — “... esta imundície...”.

Mas de nada valeu a energia. O improvisado necrotério transferiu-se ali da sala para detrás do muro, à sombra de uma laranjeira onde caíra o morcego. O Edgard, com uma faca de mesa, procurava abrir a barriga do “porco” para ver o que tinha dentro. Depois teve uma grande ideia: fazer sabão da barrigada!

A faca, porém, não cortava aquelas pelancas moles e rijas, o “porco” fugia à direita e à esquerda, e assim foi até que a Anastácia, de passagem para a horta em busca de coentro, pilhou-os de novo na “porcaria”.

— Cambadinha! Vou já contar pra mamãe!...

Nova dispersão do grupo, e voo final da nojenta pelanca do vampiro, que desta vez foi parar em poleiro inacessível — em cima do telhado.

Datou daí a morte do Camicego. Não amedrontava mais.

Se Edgard o relembrava, os outros riam-se, porque a imaginação dos guris passara a encarnar o monstro na figura triste do pobre morcego morto, a estorricar-se ao sol no telhado.

Os homens, crianças grandes, não procedem de outra maneira. Os seus mais temerosos Camicegos saem-lhes morcegos relíssimos, sempre que uma boa vassourada da crítica os pespega para cima da mesa anatômica...


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)

Fatia de vida (Conto), de Monteiro Lobato



Fatia de vida

Não era homem querido, o doutor Bonifácio Torres. Não era querido pela ponderosa razão de pensar com sua própria cabeça. Para ser querido é força pensar como toda gente.

“Toda gente!”

Moloch social cujos mandamentos havemos de seguir de cabecinha baixa, sob pena dos mais engenhosos castigos. Um deles: incidir na pecha de esquisitice.

“É um esquisitão.”

Inútil dizer mais. O homem marcado vê-se logo posto de través e à margem, como o leproso. Torna-se um indesejável. É um suspeito. Haja meio e eliminam-no do grêmio como a um corpo estranho, de malsão convívio.

Assombramo-nos ao recordar os crimes de grupo que enchem a história — Santo Ofício, guerras, matanças religiosas. Transportados à época vemos que o progredir humano não passa da consolidação das vitórias do “esquisitão” sobre “Toda gente”.

“Toda gente” não tolerava dúvidas sobre a fixidez da Terra. Vem um esquisitão e diz: A Terra move-se em redor do Sol. “Toda gente”, por intermédio de seus representantes legais, agarra o velho pelo gasnete e força-o a retratar-se.

— Renega a heresia, infame, ou asso-te já na fogueira!

Galileu baixou a cabeça encanecida e abjurou. E a Terra, que começara a girar em torno ao Sol, teve que mudar de política e imobilizar-se por muito tempo ainda. Hoje roda livremente. O monstro deu-lhe essa liberdade...

Como se vê, apesar da guerra que “Toda gente” move aos esquisitões as ideias destes influenciam e aos poucos transformam a mentalidade do Moloch. No começo o monstro encarcera, esquarteja, empala, sufoca. Depois volta atrás, medita e murmura: “Ele tinha razão!”, e adere com a maior inocência.

“Toda gente” tem hoje a caridade como dogma infalível, e por esse motivo encarou com assombro o doutor Bonifácio quando o esquisitão sorriu a uma frase nédia e lisa do cônego Eusébio. O cônego Eusébio, conspícuo representante legal do Moloch, dissera no tom solene dos que monopolizam a verdade sobre o orbe:

— Não há virtude mais sublime. Só ela tem forças para resolver a questão social. Aquele movimento belíssimo durante a epidemia da gripe em São Paulo — que réplica de escachar o espírito que nega! Todos à urna, governos, matronas, meninas, associações, todos empenhados em lenir o sofrimento dos pobres, como que a derramar Deus nos corações!...

O doutor Bonifácio sorrira e o padre olhara-o de revés, com saudades, quem sabe, do bem-aventurado tempo em que sorrisos assim recebiam a réplica do fogo pio.

— Sorri-se o herege? — interpelou o padre. — Nega até a caridade?

— Não nego — respondeu mansamente o filósofo —, porque não nego nem afirmo coisa nenhuma. Negam e afirmam os atores, os que se agitam no palco da vida. Eu tenho meu lugar na plateia e, como não represento, observo. E como observo, sorrio — sorrio para não chorar...

— Seja mais claro.

— Serei. Quando o reverendo se abriu em louvores à caridade, não desfiz nessa cristianíssima virtude. Apenas me lembrei de certo drama a que assisti — e, repito, sorri para não chorar...

Depois de breve pausa de interrogativa expectação o doutor Bonifácio principiou.

— Isaura, a minha lavadeira...

As anedotas têm força de ímã. Vários curiosos aproximaram-se e ficaram a ouvir.

— Minha lavadeira, como todas as lavadeiras, era uma pobre mulher de incomparável heroísmo, desse que os épicos não cantam, o Estado não recompensa e ninguém sequer observa. Para mim, entretanto, é a forma nobre por excelência do heroísmo — a luta silenciosa contra a miséria.

— Que esquisitice!

— Porque é heroísmo ininterrupto, sem tréguas — continuou o doutor Bonifácio —, sem momento de repouso e, além disso, sem nenhuma esperança de qualquer espécie de paga.

— Vamos ao caso...

— Viúva com quatro filhos, a heroica Isaura matava-se no trabalho incessante. Aquelas mãos vermelhas e curtidas... Aqueles braços requeimados...

Que máquinas! Era do movimento deles que vinha o sustento da casa. Parassem, repousassem — e a Fome, esquálida megera que ronda os bairros pobres, meter-se-ia portas adentro...

— Romantismo... “Esquálida megera”...

— No primeiro sábado da Grande Gripe, Isaura, minha pontualíssima lavadeira, não me apareceu como de costume com a sua bandeja de roupa lavada. Em lugar dela veio uma vizinha.

“— A Isaura? — perguntei-lhe.

“— Anda às voltas com os filhos. Deu lá a ‘espanhola’ e a pobre está que está numa roda-viva.

“— Hei de ir vê-la, coitada...

“— É caridade, senhor. A pobre é bem capaz de endoidecer...

“Não fui. Impediu-mo a própria gripe, cujos primeiros sintomas nesse mesmo dia comecei a sentir. Passei de molho três semanas e quando me levantei, e me preparava para ir ver Isaura, eis que ela me reaparece em pessoa.

“Em que estado, porém! Envelhecera vinte anos, tinha os cabelos brancos, os olhos no fundo, o ar de uma coisa vencida pelo destino. E tossia.

“— Sente-se e conte-me tudo.

“Sentou-se e, sem derramar uma só lágrima, pois já as chorara todas, narrou-me a sua tragédia.

“Tinha em casa uma filha de dezoito anos, que trabalhava na costura; outra de dezesseis, que a ajudava na lavagem; um filho de quinze, entregador de roupa, e mais uma netinha de seis anos, órfã.

“A gripe apanhou-os a todos e a ela também. Mas a pobre criatura não soube disso, não o notou. Como perceber que estava doente se suas faculdades eram poucas para atentar nos filhos? E lá sarou de pé, sem um remédio. E como ela também sarariam os filhos todos se...”

O doutor Bonifácio voltou-se para o cônego.

—... se a caridade não interviesse...

— Já sei onde quer bater — exclamou o cônego. — Mas cumpre notar que quando falo de caridade não me refiro à assistência pública, nem sequer à filantropia. Falo da caridade sentimento, da caridade virtude cristã — concluiu baforando o cigarro, alegre, com ar de quem cortou vazas.

O doutor Bonifácio prosseguiu:

—... se a caridade sentimento não sobreviesse por intermédio do coração bondoso de uma vizinha. Esta vizinha, compadecida daquele angustioso transe, telefonou a um posto médico narrando o caso e pedindo assistência. A ambulância veio justamente durante a ausência da Isaura, que saíra a compras, e levou-lhe todos os filhos para o Hospital da Imigração.

“Corriam boatos apavorantes a respeito deste hospital improvisado, onde — murmuravam — só se recebiam os pobres bem pobres e o tratamento era o que devia ser, porque pobre bem pobre não é bem gente. De modo que nada apavorava tanto o povinho miúdo como ir para a Imigração.

“Assim, ao voltar da rua e saber do acontecido Isaura estarreceu. Foi como se o próprio inferno houvesse aberto as goelas e engolido os adorados doentes. Quem zelaria por eles? Sozinhas no meio de desconhecidos, de enfermeiros mercenários, que seria das pobres crianças?

“Correu para aqueles lados, inquirindo às tontas: ‘A Imigração? Onde fica a Imigração?’. ‘É por aqui.’ ‘Dobre à direita.’ ‘É lá naquela casa grande’, informavam-na pelo caminho.

“Chegou. Bateu. Esperou à porta um tempo enorme. Entravam e saíam pessoas apressadas, médicos, ajudantes, homens de avental. ‘Não é comigo’, diziam. ‘Espere.’ ‘Bata outra vez.’

“Afinal, uma alma caridosa...”

— Ca-ri-do-sa — repetiu o cônego, sorrindo.

—... uma alma caridosa apareceu e deu-lhe a informação pedida. Os filhos estavam lá, mais a netinha. A de dezesseis anos, porém, atacada de tifo.

“— Tifo?! — exclamou, alanceada, a pobre mãe. “A alma caridosa enterrou mais fundo o punhal: “— Sim, tifo, e do bravo.

“A mulher já não ouvia. De olhos esbugalhados, como fora de si, repetia a esmo a palavra tremenda — ‘Tifo!’ Conhecia-o muito bem. Fora a doença malvada que lhe arrebatara o marido.

“— Quero vê-la, quero ver minha filha!...

“— Impossível! “Isaura lutou, insistiu. “Inútil.

“A porta fechou-se com chave e a pobre mulher se viu despejada na rua. “Andou muito tempo à toa, como ébria, sem destino. ‘Olha a louca!’, gritavam os moleques. E parecia mesmo, se não louca, pelo menos aluada. “Súbito Isaura resolveu-se. Havia de ver os filhos. Era mãe. ‘São meus, o mundo nada tem com eles. Eu os tive, eu os criei, só eu os quero no mundo. São tudo para mim. Como gentes estranhas me roubam assim os filhos, me impedem que eu, mãe, os veja? Nem ver, apenas ver? Oh, isso é demais.’

“Havia de vê-los.

“Galvanizada pela resolução, Isaura correu a implorar socorro de um homem influente cuja roupa lavava.

“O influente deu-lhe uma carta. ‘Vá com isto que as portas se abrem.’ “Nova corrida ao hospital. Nova espera angustiosa. Por fim a mesma alma caridosa...”

O doutor Bonifácio entreparou, olhando para o sacerdote. E, como desta vez ele silenciasse, prosseguiu:

— Por fim a alma caridosa reapareceu e disse à desolada mãe:

“— Posso ir lá dentro saber de seus filhos, mas deixá-la entrar, não! “— E a carta?

“— Inútil. É expressamente proibido.

“— Pois dê-me notícias de meus filhos, então.

“A alma caridosa foi saber dos doentinhos e a triste mãe, embrulhada em seu xale humilde, ficou a um canto, esperando. Minutos depois reaparecia a alma caridosa.

“— Olhe, sua filha morreu.

“— Morr...

“E os olhos da miseranda mãe exorbitaram, seus dedos se crisparam...

“— Morreu!... Mas qual delas?

“— Uma delas.

“— Mas qual? Qual?...

“Já eram gritos lancinantes que lhe saíam da boca. A alma caridosa fechou a porta e sumiu-se...

“O infinito desespero de Isaura nessa noite em casa, a revolver-se na cama, a remorder o travesseiro... ‘Qual? Qual das minhas filhas morreu?...’ A dor requintava-se ante a incerteza. ‘Seria a Inesinha? Seria a Marietinha?’ E o cérebro lhe estalava na ânsia de adivinhar. ‘Qual delas, meu Deus?’

“São dores que a palavra não diz. Imagina-as a imaginação de cada um.

Adiante.

“No outro dia a mulher correu de novo ao hospital. Repete-se a mesma cena — a ansiosa espera de sempre, os pedidos com lágrimas a saltarem dos olhos. O ambiente é o mesmo — de indiferença geral. Só não há indiferença na alma caridosa, que reaparece e pergunta:

“— Que quer de novo, santinha?

“— Meus filhos... saber...

“— Seus filhos? Não estão mais aqui. Foram removidos para o hospital do Isolamento, os dois.

“— Os dois?!...

“— Os dois, sim, porque a mais pequena também morreu.

“— A minha netinha morreu?!...

“— Coragem, minha velha, a vida é isto mesmo.

“E a porta fechou-se pela última vez.”

As três ou quatro pessoas reunidas em torno do doutor Bonifácio ansiavam pelo final da história. “E depois?”, era a sugestão de todos os olhos.

O doutor Bonifácio prosseguiu:

— Depois? Depois a gripe declinou, a normalidade foi se restabelecendo e os dois filhos restantes voltaram à casa materna. Em que estado! O menino, semimorto, cadavérico, e a Inês (só ao vê-la chegar soube Isaura qual das duas morrera) e a Inês com uma tosse de tuberculosa. E ali ficaram, destroços de horrível naufrágio, aqueles três miseráveis molambos de vida, sob a assistência da negra enfermeira — a Fome. Continuaram a viver, sem saber como, por instinto — num desvario, numa alucinação...

“Da última vez que vi a pobre Isaura, disse-me ela, entre dois acessos de tosse:

“— Tudo porque me levaram de casa os filhos. Se ficassem nada lhes teria acontecido. A nossa vizinha, tão boa, coitada, quis fazer o bem e fez a nossa desgraça. É um perigo ser muito bom...”

O doutor Bonifácio calou-se. O cônego não achou que fosse caso de comentar. A roda dissolveu-se em silêncio.


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)

Marabá (Conto), de Monteiro Lobato



Marabá

Bom tempo houve em que o romance era coisa de aviar com receitas à vista, qual faz o honesto boticário com os seus xaropes.

Quer trabuco histórico? Tome tanto de Herculano, tanto de Walter Scott, um pajem, um escudeiro e o que baste de Briolanjas, Urracas e Guterres.

Quer indianismo? Ponha duas arrobas de Alencar, uns laivos de Fenimore, pitadas de Chateaubriand, graúnas quantum satis, misture e mande.

Receitas para tudo. Para começo (fórmula Herculano): “Era por uma dessas tardes de verão em que o astro-rei etc., etc.”.

E para fim (fórmula Alencar): “E a palmeira desapareceu no horizonte...”. Arrumado o cenário da natureza, surgia, lá em Portugal, um lidador com o seu espadagão, todo carapaçado de ferro e ereto no lombo de árdego morzelo; ou, aqui no Brasil, um cacique de feroz catadura, todo arco, flechas e inúbias.

E vinha, ou uma castelã de olhos com cercadura de violetas, ou uma morena virgem nua, de pulseira na canela e mel nos lábios.

E não tardava um donzel trovadoresco que “cantava” a castelã, ou um guerreiro branco que fugia com a Iracema à garupa.

Depois, a escada de corda, o luar, os beijos — multiplicação da espécie à moda medieval; ou um sussurro na moita — multiplicação da espécie à moda natural.

A tantas o pai feroz descobria tudo e, à frente dos seus peões, voava à caça do sedutor em desabalada corrida, rebentando dúzias de corcéis; ou o cacique de rabos de arara na cabeça erguia as mãos para o céu de Tupã implorando vingança.

E dom Bermudo, apanhando o trovador pirata, o objurgava em estilo de catedral, com a toledana erguida sobre sua cabeça:

— Mentes pela gorja, perro infame!

Ou o cacique, filando o guerreiro branco, o trazia para a taba ao som da inúbia e lá o assava em fogueira de pau-brasil; vingança tremenda, porém não maior que a de dom Bermudo a fender o crânio do pajem e a arrancar-lhe o coração fumegante para depô-lo no regaço da castelã manchada.

E a moça desmaiava, e o leitor chorava e a obra recebia etiqueta de histórica, se passada unicamente entre Dons e Donas, ou de indianista, se na manipulação entravam ingredientes do empório Gonçalves Dias, Alencar & Cia.

Veio depois Zola com o seu naturalismo, e veio a psicologia e a preocupação da verdade, tudo por contágio da ciência que Darwin, Spencer e outros demônios derramaram no espírito humano.

Verdade, Verdade!... Que musa tirânica! Como fez mal aos romancistas — e como os força a ter talento!

Foram-se as receitas, os figurinos. Cada qual faça como entender, contanto que não discrepe do veritas super omnia, latim que em arte significa mentir com verossimilhança.

— Tudo isso para quê? — perguntará o leitor atônito.

É que trago nos miolos uma novela tão ao sabor antigo, tão fora da moda, que não me animo a impingi-la sem preâmbulo. E não é feia, não. Vem de Alencar, esse filho de alguma Sherazade aimoré, que a todos nós, na juventude, nos povoou a imaginação de lindas coisas inesquecíveis. E compõe-se de um guerreiro branco, duas virgens das selvas, caciques, danças guerreiras, fuga heroica etc.

Chama-se “Marabá” e principia assim:

Era por uma dessas noites enluaradas de verão, em que a natureza parece chovida de cinzas brancas.

Dorme a taba, e dorme a floresta circundante, sem sussurros de brisas, nem regorjeio de aves.

Só o urutau pia longe, e uma ou outra suindara perpassa, descrevendo voos de veludo ao som dum clu, clu, clu... que ora se aproxima, ora se perde distante.

No centro do terreiro, atado a um poste da canjerana rija, o prisioneiro branco vela. Foi vencido em combate cruento, teve todos os seus homens trucidados e vai agora pagar com a vida o louco ousio de pisar terra aimoré. Será sacrificado pela manhã ao romper do sol, cabendo ao potente Anhembira, cacique invicto, a honra de fender-lhe o crânio com a ivirapema de pau-ferro. Seu corpo será destroçado pelas horrendas megeras da tribo, sua carne devorada pelos ferozes canibais.

O guerreiro branco rememora com melancolia o viver tão breve — sua meninice de ontem, o engajamento numa nau, a viagem por mar, as aventuras nas terras novas de Santa Cruz, norteadas pela desmedida ambição do ouro.

É louro e tem olhos azuis. Em suas veias corre o melhor sangue do reino. Seu avô caiu nas Índias, varado duma zagaia cingalesa; seu pai, nos sertões inóspitos dos Brasis, acabou na paralisia do curare que seta fatal lhe inoculou.

Chegara a vez do mal-aventurado rebento último dessa estirpe de heróis...

Em redor, guerreiros cor de bronze, exaustos da dança e bêbados de cauim, jazem estirados, as mãos soltas dos tacapes terríveis. Também dormita o velho pajé, de cócoras rente à ocara, com o maracá em silêncio ao lado.

Que mais? Sim, a lua... A lua que no alto passeia o seu crescente.

Súbito, um vulto se destaca de moita vizinha e aproxima-se cauteloso, com pés sutis de corça arisca.

É Iná, a mais formosa virgem das selvas, oriunda do sangue cacical de Anhembira, o Morde-corações.

A virgem caminha em direção ao prisioneiro. Para-lhe defronte e por instantes o contempla, como presa de indecisas ideias.

Por fim decide-se e, ligeira como a irara, desfaz os nós da muçurana fatal e dá de beber ao guerreiro branco o trago de cauim desentorpecedor dos músculos adormentados. Em seguida mira-o a furto nos olhos, perturbada, e num gesto indica-lhe a mata, sussurrando em língua da terra:

— Foge!

O guerreiro branco vacila. Não conhece a mata, que é imensa, e teme encontrar em seu seio morte mais cruel que a pelo tacape de Anhembira.

Iná compreende o seu enleio e, tomando-lhe a mão, leva-o consigo; conhece a mata a palmo e sabe o caminho de pô-lo a seguro em sítio até onde não ousa alongar-se a gente aimoré.

A noite inteira caminham, e só quando um grande rio de águas negras lhes tranca o passo é que a virgem morena se detém. Aponta o rio ao moço guerreiro e nesse gesto diz que está finda a sua missão, pois que o rio leva ao mar e o mar é o caminho dos guerreiros brancos.

O moço tem o peito a estourar de gratidão e amor, e como não pode significá-los com palavras lusas, recorre ao esperanto da natureza: abraça a virgem morena, beija-a e, a céu aberto, ao som múrmuro das águas eternas, louco de paixão, a possui.

Reticências.

Ao romper da madrugada:

— É a cotovia que canta!... — diz ela.

— Não; é o rouxinol — retruca Romeu.

— É a cotovia...

— É o rouxinol...

Vence a cotovia. O moço beija-a pela última vez e parte. Não esquece, porém, de enfiar no dedo de Julieta um anel — joia indispensável ao desfecho da nossa tragédia.

PRIMEIRO ATO

A tribo está apreensiva. As velhas murmuram e o pajé inquieta-se.

— Marabá! — sussurram todos.

Castigo de Tupã? Sinal do céu que marca o termo da glória de Anhembira, o chefe da tribo?

Uma criança nascera ali, de olhos azuis e loura, evidentemente marabá. E nascera de Iná, a virgem bronzeada em cujas veias corre o sangue do grande morubixaba.

Traição!

A mãe mentira à raça, e do contato com o estrangeiro invasor, cruel inimigo que do seio do mar surgiu para desgraça do povo americano, teve aquela filha. O louro dos cabelos, o azul dos olhos, a alvura da pele denunciavam claramente o imperdoável crime.

— Marabá! — sussurram todos.

E um vago terror espalha-se pela tribo.

O pajé reúne em concílio os velhos para decidirem sobre o gravíssimo caso. E após longas ponderações a assembleia resolve o sacrifício da pequena marabá, em holocausto aos manes irritados da tribo.

Levam a sentença ao cacique, que é pai, mas que antes de pai é o chefe, o inexorável guardião da Lei velha como o tempo.

Anhembira cerra o sobrecenho, baixa a cabeça e queda-se imóvel como a própria estátua da dor.

Entre parêntesis.

Uma coisa me espanta: que haja inda hoje, nestes nossos atropelados dias modernos, quem escreva romances! E quem os leia!...

Conduzir por trezentas páginas a fio um enredo, que estafa!

Nada disso. Sejamos da época. A época é apressada, automobilística, aviatória, cinematográfica, e esta minha “Marabá”, no andamento em que começou, não chegaria nunca ao epílogo.

Abreviemo-la, pois, transformando-a em entrecho de filme. Vantagem tríplice: não maçará o pobre do leitor, não comerá o escasso tempo do autor e ainda pode ser que acabe filmada, quando tivermos por cá miolo e ânimo para concorrer com a Fox ou a Paramount.

Vá daqui para diante a cem quilômetros por hora, dividida em quadros e letreiros.


QUADRO

Enquanto Anhembira, de cabeça derrubada sobre o peito, medita sobre a sentença que condenou a criança loura, uma índia velha corre a avisar Iná.

Iná é mãe e as mães não vacilam. Toma a filhinha nos braços e foge para as selvas...


QUADRO

Lindo cenário. Trecho de mata virgem trancado de cipoeira, trançado de taquaruçus. Vê-se à direita um velho tronco de enorme jequitibá ocado. É nesse oco que mora a menina loura de olhos azuis. A mãe ajeitou-o para esconderijo seguro; tapetou-o de musgos macios; fez dele um ninho de meter inveja às aves.

Ali dorme o lindo anjo, filho do amor a céu aberto. Ali recebe a mãe inquieta, que de fuga lhe traz o seio nutriz. De fuga, pois a tribo ignora o estratagema e está certa de que a filha de Anhembira arrojou ao abismo das águas o fruto maldito do seu ventre.


LETREIRO

Marabá cresceu no sombrio da mata, como a ninfa mimosa do ermo. Iná ensinou-lhe a vida e deu-lhe armas com que abatesse as aves que piam no subosque, e a caça ligeira que entoca, e os peixes faiscantes que se alapam nas pedras.


QUADRO

Marabá despede-se de sua mãe.

Já pode viver por si e quer seguir para ermos distantes onde não chegue o som das inúbias de Anhembira — lá onde o rio é como um deus irrequieto que ora escabuja nas fragas, ora brinca com as pétalas mortas remoinhantes em seus remansos.

Iná despede-se da filha e, repetindo o gesto do guerreiro branco, põe-lhe no dedo o anel de núpcias.


QUADRO

A vida solitária de Marabá. Seu namoro com o rio. Nele banha-se e mergulha e nada, com a linda coma loura flutuante, e nele mira seus olhos feitos de pedaços do céu.

É seu amante, é seu deus o rio eterno. É o ser vivo em cuja companhia refoge à depressão do ermo absoluto.


LETREIRO

Em Marabá confluem duas psíquicas — a da terra, herdada de sua mãe, e a do moço louro vindo de além-mar, duma plaga distante que em sonhos indecisos sua alma em botão adivinha.


QUADRO

Mas pouco cisma, a linda Marabá. O tempo lhe é escasso para a delirante vida de ninfa que é o seu viver ali.

Ora perde a manhã inteira na perseguição do gamo que veio beber ao rio; ora galga a pedranceira em prodígios de arrojo para colher uma flor que se abriu no mais alto da penha.

Persegue borboletas — e que quadro é vê-la no campo, veloz como a gazela, a loura cabeleira solta ao vento!

Sua nudez de virgem esplende em fulgor de escultura divina. Deus a esculpiu — e escultor nenhum jamais concebeu corpo assim, de linhas mais puras, seios mais firmes, ancas mais esgalgas, braços de torneio mais fino.

Tem a nudez divina, Marabá — porque existe a nudez humana: das criaturas que convivem entre humanos e sofrem todos os vincos da humanidade.

Marabá não viciou sua nudez no contato humano; é nua como é nu o lírio — sem saber que o é.

Mas é mulher. Adivinha de instinto que as flores fê-las Deus para a mulher, e colhe-as, e tece-as em guirlandas, e com elas enfeita os cabelos e o colo e a cintura. E assim, toda flores, mira-se no espelho das águas e sorri. E porque sorri, logo salta, alegre, e dança. E porque dança, anima as selvas da luz maravilhosa que os helenos ensinaram ao mundo.

Súbito, um rumor fá-la estacar. A filha de Dionísio se apaga e surge Diana.

Ei-la de arco em punho, em louca desabalada, na pista do cervo incauto que lhe interrompeu a bela improvisação coreográfica.

Quem lhe ensinou a dançar?

Tudo. O sangue estuante em suas veias, o vento que agita a fronde das jiçaras, o remoinho das águas, as aves. Viu dançarem os tangarás, um dia, e desde esse momento sua vida é uma contínua e maravilhosa criação em que a alma da terra americana se exsolve em movimentos rítmicos.

Sempre mulher, Marabá amansou uma veadinha de leite e tem-na consigo como inseparável companheira, dócil às suas expansões de carinho. Com a pequena corça brinca horas a fio, e abraça-a, e beija-a no mimoso focinho róseo.

Que festa a vida de Marabá!

Ninguém a vence em riquezas. Ouro, dá-lhe o sol às catadupas, e todo só para ela. Perfume, não em frascos microscópicos o tem, mas ambiente, perenal; as flores só exalam para ela, e todas as brisas se ocupam em trazê-lo de longe, tomado da corola das orquídeas mais raras.

E as abelhas ofertam-lhe o mel puríssimo; e os ingazeiros de beira-rio dão-lhe a nívea polpa dos seus frutos invaginados; e cem árvores da floresta parecem precipitar a maturescência de suas bagas rubras, roxas, verdoengas, para que mais cedo os alvos dentes da ninfa as mordam com delícia.

E os dias de Marabá são assim um delírio de luz, de perfumes, de movimentos sadios e livres, capaz de enlouquecer a imaginação dos pobres seres chamados homens, que vivem em prisões chamadas cidades, dentro de gaiolas chamadas casas, com poeira para os pulmões em vez de ar, catinga de gasolina em vez de vida...


NOTA A MR. CECIL B. DE MILLE

Este papel de Marabá tem que ser feito por Annette Kellermann. Como, porém, Annette já está madura e Marabá é o que existe de mais botão, torna-se preciso inventar um processo que rejuvenesça de trinta anos a intérprete.


QUADRO

Um dia, um caçador tresmalhado surpreende a ninfa no banho.

É Ipojuca, o filho dileto de Anhembira e seu sucessor no cacicado. Três dias e três noites correu ele em perseguição de um jaguar; mas no momento em que dobrava o arco para desferir a flecha certeira, descaiu-lhe das mãos a arma e seus olhos se dilataram de assombro.

O corpo nu da virgem loura emergira das águas à sua frente.

— Iara?

No primeiro momento o medo sobressaltou-o — mas o sangue de Anhembira reagiu em suas veias, e não seria o filho do guerreiro que jamais conheceu o medo quem tremesse diante de mulher, Iara que fosse.

E Ipojuca imobilizou-se à margem do rio, em muda contemplação, até que a ninfa, percebendo-o, fugisse para o lado oposto, mais arisca do que a tabarana.

Ipojuca atravessou o rio e logo mergulhou na floresta, em sua perseguição. Jamais as ninfas venceram a faunos na corrida. Foi assim na Grécia; seria assim sob o céu de Colombo. O filho do cacique alcançou-a. Seu braço de ferro enlaçou-a; suas mãos potentes quebraram-lhe a resistência e dobraram-lhe a cabeça loura para o beijo de núpcias.

Mas a virgem vencida abriu para o macho vitorioso os grandes olhos azuis e, encarando-o a fito, murmurou a tremenda palavra que afasta:

— Sou Marabá!

Ipojuca estarrece, como fulminado pelo raio, e deixa que a presa loura fuja para o recesso das selvas.


QUADRO

Ipojuca, o vencedor vencido, caminha de cabeça baixa, absorto em sonhos. Vai de regresso à taba. O jaguar que tinha perseguido cruza-se-lhe à frente. Ipojuca não o vê. A seta que lhe destinara cravou-lha Eros no coração.


QUADRO

Na taba, Ipojuca, desde que regressou, vive arredio. Pensa.

A cabeça lhe estala. Travam-se de razões seu cérebro e seu coração — o dever de solidariedade para com a tribo e o amor. Um impõe-lhe o desprezo da criatura maldita; outro pede-a para o beijo.

LETREIRO

Vence Amor — o eterno vencedor, e Ipojuca volta ao ermo em procura de Marabá.



QUADRO

A virgem loura, desde o encontro fatal, perdida tem a sua serenidade de lírio.

Cisma.

Horas e horas passa imóvel, com o olhar absorto. Sua veadinha ao lado inutilmente espera as carícias de sempre. Marabá não a vê. Marabá esqueceu-a. Como esqueceu as borboletas amarelas que douram o úmido em redor da laje onde jaz reclinada. Como não vê o casal de martins-pescadores que a três passos a espiam curiosos.

Marabá só vê o guerreiro de pele bronzeada que a subjugou com o braço potente, que lhe premiu com violência a carne virgem, que lhe derramou na alma um veneno mortal.

Marabá só vê o seu guerreiro.

Vê-lhe o vulto ereto, firme e forte como os penedos. Vê-lhe a musculatura mais rija que o tronco da peroba. Vê o fogo que seus olhos chispam.

E com tamanha nitidez o vê que para ele estende os braços, amorosamente. E Ipojuca, pois era Ipojuca em pessoa e não sua sombra o que ela via, cai-lhe nos braços e esmaga-lhe nos lábios o primeiro beijo.


QUADRO

Idílio. Marabá espera o seu guerreiro no alto de uma canjerana.

Ipojuca chega, procura-a, chama-a, aflito.

A resposta é um punhado de bagas rubras que a virgem lhe lança da fronde. Ágil como o gorila, Ipojuca abarca o tronco da canjerana e marinha galhos acima.

Ao ser alcançada, Marabá despenha-se no rio e mergulha.

Susto do índio, logo seguido de alegria ao vê-la emergir além. Lança-se à água, persegue-a — e são dois peixes de pasmosa agilidade que brincam.

Agarra-a — e a luta finda-se na doce quebreira dos beijos.

QUADRO

Moema, a formosa virgem por Anhembira destinada para esposa de Ipojuca, desconfia dos modos de seu noivo. Aquelas contínuas ausências, aquele incessante cismar, seu alheamento a tudo, dizem-lhe com clareza que uma rival se interpõe entre ambos.

E, como desconfia, segue-o cautelosa. E tudo descobre, pois alcança o rio onde, o coração varado de crudelíssima flecha, assiste, oculta em propícia moita, às expansões amorosas dos ternos amantes. Adivinha quem é a rival, pois que ainda tem vivo na memória o caso da marabazinha misteriosamente desaparecida.


QUADRO

Moema regressa à tribo e, sequiosa de vingança, denuncia ao pajé o esconderijo da virgem maldita.

é velho reúne os guerreiros, arenga-os, incita-os à vingança antes que volte Anhembira, alongado numa expedição de vindita contra os brancos invasores. Receia que o cacique perdoe à neta, movido pelas lágrimas da velha Iná.


QUADRO

Os guerreiros em marcha para a vingança.


QUADRO

Surpreendidos pelos índios, os amantes fogem rio abaixo numa piroga. (É difícil explicar o aparecimento desta providencial piroga, mas não impossível. Derivou rio abaixo, por exemplo, e ali ficou enredada numa tranqueira. Não esquecer de introduzir num dos quadros anteriores um close-up da piroga.)

Os índios metem-se em outras pirogas. (Mais pirogas! É que não derivou uma só, sim várias...) E remam com fúria na esteira dos fugitivos.

QUADRO

Continua a perseguição. Não há flechaços, para evitar-se o perigo de ferir-se Ipojuca. Perseguição silenciosa, à força de remos que estalam.


QUADRO

A noite vem e a regata continua ao luar.


QUADRO

E descem os fugitivos até que, de súbito, dão de cara com um fortim português.


LETREIRO

Entre dois fogos!


QUADRO

Os remos caem das mãos de Ipojuca. Marabá aninha-se-lhe ao peito rijo, indiferente à morte — que nada há mais suave do que acabar assim, a dois, em pleno apogeu do delírio do amor.


QUADRO

Os índios perseguidores ganham terreno. São avistados pelos portugueses, que logo acodem com os seus trabucos de boca de sino e abrem fuzilaria.

QUADRO

Os perseguidores fogem desordenadamente. Ipojuca, ferido no peito, é aprisionado juntamente com Marabá.


QUADRO

Na praia, ao lado do seu arco, Ipojuca estorce-se nas dores da agonia, enquanto Marabá é levada à presença do capitão do forte, que demora um minuto para apresentar-se.


QUADRO

Rodeiam-na os lusos e admiram-lhe a beleza do tipo europeu.

Nisto o capitão do fortim aparece.

Interroga-a; examina-a cheio de pasmo, como que tomado de vagos pressentimentos.

Marabá tem o anel que Iná lhe deu.

O capitão examina-o e, assombrado, o reconhece.

— Minha filha! — exclama.

E numa delirante explosão de amor paterno abraça-a e beija-a com frenesi.


QUADRO

Ipojuca, a distância, estorce-se na agonia. Vê a cena e, sem compreender o que se passa, julga que o capitão, como um sátiro, rouba-lhe a amante querida. Reúne as últimas forças, toma do arco, ajusta uma flecha e despede-a contra Marabá.


QUADRO

A flecha crava-se no peito da virgem loura, que desfalece e morre nos braços do pai atônito, enquanto na praia o heroico Ipojuca exala o derradeiro suspiro, murmurando:
LETREIRO


— Minha ou de ninguém!

(Acendem-se as luzes e enxugam-se as lágrimas.)


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)