9/25/2016

Furto doméstico (Conto), de Anatole France


Furto doméstico, de Anatole France

Tradução publicada na revista "Revista da Semana", em sua edição de 27 de novembro de 1945. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)

Haverá dez anos, pouco mais, pouco menos, visitei uma prisão de mulheres.
Era um castelo antigo, do tempo de Henrique IV, e cujos telhados da ardósia dominavam a modesta cidade do Sul, à beira dum rio. O diretor da prisão estava chagando à idade da aposentadoria. Sobreau barba branca usava uma cabeleira postiça preta. Era um diretor extraordinário. Tinha ideias próprias e sentimentos humanos. Não nutria ilusões quanto à moralidade das suas trezentas hóspedes: entendia, porém, não ser essa moralidade muito inferior à de trezentas mulheres tomadas ao acaso em qualquer cidade. E o seu olhar suave, fatigado, parecia dizer: "Aqui dentro, como alhures, há de tudo".
Quando atravessamos o pátio, longa fila de condenadas terminava o passeio silencioso e voltava para as oficinas. Havia numerosas velhas de ar embrutecido e esconso. O meu amigo dr. Cabane, que nos acompanhava, observou-me que em todas aquelas mulheres havia taras características; que eram frequentes entre elas os casos de estrabismo; que se tratava positivamente de degeneradas e bem poucas deixavam de apresentar estigmas de crime, de delito pelo menos.
O diretor meneou lentamente a cabeça. Vi que o não impressionavam sobremaneira as teorias dos médicos criminalistas; estava persuadido de que, na nossa sociedade, os culpados não diferem muito dos inocentes.
Levou-nos às oficinas. Vimos confeiteiras, lavadeiras, roupeiras em plena atividade. O trabalho e a limpeza davam ao recinto um tanto ou quanto de alegria. O diretor tratava todas as mulheres bondosamente. Nem as mais estúpidas ou maldosas lhe faziam perder a paciência ou a benignidade. Entendia que nos cumpre relevar muita coisa às pessoas com quem vivemos; que não devemos fazer grandes exigências aos delinquentes; e, contrariamente ao critério geral, não fazia questão de que as ladras e outras criminosas se tornassem perfeitas só por terem sido castigadas. Não acreditava na eficácia moral das punições nem esperava fazer da prisão uma escola de virtudes. Não sendo de opinião que podemos tornar melhores as outras pessoas fazendo-as sofrer, poupava o mais possível em tal sentido aquelas infelizes.   Não sei se ele  tinha  sentimentos  religiosos; mas não ligava significação moral alguma à ideia de expiação.
— Interpreto o regulamento... disse-me ele — antes de o aplicar. E eu mesmo o explico às detidas. Por exemplo: o regulamento prescreve o silêncio absoluto; mas, se elas se conservassem absolutamente caladas, ficariam idiotas ou dementes. E então penso, devo pensar que não é isso que o regulamento quer. E digo-lhes: "O regulamento impõe-lhes o silêncio. Que significa isso? Significa que as vigilantes não devem ouvir o que vocês dizem. Se elas as ouvirem, vocês serão castigadas; se não as ouvirem, nem admoestadas vocês serão. Ora, eu não tenho que lhes pedir contas dos seus pensamentos. E, se as suas palavras não fizerem mais ruído que os seus pensamentos, não tenho que lhes pedir contas das suas palavras". Assim advertidas, tratam elas de falar, sem por assim dizer, produzir som algum. Não enlouquecem e a regra é observada.
Perguntei-lhe se os seus superiores hierárquicos aprovam aquela interpretação do regulamento.
Respondeu-me que não raro os inspetores lhe faziam observações; ele, porém, conduzia-os até à porta exterior e dizia-lhes: "Estão vendo esta grade? É de madeira. Se fechassem homens aqui dentro, ao cabo de oito dias não restaria um só. As mulheres não pensam em se evadir. Devemos, porém, evitar que se enfureçam. Já o regime da prisão não é muito favorável à sua saúde física e moral... Se os senhores lhes impuserem deveras a tortura do silêncio não me encarregarei de as guardar.
A enfermaria e os dormitórios, que em seguida visitamos, ocupavam grandes salas caiadas e que do antigo esplendor só conservavam as lareiras monumentais de granito cinzento e de mármore, encimadas por pomposas Virtudes em alto relevo. Esculpida por volta de 1600, por algum artista flamengo italianizado, uma Justiça, com o colo nu e deixando ver a ilharga através da fenda da túnica, sustentava com braço forte a balança cujos pratos pareciam chocar-se freneticamente como címbalos. Essa deusa assestava a ponta do seu gládio contra uma doentinha deitada em leito de ferro debaixo dum cobertor delgado como uma toalha. Dir-se-ia uma criança.
— Então? Está melhor? perguntou o dr. Cabane.
— Sim, senhor, muito melhor! respondeu a enferma. E sorria.
— Tenha juízo, esteja bem quietinha e logo ficará boa.
Ergueu para o médico grandes olhos cheios de alegria e de esperança.
— Esteve bem mal, coitada... disse-me o dr. Cabane.
E passamos adiante.
— Por que delito foi ela condenada?
— Delito, não; crime.
— Qual?
— Infanticídio.
Ao cabo de longo corredor, entramos num compartimento de aspecto agradável, guarnecido de armários e cujas janelas sem grades davam para o campo. Uma mulher ainda moça, bonita deveras, trabalhava a uma escrivaninha.  Ao lado, de pé, outra mulher, bem feita de corpo, escolhia uma chave no molho que trazia pendurado da cintura. Julguei que fossem filhas do diretor.  Este porém, me fez ver que eram condenadas.
— Não reparou que usam o uniforme da casa?
— Não tinha reparado, sem dúvida porque elas o não usavam como as outras. — Os vestidos são mais bem feitos e os bonés, de tamanho menor, deixam-lhes ver os cabelos.
— É difícil... respondeu o velho diretor — impedir uma mulher de mostrar os cabelos quando são bonitos. Estas duas, sujeitas ao regime, tem cada uma o seu trabalho.
— Que fazem elas?
— Uma é arquivista e a outra bibliotecária.
Não era preciso perguntar: tratava-se de duas "passionais". O diretor não nos escondeu que às delinquentes preferia as criminosas.
— Sei de algumas... explicou ele — que são como estranhas aos crimes respectivos. Foi como um relâmpago que passou na sua vida. São capazes de mostrar retidão, coragem, generosidade. Outro tanto não direi das ladras. Os seus delitos, sempre medíocres, vulgares, formam a trama da sua existência. São incorrigíveis. E a vileza que as levou a cometer atos repreensíveis a cada momento reaparece na sua conduta. A sentença que as atinge é relativamente ligeira; e, como têm pouca sensibilidade, quer física quer moral, suportam-na, as mais das vezes, com facilidade.
Não quer isto dizer... acrescentou vivamente — que tais infelizes sejam, todas elas, indignas de piedade e não mereçam o nosso interesse. Quanto mais vivo mais me convenço de que não há culpados e só há desgraçados.
Conduziu-nos a um gabinete e deu ordem a um vigilante de trazer a detida 503.
— Vou lhes proporcionar — declarou ele — um espetáculo que não preparei, acreditem, e que de certo lhes inspirará reflexões novas acerca dos delitos e dos castigos. O que vão ver e ouvir, cem vezes eu o tenho visto e ouvido.
Uma detida, com o vigilante atrás, entrou no gabinete. Era uma camponesa bastante bonita, de ar simplório e doce.
— Tenho uma boa notícia a dar-lhe... disse o diretor. — O senhor Presidente da República, informado do seu bom comportamento, perdoa-lhe o resto da pena. Sairá daqui no sábado.
A criatura escutava, com a boca entreaberta, as mãos cruzadas contra o ventre. Via-se que as ideias lhe não entravam rapidamente na cabeça.
— No sábado sairá daqui. Está livre.
Desta vez, compreendeu. Tremeram-lhe os lábios; as mãos ergueram-se num movimento de aflição:
— Mas tenho mesmo que me ir embora? Que vai ser de mim? Aqui tenho casa, comida, tudo. Não podia o senhor responder para lá que era melhor eu ficar onde estou?
O diretor fez-lhe ver que, realmente, ela não podia recusar a graça que lhe era concedida; e anunciou-lhe que, à saída, receberia certa quantia: dez ou doze francos.
A criatura retirou-se, chorando.
Perguntei o que ela havia feito. O diretor folheou um registro:
— 503. Servia em casa de uns lavradores. Furtou uma saia da patroa. Furto doméstico. A lei castiga severamente o furto doméstico...

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