9/25/2016

A Missa das sombras (Conto), de Anatole France



A Missa das sombras, de Anatole France

Tradução publicada na revista "Fon-Fon", em sua edição de 18 de fevereiro de 1950. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)

Eis que o que o sacristão da igreja de Santa Eulália, em Neuville-d'Anmont me contou debaixo da latada do Cavalo-Branco, numa bela noite de verão, bebendo uma garrafa de velho vinho, à saúde de um morto muito abastado, que ele havia enterrado honrosamente naquela mesma manhã, sob um tecido cheio de belas lágrimas de prata.
— Meu finado e pobre pai (quem fala é o sacristão) foi, em vida, coveiro. Era de humor agradável, e isso sem dúvida decorria de sua profissão, porque se tem reparado que as pessoas que trabalham nos cemitérios possuem espírito jovial. A morte não os atemoriza absolutamente; jamais se preocupam com ela. Eu, que lhe estou falando, senhor, penetro num cemitério, à noite, tão serenamente quanto no caramanchão do Cavalo-Branco. E se, por acaso, encontro um espectro, não me inquieto absolutamente com isso, porque reflito que ele pode perfeitamente ir cuidar de seus negócios, da mesma forma que eu dos meus. Conheço os hábitos dos mortos e seu caráter. Sei a tal respeito coisas que os próprios sacerdotes ignoram. E o senhor ficaria surpreso se lhe contasse tudo o que tenho visto. Mas, nem todas as verdades são próprias para serem contadas, e meu pai, que todavia gostava de narrar histórias, não revelou a vigésima parte do que sabia. Em compensação, repetia muitas vezes as mesmas narrativas e, ao que eu saiba, relatou bem umas cem vezes a aventura de Catarina Fontaine.
Catarina Fontaine era uma velha senhorita que ele se lembrava de ter visto em criança. Não me surpreenderia se ainda houvesse na região até uns três anciões que ainda se recordem de ter ouvido falar a seu respeito, porque ela era muito conhecida e considerada, embora pobre. Morava na esquina da rua das Freiras, na torrezinha que o senhor ainda pode ver e que depende de um velho palacete meio arruinado, que dá para o jardim das Ursulinas. Há nessa torrezinha figuras e inscrições meio apagadas. O falecido pároco de Santa Eulália, Levasseur, dizia aí estar escrito em latim que o "amor é mais forte que a morte". O que se refere, acrescentava, ao amor divino.
Catarina Fontaine vivia sozinha nessa pequena habitação. Fazia rendas. O senhor sabe que as rendas de nossa região eram antigamente muito afamadas. Não se conheciam parentes ou amigos seus. Dizia-se que amara, aos dezoito anos, o jovem cavaleiro d'Aumont-Clery, com quem noivara secretamente. Mas as pessoas de bem não queriam acreditar absolutamente nisso e diziam tratar-se de uma história que fora imaginada porque Catarina Fontaine lembrava mais uma senhora, que uma operária, conservava sob seus cabelos brancos os vestígios de uma grande beleza, possuía um ar triste e que se lhe podia ver na mão uni desses anéis em que o ourives colocou duas mãozinhas unidas e que era costume outrora os noivos trocarem. O senhor saberá, daqui a pouco, o que isso significava.
Catarina Fontaine vivia santamente. Frequentava as igrejas e, todas as manhãs, qualquer fosse o tempo, ia ouvir a missa de seis horas em Santa Eulália.
Ora, uma noite de dezembro, quando ela estava deitada em seu pequeno quarto, foi despertada pelo toque dos sinos; certa de estarem eles anunciando a primeira missa, a piedosa senhora vestiu-se e desceu à rua, onde a noite era tão fechada que não se viam absolutamente as casas e que claridade alguma era perceptível no céu negro. E reinava tamanho silencio nessas trevas que nem mesmo um cão ladrava ao longe — que a pessoa sentia-se completamente separada do mundo dos vivos. Mas Catarina Foutaine que conhecia cada uma das pedras onde pisava e que podia ir à igreja de olhos fechados, alcançou sem dificuldade a esquina da rua das Freiras, com a rua da Paróquia, no ponto onde se ergue a casa de madeira que exibe uma árvore de Jessé, esculpida numa volumosa trave. Tendo alcançado esse local, ela viu que as portas da igreja estavam abertas e que deixavam sair uma grande claridade de círios. Continuou a caminhar e, tendo entrado, encontrou-se numa grande reunião que enchia a igreja. Ela, porém, não reconhecia nenhum dos presentes, e estava surpresa ao ver todas aquelas pessoas trajadas de veludo e de brocado, com plumas no chapéu e trazendo espada, à maneira dos tempos de outrora. Havia senhores que seguravam bengalas de castão de ouro, e damas com toucados de rendas presos com um pente em diadema. Cavaleiros de São Luiz davam a mão a essas senhoras que escondiam atrás do leque um rosto pintado, do qual só era visível a têmpora empoada e um sinal no canto dos olhos! E todos iam colocar-se em seu lugar sem o menor ruído, e não se ouviam, enquanto andavam, nem o som dos passos no lajedo, nem o roçar dos tecidos. As naves laterais enchiam-se de multidão de jovens artesãos, de casaco pardo, calções de fustão e meias azuis, que seguravam pela cintura raparigas lindíssimas, rosadas, que conservavam os olhos baixos. E, junto às pias de água benta, camponesas de saia vermelha e corpinho de atar, sentavam-se no chão com a tranquilidade dos animais domésticos, enquanto uns mocetões, de pé atrás delas, arregalavam os olhos rodando o chapéu nos dedos. E todas aquelas fisionomias silenciosas pareciam imobilizadas para sempre, no mesmo pensamento, suave e triste. Ajoelhada em seu lugar costumeiro, Catarina Fontaine viu o sacerdote caminhar para o altar, precedido por dois acólitos. Não reconheceu nem o sacerdote, nem os ajudantes. Começou a missa. Era uma silenciosa missa na qual não se ouvia absolutamente o som dos lábios que se agitavam, nem o rumor da sineta agitada inutilmente. Catarina Fontaine sentia-se sob o olhar e sob a influência de seu misterioso vizinho e, tendo olhado sem quase volver a cabeça, reconheceu o jovem cavaleiro d'Aumont-Clery, que a havia amado e que morrera fazia quarenta  e cinco anos. Reconheceu-o por um sinalzinho que ele possuía sob a orelha esquerda e, principalmente, pelo sombreado dos longos cílios negros cm seu rosto. Vestia o traje de caça, vermelha, com alamares dourados, que ele usava no dia em que, tendo-a encontrado no bosque de São Leonardo, pedira-lhe de beber e roubara-lhe um beijo. Conservava a sua mocidade e seu bom aspecto. Seu sorriso ainda mostrava uma dentadura de jovem lobo. Catarina disse-lhe baixinho:
— Senhor, vós que fostes meu amigo e a quem dei outrora o que uma jovem possui de mais precioso, Deus vos tenha em sua graça! Possa Ele me inspirar, finalmente, o pesar pelo pecado que cometi convosco; porque é verdade que, de cabelos brancos e próxima da morte, não me arrependo de vos ter amado. Mas, finado amigo, meu belo senhor, dizei-me quem são essas pessoas trajadas à maneira antiga, que estão assistindo aqui a esta silenciosa missa.
O cavaleiro d'Aumont-Clery respondeu com uma voz mais débil que um sopro e, não obstante, mais clara que o cristal:
— Catarina, esses homens e essas mulheres são almas do purgatório que ofenderam a Deus, pecando a nosso exemplo, pelo amor das criaturas, mas que nem por isso estão desligadas de Deus, porque seu pecado foi, a exemplo do nosso, sem maldade. Enquanto, separadas daquele que amavam sobre a terra, elas se purificam do fogo lustral do purgatório, padecem as dores da ausência, e para eles esse sofrimento é o mais cruel. São tão infelizes que um anjo do céu se apieda de seu martírio de amor. Com o consentimento de Deus, reúne, todos os anos, durante uma hora da noite, o amigo à amiga em sua igreja paroquial, onde lhes é permitido assistir à missa das sombras, segurando-se pela mão. Esta é a verdade. Se me foi permitido  ver-te aqui, antes de tua morte, Catarina, tal coisa não se realizou sem a permissão de Deus.
E Catarina Fontaine lhe respondeu:
— Bem desejaria morrer para voltar a ser formosa como nos dias, meu finado senhor, em que te dava de beber na floresta.
Enquanto falavam assim, baixinho, um cônego muito idoso recolhia as esmolas e apresentava uma grande saIva de cobre aos presentes que aí deixavam cair sucessivamente moedas antigas, há muito tempo fora de circulação: escudos de seis libras, florins, ducados e ducadões, jacobos, nobres com a rosa, e as moedas caíam em silêncio. Quando a salva de cobre lhe foi apresentada, o cavaleiro de-positou um luís que não mais ruído que as outras moedas de ouro ou de prata. Depois, o velho cônego parou em frente a Catarina Fontaine que procurou em seu bolso, sem nele encontrar um real. Então, não desejando recusar sua dádiva, tirou do dedo o anel que o cavaleiro lhe dera na véspera de sua morte, e atirou-o na concha de cobre. O anel de ouro, ao cair, ressoou como pesado badalo de sino e, ao ruído atroador que ele fez, o cavaleiro, o cônego,  oficiante, os acólitos, as damas, os demais cavaleiros, toda a assistência desapareceu; os círios se apagaram e Catarina Fontaine ficou sozinha nas trevas.
Tendo concluído assim a sua narrativa, o sacristão bebeu um grande copo de vinho, ficou um instante a meditar e depois prosseguiu nestes termos:
— Contei-lhe esta história exatamente como a ouvi muitas vezes de meu pai  — creio que é verdadeira porque corresponde a tudo o que tenho observado das maneiras e dos costumes peculiares aos defuntos.
Convivi muito com os mortos desde minha infância e sei que eles costumam voltar a seus amores.
É por isso que os mortos avarentos vagam, à noite, nas proximidades dos tesouros que eles esconderam durante sua vida. Montam boa guarda à volta de seu ouro; mas os cuidados que eles tomam, longe de lhes servirem, prejudicam-nos e não é raro descobrir-se dinheiro enterrado na terra, pesquisando-se o sítio frequentado por um fantasma. Da mesma forma, os finados maridos vêm ator-mentar à noite suas mulheres casadas em segundas núpcias, e eu poderia indicar muitos que vigiaram melhor suas esposas depois de mortos do que o haviam feito em vida.
Esses são dignos de censura, porque, em boa justiça, os defuntos não deveriam ser ciumentos. Mas lhe estou contando o que tenho observado. Por isso é que se deve ter cuidado quando se desposa uma viúva. Aliás, a história que lhe relatei tem sua comprovação no seguinte fato:
Na manhã seguinte a essa noite extraordinária, Catarina Fontaine foi encontrada morta em seu quarto. E o suíço de Santa Eulália encontrou na salva de cobre que servia para o peditório, um anel de ouro com duas mãos juntas. Aliás, não sou homem que conte histórias para fazer rir. E se pedíssemos outra garrafa de vinho?...

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