Tradução publicada na revista "Fon-Fon", em sua edição de 18 de fevereiro de 1950. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
Eis que o que o sacristão da igreja de Santa Eulália, em Neuville-d'Anmont me contou debaixo da latada do Cavalo-Branco, numa bela noite de verão, bebendo uma garrafa de velho vinho, à saúde de um morto muito abastado, que ele havia enterrado honrosamente naquela mesma manhã, sob um tecido cheio de belas lágrimas de prata.
— Meu finado
e pobre pai (quem fala é o sacristão) foi, em vida, coveiro. Era de humor
agradável, e isso sem dúvida decorria de sua profissão, porque se tem reparado
que as pessoas que trabalham nos cemitérios possuem espírito jovial. A morte
não os atemoriza absolutamente; jamais se preocupam com ela. Eu, que lhe estou
falando, senhor, penetro num cemitério, à noite, tão serenamente quanto no
caramanchão do Cavalo-Branco. E se, por acaso, encontro um espectro, não me
inquieto absolutamente com isso, porque reflito que ele pode perfeitamente ir
cuidar de seus negócios, da mesma forma que eu dos meus. Conheço os hábitos dos
mortos e seu caráter. Sei a tal respeito coisas que os próprios sacerdotes
ignoram. E o senhor ficaria surpreso se lhe contasse tudo o que tenho visto.
Mas, nem todas as verdades são próprias para serem contadas, e meu pai, que
todavia gostava de narrar histórias, não revelou a vigésima parte do que sabia.
Em compensação, repetia muitas vezes as mesmas narrativas e, ao que eu saiba,
relatou bem umas cem vezes a aventura de Catarina Fontaine.
Catarina
Fontaine era uma velha senhorita que ele se lembrava de ter visto em criança.
Não me surpreenderia se ainda houvesse na região até uns três anciões que ainda
se recordem de ter ouvido falar a seu respeito, porque ela era muito conhecida
e considerada, embora pobre. Morava na esquina da rua das Freiras, na
torrezinha que o senhor ainda pode ver e que depende de um velho palacete meio
arruinado, que dá para o jardim das Ursulinas. Há nessa torrezinha figuras e
inscrições meio apagadas. O falecido pároco de Santa Eulália, Levasseur, dizia
aí estar escrito em latim que o "amor é mais forte que a morte". O
que se refere, acrescentava, ao amor divino.
Catarina
Fontaine vivia sozinha nessa pequena habitação. Fazia rendas. O senhor sabe que
as rendas de nossa região eram antigamente muito afamadas. Não se conheciam
parentes ou amigos seus. Dizia-se que amara, aos dezoito anos, o jovem
cavaleiro d'Aumont-Clery, com quem noivara secretamente. Mas as pessoas de bem
não queriam acreditar absolutamente nisso e diziam tratar-se de uma história
que fora imaginada porque Catarina Fontaine lembrava mais uma senhora, que uma
operária, conservava sob seus cabelos brancos os vestígios de uma grande
beleza, possuía um ar triste e que se lhe podia ver na mão uni desses anéis em
que o ourives colocou duas mãozinhas unidas e que era costume outrora os noivos
trocarem. O senhor saberá, daqui a pouco, o que isso significava.
Catarina
Fontaine vivia santamente. Frequentava as igrejas e, todas as manhãs, qualquer
fosse o tempo, ia ouvir a missa de seis horas em Santa Eulália.
Ora, uma
noite de dezembro, quando ela estava deitada em seu pequeno quarto, foi
despertada pelo toque dos sinos; certa de estarem eles anunciando a primeira
missa, a piedosa senhora vestiu-se e desceu à rua, onde a noite era tão fechada
que não se viam absolutamente as casas e que claridade alguma era perceptível
no céu negro. E reinava tamanho silencio nessas trevas que nem mesmo um cão
ladrava ao longe — que a pessoa sentia-se completamente separada do mundo dos
vivos. Mas Catarina Foutaine que conhecia cada uma das pedras onde pisava e que
podia ir à igreja de olhos fechados, alcançou sem dificuldade a esquina da rua
das Freiras, com a rua da Paróquia, no ponto onde se ergue a casa de madeira
que exibe uma árvore de Jessé, esculpida numa volumosa trave. Tendo alcançado
esse local, ela viu que as portas da igreja estavam abertas e que deixavam sair
uma grande claridade de círios. Continuou a caminhar e, tendo entrado, encontrou-se
numa grande reunião que enchia a igreja. Ela, porém, não reconhecia nenhum dos
presentes, e estava surpresa ao ver todas aquelas pessoas trajadas de veludo e
de brocado, com plumas no chapéu e trazendo espada, à maneira dos tempos de
outrora. Havia senhores que seguravam bengalas de castão de ouro, e damas com
toucados de rendas presos com um pente em diadema. Cavaleiros de São Luiz davam
a mão a essas senhoras que escondiam atrás do leque um rosto pintado, do qual
só era visível a têmpora empoada e um sinal no canto dos olhos! E todos iam
colocar-se em seu lugar sem o menor ruído, e não se ouviam, enquanto andavam,
nem o som dos passos no lajedo, nem o roçar dos tecidos. As naves laterais
enchiam-se de multidão de jovens artesãos, de casaco pardo, calções de fustão e
meias azuis, que seguravam pela cintura raparigas lindíssimas, rosadas, que
conservavam os olhos baixos. E, junto às pias de água benta, camponesas de saia
vermelha e corpinho de atar, sentavam-se no chão com a tranquilidade dos
animais domésticos, enquanto uns mocetões, de pé atrás delas, arregalavam os
olhos rodando o chapéu nos dedos. E todas aquelas fisionomias silenciosas
pareciam imobilizadas para sempre, no mesmo pensamento, suave e triste.
Ajoelhada em seu lugar costumeiro, Catarina Fontaine viu o sacerdote caminhar
para o altar, precedido por dois acólitos. Não reconheceu nem o sacerdote, nem
os ajudantes. Começou a missa. Era uma silenciosa missa na qual não se ouvia
absolutamente o som dos lábios que se agitavam, nem o rumor da sineta agitada
inutilmente. Catarina Fontaine sentia-se sob o olhar e sob a influência de seu
misterioso vizinho e, tendo olhado sem quase volver a cabeça, reconheceu o
jovem cavaleiro d'Aumont-Clery, que a havia amado e que morrera fazia quarenta e cinco anos. Reconheceu-o por um sinalzinho
que ele possuía sob a orelha esquerda e, principalmente, pelo sombreado dos
longos cílios negros cm seu rosto. Vestia o traje de caça, vermelha, com
alamares dourados, que ele usava no dia em que, tendo-a encontrado no bosque de
São Leonardo, pedira-lhe de beber e roubara-lhe um beijo. Conservava a sua
mocidade e seu bom aspecto. Seu sorriso ainda mostrava uma dentadura de jovem
lobo. Catarina disse-lhe baixinho:
— Senhor,
vós que fostes meu amigo e a quem dei outrora o que uma jovem possui de mais
precioso, Deus vos tenha em sua graça! Possa Ele me inspirar, finalmente, o
pesar pelo pecado que cometi convosco; porque é verdade que, de cabelos brancos
e próxima da morte, não me arrependo de vos ter amado. Mas, finado amigo, meu
belo senhor, dizei-me quem são essas pessoas trajadas à maneira antiga, que
estão assistindo aqui a esta silenciosa missa.
O cavaleiro
d'Aumont-Clery respondeu com uma voz mais débil que um sopro e, não obstante,
mais clara que o cristal:
— Catarina,
esses homens e essas mulheres são almas do purgatório que ofenderam a Deus,
pecando a nosso exemplo, pelo amor das criaturas, mas que nem por isso estão
desligadas de Deus, porque seu pecado foi, a exemplo do nosso, sem maldade.
Enquanto, separadas daquele que amavam sobre a terra, elas se purificam do fogo
lustral do purgatório, padecem as dores da ausência, e para eles esse
sofrimento é o mais cruel. São tão infelizes que um anjo do céu se apieda de
seu martírio de amor. Com o consentimento de Deus, reúne, todos os anos,
durante uma hora da noite, o amigo à amiga em sua igreja paroquial, onde lhes é
permitido assistir à missa das sombras, segurando-se pela mão. Esta é a verdade.
Se me foi permitido ver-te aqui, antes
de tua morte, Catarina, tal coisa não se realizou sem a permissão de Deus.
E Catarina
Fontaine lhe respondeu:
— Bem
desejaria morrer para voltar a ser formosa como nos dias, meu finado senhor, em
que te dava de beber na floresta.
Enquanto
falavam assim, baixinho, um cônego muito idoso recolhia as esmolas e
apresentava uma grande saIva de cobre aos presentes que aí deixavam cair
sucessivamente moedas antigas, há muito tempo fora de circulação: escudos de
seis libras, florins, ducados e ducadões, jacobos, nobres com a rosa, e as
moedas caíam em silêncio. Quando a salva de cobre lhe foi apresentada, o
cavaleiro de-positou um luís que não mais ruído que as outras moedas de ouro ou
de prata. Depois, o velho cônego parou em frente a Catarina Fontaine que
procurou em seu bolso, sem nele encontrar um real. Então, não desejando recusar
sua dádiva, tirou do dedo o anel que o cavaleiro lhe dera na véspera de sua
morte, e atirou-o na concha de cobre. O anel de ouro, ao cair, ressoou como
pesado badalo de sino e, ao ruído atroador que ele fez, o cavaleiro, o
cônego, oficiante, os acólitos, as
damas, os demais cavaleiros, toda a assistência desapareceu; os círios se
apagaram e Catarina Fontaine ficou sozinha nas trevas.
Tendo
concluído assim a sua narrativa, o sacristão bebeu um grande copo de vinho, ficou
um instante a meditar e depois prosseguiu nestes termos:
— Contei-lhe
esta história exatamente como a ouvi muitas vezes de meu pai — creio que é verdadeira porque corresponde a
tudo o que tenho observado das maneiras e dos costumes peculiares aos defuntos.
Convivi
muito com os mortos desde minha infância e sei que eles costumam voltar a seus
amores.
É por isso
que os mortos avarentos vagam, à noite, nas proximidades dos tesouros que eles
esconderam durante sua vida. Montam boa guarda à volta de seu ouro; mas os cuidados
que eles tomam, longe de lhes servirem, prejudicam-nos e não é raro
descobrir-se dinheiro enterrado na terra, pesquisando-se o sítio frequentado
por um fantasma. Da mesma forma, os finados maridos vêm ator-mentar à noite
suas mulheres casadas em segundas núpcias, e eu poderia indicar muitos que
vigiaram melhor suas esposas depois de mortos do que o haviam feito em vida.
Esses são
dignos de censura, porque, em boa justiça, os defuntos não deveriam ser
ciumentos. Mas lhe estou contando o que tenho observado. Por isso é que se deve
ter cuidado quando se desposa uma viúva. Aliás, a história que lhe relatei tem
sua comprovação no seguinte fato:
Na manhã
seguinte a essa noite extraordinária, Catarina Fontaine foi encontrada morta em
seu quarto. E o suíço de Santa Eulália encontrou na salva de cobre que servia
para o peditório, um anel de ouro com duas mãos juntas. Aliás, não sou homem
que conte histórias para fazer rir. E se pedíssemos outra garrafa de vinho?...
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