9/03/2016

"A virgem do negrinho" (Conto), de: Joaquim Leitão

Joaquim Antunes Leitão nasceu na cidade do Porto, Portugal, no dia 26 de abril de 1875. Faleceu em  Lisboa, em 1956.

O depoimento, a seguir, foi escrito por Raul de Azevedo, no ano da morte do grande escritor português, extraído da revista Illustração Brasileira, edição de 1956.
"Morreu em Portugal um grande escritor Joaquim Leitão. Amizade de decênios, correspondência quase permanente, sentimos profundamente esse desaparecimento, que enluta também o Brasil. Porque esse homem foi sempre um bom, um excelente amigo da nossa Pátria. Interessava-se pelo nossa País, quase tanto como pela sua terra natal. Era um amigo sincero e leal.
"É um poderoso e fascinante historiador, escritor, jornalista. Forma apurada dentro da ideia alta. Acadêmico, Secretário da Academia das Ciências de Lisboa, sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras, — era um nome das duas Pátrias irmãs e amigas.
Era um soberbo contista, um teatrólogo, um romancista. E um notável historiador. Foi o autor do Dom Carlos, o Desventurado, de As alianças das Casas de Bragança e Hohenzollern, do Ataque a Chaves.
Jornalista, foi o correspondente em Lisboa, muitíssimos anos, do velho-moço que é o "Jornal do Comércio" Em 1944 visitava o Brasil, homenageado pelos seus confrades e especialmente pelos senhores acadêmicos. E então estava no leito convalescendo da moléstia bárbara que foi a mesma que vitimou-o. Procurou-me conversamos. Depois se foi, forte, senhor de boa saúde, para o seu Portuga bem amado.
Passam-se os anos, e continuamos, até agora, a nos cartearmos, velhos companheiros e amigos. Conheci-o nessa Lisboa, querida e simpática, cheia de tradições e glórias. Acolhedora. Simples e eterna, terra de Camões e Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, Antero de Quental, Camilo, Fialho de Almeida, Antônio Nobre, Júlio Dantas, Augusto de Castro, Pinheiro Chagas, Oliveira Martins, e mais uma centena de celebridades.
Foi político, e esteve deportado. Era um espírito ágil e equilibrado. Nascido no mesmo ano longínquo, ele em 1921 entrava para a Academia das Ciências de Lisboa, e morre como seu secretário. Lia muito e escrevia muito esse verdadeiramente pranteado Joaquim Leitão, — Joaquim Antunes Leitão Junior.
Era um infatigável. O que ele escreveu! Na parte histórica foi prodigioso. Feria de frente os problemas máximos que interessavam o seu Portugal bem querido. E contos, romances e novelas, a mancheias! E teatro. Diversas de suas obras tiveram mais de uma edição. O seu último livro — e que belo! — foi uma novela, de 1954, Nas Sete Colinas, lindamente apresentada. Trabalhos esparsos inúmeros. Ele foi o Diretor do Museu da Restauração. Foi Secretário da Assembleia Nacional. Condecorado... Diretor ou colaborador de diversos jornais.
Na sua carta de 5 de Julho último ele contava-me que há quatro meses tivera "um percalço na minha vida, um espasmo cerebral, que há quatro meses me retém em casa sem poder escrever"... Estivera inválido, mas melhorara muito. Faltava fortalecer a perna direita e acabar de curar a mão direita. E acrescentava, — "tudo isto deve estar resolvido com mais três meses, mas com muita paciência e sacrifício". E acrescentara, — "recebi o número 68 da "Revista das Academias" — (essa mesma Revista tão falada intramuros e tão elogiada lá fora) — e fiquei muito contente por que V. assumiu a Direção; é realmente um soluções e empreendimentos. Muitos parabéns ao Brasil e a V. que vai fazer coisas empreendimento muito belo e a organização é destinada a dar ao Brasil grandes muito belas nesse campo de ação".
E me falava que desejava escrever na nossa "Revista". Na sua última carta, datada de Lisboa a 8 de Agosto de 1956, dizia-me, — "Assim que tiver um momento lhe mandarei qualquer coisa. Não se trata de trabalho remunerado, é de amigo para amigo. Saudades. A nossa é uma velha amizade. É uma vida! Um abraço do Joaquim Leitão."
Ia me esquecendo. Nessa carta derradeira há um pos-escriptum, — "Eu fiquei completamente bom; não arrasto a perna; não tenho a boca torta; entende-se perfeitamente o que eu digo, espírito completamente lúcido, boa memória, mas a mão direita está um bocadinho curva, o que me torna difícil escrever". Tenho para mim que a Dona Morte violou essa carta. Sorriu malignamente. E matou-o.
***

A virgem do negrinho
Fora justamente nessa véspera de Natal que ela vira pela primeira vês o Presépio da Estrela.
Deslumbrada, a custo se arredara do camarim envidraçado onde a Basílica conserva a ingênua herdança das freiras carmelitas.
Rodara, tornara a rodar e por tudo dera, até pelo que o barrista apontara nos últimos planos como a caminhada furtiva. Nossa Senhora, intencionalmente despercebida para que toda a evidência e toda a Luz venha do berço pobrezinho.
O seu espontâneo senso do real demorava-se no que de movimento e de verdade havia no quadro: no acidentado anfiteatro dos serros, nas figuras humanas que surdiam dos longes como veios d'água a engrossar cascata, e nos pormenores rústicos, animais, frutos, ar livre, vida. Sem saber por que, naturalmente pelo lusitanismo do imaginário, para os seus doze anos a Palestina era o Ribatejo das manhãs ardidas, das chapadas de sol e das investidas das cheias nos dias em que o Tejo se turva de mau senho: era o seu campo palmilhado por gentes como aquela que corria para o estábulo onde se representava o divino natal.
Os Reis Magos de turbante e mantos bordados, com seus elefantes exairelados ao mesmo ouro dos turíbulos e incensórios, a opulência do cortejo não deixavam de a maravilhar. Mas os seus olhos compreendiam melhor e compraziam-se sobretudo na graça das figurinhas populares tão suas conhecidas, cuja indumentária dava aos pendores um ar festivo de romagem: homens de chapeirão e cara tostada, mulheres erremangadas, de saia de sirguilha e alvos corpetes em que batiam tranças negras, cachopos nusinhos à guisa de Deus menino, carregos de pombos e galinhas a espreitar do linho dos cestinhos, cordeirinhos enroscados no pescoço dos pastores, deitados ao caminho com seus cantos e tangeres cabrinhas mansas, adufes, o cego da sanfona, o senhor, o ruão, bufarinheiros e soldados e frades, frisos angélicos de crianças maravilhadas, humanidade estremunhada pela graça divinal, coro de êxtases interpretado pela fé dos mestres barristas.
Mais que tudo e encantava o grupo central com a jumenta e a resignada vaquinha aquecendo com seu bafo o Menino que entre Maria e o carpinteiro de Nazaré pregava nas palhas da natividade a sua primeira parábola de humildade.
Quando desceu a estreita escadinha da sala da tribuna e depois o escadório da Basílica, trazia nos olhos todo o auto. A sua memória era um imaginário do século XVIII em cujas mãos o barro se quebrasse a todo o instante e que pacientemente uma a uma recompunha as figuras, ampliadas com inéditos pormenores de beleza.
Aquele coraçãozinho de pequena mulher, de sangue fidalgo traçado por linfa popular, todo o dia embalara o Menino Jesus nascido como ela numa enxerga de caridade. Manhã e tarde aos mandados da modista, aquela linda alma dourou tristezas e canseiras a ouvir pífaros, tambores, gaitas de foles, adufes, e os pastores a acordarem as encostas fragosas com o coro do Bendito.
Noite de gala para ricos, noite de redobrado trabalho para os pobres: entregue a obra à última freguesa, palmilhada a Patriarcal, batiam na torre de São Roque as onze e três quartos quando ela desembocava do Cunhal das Bolas.
E pesado reposteiro da Igreja dos Inglesinhos, cada vez que alguém o torcia para franquear caminho, deixava entrevês luzes de função.
Uma manápula enluvada de branco atravessou-se como quem enxota pintainho que salte relvado de parque passeado por donas e faisões reais:
— Sai daqui pequena!
— Espreitar não tem mal...
— É a missa.
— Então vou ouvir.
— Mas é a Missa do Galo. Só pra fidalgos!
A pequena ficou-se.
Atentando, porém, naquele tipo aristocrático de princesa exilada, serenidade que não se perturbava nem com o luxo nem com a ferocidade das ordens, e para tudo olhava com pupilas que conheciam a Dor, — ou por simpatia do povo ou por submissão à estranha figura, o bom do homem condescendeu:
— Vai mas não te demores ... Vê lá como te portas!
Uma sensação de entrar no céu aqueceu-lhe a alma. Era tão bom o calor das luzes! Os cabelos ainda molhados dos pingos da chuva começavam a enxugar. Outro tanto não sucedia às botas de botões, com biqueiras rotas, e às meias pretas de cordão que continuavam a recordar-lhe a longa jornada. Indiferente ao desconforto, abrangeu na mirada instantânea todo o ambiente: a decoração do templo, os lustres, a concorrência. Nada a surpreendeu, nem abalou. Era a corte, a nobreza do bairro nobre — as Alcáçovas, frágeis mármores italianos, as Barcelinhos, com o seu fidalguíssimo ar romano, a Condessa de Avilez, pequenina, redondinha, envolta em folhos de gaze, figurinha buliçosa foragida de um Watteau, a Condessa de Ficalho, as Lancastres, as Atouguias, as Wanzelers, delicado grupo de loiras, do loiro fulvo de Reynolds, as Castro e Távoras, a senhoril Condessa de Paço d'Arcos irradiando nobreza, as Guardas, belezas morenas, do moreno queimado por sóis de Andaluzia, as Portuguais aureoladas por séculos de nobreza, a opulenta Condessa de Mendia, a Marquesa de Gouveia, grandes senhoras, todas suas conhecidas, freguesas na maioria, algumas com os vestidos que lhes entregara horas antes. Sabia como eram feitas aquelas gazes...
E presto o comentário acudiu à sua sensibilidade: iam louvar Jesus, levar-lhe oferendas e loas, mas o carreiro de pastorinhos de barro estava mais no seu agrado. O próprio Jesus assim rodeado, em templo aquecido por lumes de vela, derredor de cristais, que não pela estrela guiadora, não tinha para ela a magnificência do Deus Menino do Presépio, adormecido nas palhinhas de Balém, sob o pálido do olhar da Virgem, ladeado de alvoroços sinceros, de compenetrados êxtases e de cânticos. O povo, desagasalhado, traz o coração extreme e por isso anda mais à flor o sentimento.
Ao transpor o pequenino pórtico com esta conclusão, uma onda de espuma saía de uma carruagem, e uma voz parecida com a dela estranhou:
— Ainda andas por aqui?
— Fui ver o Menino Jesus e agora vou para casa.
— Olha, toma as tuas broas — e abrindo a carteira de veludo branco, bordada a prata, deu-lhe uma moeda de cinco tostões.
Desceu a Calçada dos Caetanos, a aplicar mentalmente aquela fortuna. Vira tanta coisa bonita nas montras... Não chegava para tudo! E o que mais apetecia era um Menino Jesus. Mas havia de ser muito grande, em tamanho natural, para ela embalar nos braços não como brinquedo mas como ser humano, vida a que desse amparo. A sua melancolia, que não sabia o que era calor de beijo, ansiava por colar à sua boca alguém que tivesse menos alegria, e mais frio do que ela.
Acabara o seu dia quando outro dia começava. Todos tinham uma casa, luzes, calor, pais, irmãos, um coração onde ir agasalhar-se. Ela não tinha nada, nem ninguém, não era de ninguém, ninguém era seu. Ao menos queria o Menino Jesus que, sendo de todos, era dela também. Nem que fosse de barro. Havia de fazer-lhe um vestidinho, chamar-lhe-ia enfim o seu Menino Jesus.
Lentamente, em passos de visitação ou de imagem que pisa halos de luz nas alturas, desceu a rampa, cismando no seu sonho... Passava da meia-noite. Estava tudo fechado.
— "De manhãzinha, quando sair..." — prometeu a si mesma. E andou para diante, mais leve e contente.
Ao cruzar a Rua Formosa para o Arco de Jesus, direita aos Poiais, deu com uma mulher sentada nos degraus do Palácio de Sebastião José, curvada e imóvel. Acercou-se, e na sua voz doce em que soavam cristais de lágrimas, chamou:
— Vo, mecê está doente...?
A carcaça apenas sacudiu a cabeça desinteressada daquele interesse.
Aproximou-se mais, a exortar:
— Diga! Que tem...?
A criatura ergueu o busto e na sua face de negra bateu a claridade da consolação agradecida. Mirou a pequena, encolheu os ombros, e tinha dito tudo.
— É seu filho? — perguntou, apontando para a criança que lhe dormia encaracolada no regaço.
— É.
— E o pai?
— O meu home? Aleijou-se a bordo, levaram-no para o hospital... — e pela face angulosa dois fios de luz correram para o mar das amarguras.
— Não tilara. Olhe, venha comigo comer um caldinho ali defronte.
Os dentes da pobre negra foram por instantes botaréu de sorriso.
E dinheiro?
— Eu tenho. Deram-me agora cinco tostões.
— Quem? — estranhou a outra, mal pendendo a crer em tamanha caridade.
— Ali em cima, uma fidalga que ia a entrar para a missa dos Inglesinhos. Por sinal que é minha irmã.
— Irmã?!
— Doutra mãe...
— Conhece-te?
— De eu ir levar os vestidos que manda fazer lá na loja. Mas não sabe quem eu sou. Vê-me muitas vezes, mas nós não nos parecemos... Vamos às sopas.
E levando o negrinho pela mão, entraram na taberna, antiga cocheira de palácio cavada na rampa, a essa hora mal cheia de trabalhadores e boleeiros.
Ficaram os três no mesmo banco, a um canto da casa e, enquanto a negra, faminta e regelada, se confortava com a malga do grão, a pequena cuidava maternalmente da criança.
Pagou com a sua moeda de prata e, tornando a atravessar para a vereda fronteira, foi ela a primeira a sentar-se no passeio. Deitou o negrinho no regaço e, para ter as mãos desembaraçadas, disse para a mãe:
— A demasia é para vo, mecê.
A negra contava os vinténs, ela embalava o negrinho, aconchegava-lhe as pontas da capa nesse instinto de maternal paixão que dá tudo e tudo acha pouco. Felicíssima, olhos alagados de ternura, largo tempo se reviu no seu Menino Jesus que a claridade de lunar Ia envolvendo de fios prateados.
A negra cochilava.
No mistério da divina noite só se ouviam esbatidos soluços da água da Patriarcal e o murmúrio confrangido do chafariz da Rua Formosa.
Nisto, os sinos dos Paulistas, de São Roque, dos Inglesinhos anunciaram a Natividade numa hosana de bronzes.
Bateram patadas secas de parelhas bem tratadas e, com roçar de travões, as primeiras equipagens dobraram dos Caetanos, num festivo tilintar de guizeiras de prata.
O negrinho acordou, estremunhado, a esfregar os olhitos muito redondos. A pequena beijou-o e, levantando-o nos braços, banhou-o no luar.
Alguns vultos que desciam da rampa, transidos de informes nos seus agasalhos, estacaram encantados com o imprevisto quadro que nenhum barrista concebera: a pequena com as suas fartas tranças por fora da capa, o cabelo encrespado traçando-lhe em volta da fronte um resplendor, o negrinho erguido nos braços a sorrir-lhe, um esboceto de Frei Carlos a que nem faltavam o nimbo de luar.
Uma mulher encapuchada de lã, com suma bondade e voz musical, considerou por entre o coral de bênçãos com que os bronzes cristãos continuavam a inundar os espaços:
— Logo vi que eras tu!
— Ah! a sra. Bárbara!...
— Fui ali aos Inglesinhos ouvir a missinha e ver as minhas meninas.
E a sra. Bárbara, governanta dos Viscondes de Barcelinhos, insistiu com a sua grave autoridade de quase fidalga:
— Não te tenho dito que és uma Nossa Senhora pequenina? Hoje, então, pareces mesmo a Virgem do Negrinho!
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Adaprtação ortográfica, revisão gráfica e seleção: IBA MENDES
Revista "Apectos" - Ano I - Nº 2 - 30 de Outubro de 1937. Disponível digitalmente na Biblioteca Nacional Digital

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