Joaquim Antunes Leitão nasceu na cidade do Porto, Portugal, no dia 26 de abril de 1875. Faleceu em Lisboa, em 1956.
O
depoimento, a seguir, foi escrito por Raul de Azevedo, no ano da morte do
grande escritor português, extraído da revista Illustração Brasileira, edição
de 1956.
"Morreu
em Portugal um grande escritor Joaquim Leitão. Amizade de decênios, correspondência
quase permanente, sentimos profundamente esse desaparecimento, que enluta
também o Brasil. Porque esse homem foi sempre um bom, um excelente amigo da
nossa Pátria. Interessava-se pelo nossa País, quase tanto como pela sua terra
natal. Era um amigo sincero e leal.
"É um
poderoso e fascinante historiador, escritor, jornalista. Forma apurada dentro
da ideia alta. Acadêmico, Secretário da Academia das Ciências de Lisboa, sócio
correspondente da Academia Brasileira de Letras, — era um nome das duas Pátrias
irmãs e amigas.
Era um
soberbo contista, um teatrólogo, um romancista. E um notável historiador. Foi o
autor do Dom Carlos, o Desventurado, de As alianças das Casas de Bragança e Hohenzollern, do Ataque a
Chaves.
Jornalista,
foi o correspondente em Lisboa, muitíssimos anos, do velho-moço que é o
"Jornal do Comércio" Em 1944 visitava o Brasil, homenageado pelos seus
confrades e especialmente pelos senhores acadêmicos. E então estava no leito
convalescendo da moléstia bárbara que foi a mesma que vitimou-o. Procurou-me conversamos.
Depois se foi, forte, senhor de boa saúde, para o seu Portuga bem amado.
Passam-se os
anos, e continuamos, até agora, a nos cartearmos, velhos companheiros e amigos.
Conheci-o nessa Lisboa, querida e simpática, cheia de tradições e glórias.
Acolhedora. Simples e eterna, terra de Camões e Eça de Queirós, Ramalho Ortigão,
Antero de Quental, Camilo, Fialho de Almeida, Antônio Nobre, Júlio Dantas,
Augusto de Castro, Pinheiro Chagas, Oliveira Martins, e mais uma centena de
celebridades.
Foi
político, e esteve deportado. Era um espírito ágil e equilibrado. Nascido no
mesmo ano longínquo, ele em 1921 entrava para a Academia das Ciências de
Lisboa, e morre como seu secretário. Lia muito e escrevia muito esse verdadeiramente
pranteado Joaquim Leitão, — Joaquim Antunes Leitão Junior.
Era um
infatigável. O que ele escreveu! Na parte histórica foi prodigioso. Feria de
frente os problemas máximos que interessavam o seu Portugal bem querido. E
contos, romances e novelas, a mancheias! E teatro. Diversas de suas obras
tiveram mais de uma edição. O seu último livro — e que belo! — foi uma novela,
de 1954, Nas Sete Colinas, lindamente
apresentada. Trabalhos esparsos inúmeros. Ele foi o Diretor do Museu da
Restauração. Foi Secretário da Assembleia Nacional. Condecorado... Diretor ou
colaborador de diversos jornais.
Na sua carta
de 5 de Julho último ele contava-me que há quatro meses tivera "um
percalço na minha vida, um espasmo cerebral, que há quatro meses me retém em
casa sem poder escrever"... Estivera inválido, mas melhorara muito.
Faltava fortalecer a perna direita e acabar de curar a mão direita. E acrescentava,
— "tudo isto deve estar resolvido com mais três meses, mas com muita paciência
e sacrifício". E acrescentara, — "recebi o número 68 da "Revista
das Academias" — (essa mesma Revista tão falada intramuros e tão elogiada
lá fora) — e fiquei muito contente por que V. assumiu a Direção; é realmente um
soluções e empreendimentos. Muitos parabéns ao Brasil e a V. que vai fazer
coisas empreendimento muito belo e a organização é destinada a dar ao Brasil
grandes muito belas nesse campo de ação".
E me falava que
desejava escrever na nossa "Revista". Na sua última carta, datada de
Lisboa a 8 de Agosto de 1956, dizia-me, — "Assim que tiver um momento lhe
mandarei qualquer coisa. Não se trata de trabalho remunerado, é de amigo para
amigo. Saudades. A nossa é uma velha amizade. É uma vida! Um abraço do Joaquim
Leitão."
Ia me
esquecendo. Nessa carta derradeira há um pos-escriptum,
— "Eu fiquei completamente bom; não arrasto a perna; não tenho a boca
torta; entende-se perfeitamente o que eu digo, espírito completamente lúcido, boa
memória, mas a mão direita está um bocadinho curva, o que me torna difícil
escrever". Tenho para mim que a Dona Morte violou essa carta. Sorriu
malignamente. E matou-o.
***
A virgem do negrinho
Fora
justamente nessa véspera de Natal que ela vira pela primeira vês o Presépio da
Estrela.
Deslumbrada,
a custo se arredara do camarim envidraçado onde a Basílica conserva a ingênua
herdança das freiras carmelitas.
Rodara,
tornara a rodar e por tudo dera, até pelo que o barrista apontara nos últimos
planos como a caminhada furtiva. Nossa Senhora, intencionalmente despercebida
para que toda a evidência e toda a Luz venha do berço pobrezinho.
O seu espontâneo
senso do real demorava-se no que de movimento e de verdade havia no quadro: no
acidentado anfiteatro dos serros, nas figuras humanas que surdiam dos longes
como veios d'água a engrossar cascata, e nos pormenores rústicos, animais, frutos,
ar livre, vida. Sem saber por que, naturalmente pelo lusitanismo do imaginário,
para os seus doze anos a Palestina era o Ribatejo das manhãs ardidas, das
chapadas de sol e das investidas das cheias nos dias em que o Tejo se turva de
mau senho: era o seu campo palmilhado por gentes como aquela que corria para o
estábulo onde se representava o divino natal.
Os Reis
Magos de turbante e mantos bordados, com seus elefantes exairelados ao mesmo ouro
dos turíbulos e incensórios, a opulência do cortejo não deixavam de a
maravilhar. Mas os seus olhos compreendiam melhor e compraziam-se sobretudo na
graça das figurinhas populares tão suas conhecidas, cuja indumentária dava aos
pendores um ar festivo de romagem: homens de chapeirão e cara tostada, mulheres
erremangadas, de saia de sirguilha e alvos corpetes em que batiam tranças
negras, cachopos nusinhos à guisa de Deus menino, carregos de pombos e galinhas
a espreitar do linho dos cestinhos, cordeirinhos enroscados no pescoço dos
pastores, deitados ao caminho com seus cantos e tangeres cabrinhas mansas,
adufes, o cego da sanfona, o senhor, o ruão, bufarinheiros e soldados e frades,
frisos angélicos de crianças maravilhadas, humanidade estremunhada pela graça
divinal, coro de êxtases interpretado pela fé dos mestres barristas.
Mais que
tudo e encantava o grupo central com a jumenta e a resignada vaquinha aquecendo
com seu bafo o Menino que entre Maria e o carpinteiro de Nazaré pregava nas
palhas da natividade a sua primeira parábola de humildade.
Quando
desceu a estreita escadinha da sala da tribuna e depois o escadório da
Basílica, trazia nos olhos todo o auto. A sua memória era um imaginário do
século XVIII em cujas mãos o barro se quebrasse a todo o instante e que pacientemente
uma a uma recompunha as figuras, ampliadas com inéditos pormenores de beleza.
Aquele
coraçãozinho de pequena mulher, de sangue fidalgo traçado por linfa popular, todo
o dia embalara o Menino Jesus nascido como ela numa enxerga de caridade. Manhã
e tarde aos mandados da modista, aquela linda alma dourou tristezas e canseiras
a ouvir pífaros, tambores, gaitas de foles, adufes, e os pastores a acordarem
as encostas fragosas com o coro do Bendito.
Noite de
gala para ricos, noite de redobrado trabalho para os pobres: entregue a obra à última
freguesa, palmilhada a Patriarcal, batiam na torre de São Roque as onze e três
quartos quando ela desembocava do Cunhal das Bolas.
E pesado
reposteiro da Igreja dos Inglesinhos, cada vez que alguém o torcia para
franquear caminho, deixava entrevês luzes de função.
Uma manápula
enluvada de branco atravessou-se como quem enxota pintainho que salte relvado
de parque passeado por donas e faisões reais:
— Sai daqui
pequena!
— Espreitar
não tem mal...
— É a missa.
— Então vou
ouvir.
— Mas é a
Missa do Galo. Só pra fidalgos!
A pequena ficou-se.
Atentando,
porém, naquele tipo aristocrático de princesa exilada, serenidade que não se
perturbava nem com o luxo nem com a ferocidade das ordens, e para tudo olhava
com pupilas que conheciam a Dor, — ou por simpatia do povo ou por submissão à estranha
figura, o bom do homem condescendeu:
— Vai mas
não te demores ... Vê lá como te portas!
Uma sensação
de entrar no céu aqueceu-lhe a alma. Era tão bom o calor das luzes! Os cabelos
ainda molhados dos pingos da chuva começavam a enxugar. Outro tanto não sucedia
às botas de botões, com biqueiras rotas, e às meias pretas de cordão que
continuavam a recordar-lhe a longa jornada. Indiferente ao desconforto,
abrangeu na mirada instantânea todo o ambiente: a decoração do templo, os
lustres, a concorrência. Nada a surpreendeu, nem abalou. Era a corte, a nobreza
do bairro nobre — as Alcáçovas, frágeis mármores italianos, as Barcelinhos, com
o seu fidalguíssimo ar romano, a Condessa de Avilez, pequenina, redondinha,
envolta em folhos de gaze, figurinha buliçosa foragida de um Watteau, a
Condessa de Ficalho, as Lancastres, as Atouguias, as Wanzelers, delicado grupo
de loiras, do loiro fulvo de Reynolds, as Castro e Távoras, a senhoril Condessa
de Paço d'Arcos irradiando nobreza, as Guardas, belezas morenas, do moreno
queimado por sóis de Andaluzia, as Portuguais aureoladas por séculos de nobreza,
a opulenta Condessa de Mendia, a Marquesa de Gouveia, grandes senhoras, todas
suas conhecidas, freguesas na maioria, algumas com os vestidos que lhes
entregara horas antes. Sabia como eram feitas aquelas gazes...
E presto o
comentário acudiu à sua sensibilidade: iam louvar Jesus, levar-lhe oferendas e
loas, mas o carreiro de pastorinhos de barro estava mais no seu agrado. O
próprio Jesus assim rodeado, em templo aquecido por lumes de vela, derredor de
cristais, que não pela estrela guiadora, não tinha para ela a magnificência do
Deus Menino do Presépio, adormecido nas palhinhas de Balém, sob o pálido do
olhar da Virgem, ladeado de alvoroços sinceros, de compenetrados êxtases e de
cânticos. O povo, desagasalhado, traz o coração extreme e por isso anda mais à flor
o sentimento.
Ao transpor
o pequenino pórtico com esta conclusão, uma onda de espuma saía de uma
carruagem, e uma voz parecida com a dela estranhou:
— Ainda andas
por aqui?
— Fui ver o
Menino Jesus e agora vou para casa.
— Olha, toma
as tuas broas — e abrindo a carteira de veludo branco, bordada a prata, deu-lhe
uma moeda de cinco tostões.
Desceu a
Calçada dos Caetanos, a aplicar mentalmente aquela fortuna. Vira tanta coisa
bonita nas montras... Não chegava para tudo! E o que mais apetecia era um
Menino Jesus. Mas havia de ser muito grande, em tamanho natural, para ela
embalar nos braços não como brinquedo mas como ser humano, vida a que desse
amparo. A sua melancolia, que não sabia o que era calor de beijo, ansiava por
colar à sua boca alguém que tivesse menos alegria, e mais frio do que ela.
Acabara o
seu dia quando outro dia começava. Todos tinham uma casa, luzes, calor, pais,
irmãos, um coração onde ir agasalhar-se. Ela não tinha nada, nem ninguém, não
era de ninguém, ninguém era seu. Ao menos queria o Menino Jesus que, sendo de
todos, era dela também. Nem que fosse de barro. Havia de fazer-lhe um
vestidinho, chamar-lhe-ia enfim o seu Menino Jesus.
Lentamente,
em passos de visitação ou de imagem que pisa halos de luz nas alturas, desceu a
rampa, cismando no seu sonho... Passava da meia-noite. Estava tudo fechado.
— "De
manhãzinha, quando sair..." — prometeu a si mesma. E andou para diante,
mais leve e contente.
Ao cruzar a
Rua Formosa para o Arco de Jesus, direita aos Poiais, deu com uma mulher
sentada nos degraus do Palácio de Sebastião José, curvada e imóvel. Acercou-se,
e na sua voz doce em que soavam cristais de lágrimas, chamou:
— Vo, mecê
está doente...?
A carcaça
apenas sacudiu a cabeça desinteressada daquele interesse.
Aproximou-se
mais, a exortar:
— Diga! Que
tem...?
A criatura
ergueu o busto e na sua face de negra bateu a claridade da consolação agradecida.
Mirou a pequena, encolheu os ombros, e tinha dito tudo.
— É seu
filho? — perguntou, apontando para a criança que lhe dormia encaracolada no
regaço.
— É.
— E o pai?
— O meu home?
Aleijou-se a bordo, levaram-no para o hospital... — e pela face angulosa dois
fios de luz correram para o mar das amarguras.
— Não
tilara. Olhe, venha comigo comer um caldinho ali defronte.
Os dentes da
pobre negra foram por instantes botaréu de sorriso.
E dinheiro?
— Eu tenho.
Deram-me agora cinco tostões.
— Quem? —
estranhou a outra, mal pendendo a crer em tamanha caridade.
— Ali em
cima, uma fidalga que ia a entrar para a missa dos Inglesinhos. Por sinal que é
minha irmã.
— Irmã?!
— Doutra
mãe...
— Conhece-te?
— De eu ir
levar os vestidos que manda fazer lá na loja. Mas não sabe quem eu sou. Vê-me
muitas vezes, mas nós não nos parecemos... Vamos às sopas.
E levando o
negrinho pela mão, entraram na taberna, antiga cocheira de palácio cavada na
rampa, a essa hora mal cheia de trabalhadores e boleeiros.
Ficaram os
três no mesmo banco, a um canto da casa e, enquanto a negra, faminta e
regelada, se confortava com a malga do grão, a pequena cuidava maternalmente da
criança.
Pagou com a
sua moeda de prata e, tornando a atravessar para a vereda fronteira, foi ela a
primeira a sentar-se no passeio. Deitou o negrinho no regaço e, para ter as
mãos desembaraçadas, disse para a mãe:
— A demasia
é para vo, mecê.
A negra
contava os vinténs, ela embalava o negrinho, aconchegava-lhe as pontas da capa
nesse instinto de maternal paixão que dá tudo e tudo acha pouco. Felicíssima,
olhos alagados de ternura, largo tempo se reviu no seu Menino Jesus que a
claridade de lunar Ia envolvendo de fios prateados.
A negra
cochilava.
No mistério
da divina noite só se ouviam esbatidos soluços da água da Patriarcal e o murmúrio
confrangido do chafariz da Rua Formosa.
Nisto, os
sinos dos Paulistas, de São Roque, dos Inglesinhos anunciaram a Natividade numa
hosana de bronzes.
Bateram
patadas secas de parelhas bem tratadas e, com roçar de travões, as primeiras
equipagens dobraram dos Caetanos, num festivo tilintar de guizeiras de prata.
O negrinho
acordou, estremunhado, a esfregar os olhitos muito redondos. A pequena beijou-o
e, levantando-o nos braços, banhou-o no luar.
Alguns
vultos que desciam da rampa, transidos de informes nos seus agasalhos,
estacaram encantados com o imprevisto quadro que nenhum barrista concebera: a
pequena com as suas fartas tranças por fora da capa, o cabelo encrespado
traçando-lhe em volta da fronte um resplendor, o negrinho erguido nos braços a
sorrir-lhe, um esboceto de Frei Carlos a que nem faltavam o nimbo de luar.
Uma mulher
encapuchada de lã, com suma bondade e voz musical, considerou por entre o coral
de bênçãos com que os bronzes cristãos continuavam a inundar os espaços:
— Logo vi
que eras tu!
— Ah! a sra.
Bárbara!...
— Fui ali
aos Inglesinhos ouvir a missinha e ver as minhas meninas.
E a sra. Bárbara,
governanta dos Viscondes de Barcelinhos, insistiu com a sua grave autoridade de
quase fidalga:
— Não te
tenho dito que és uma Nossa Senhora pequenina? Hoje, então, pareces mesmo a
Virgem do Negrinho!
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Adaprtação ortográfica, revisão gráfica e seleção: IBA MENDES
Revista "Apectos" - Ano I - Nº 2 - 30 de Outubro de 1937. Disponível digitalmente na Biblioteca Nacional Digital
Revista "Apectos" - Ano I - Nº 2 - 30 de Outubro de 1937. Disponível digitalmente na Biblioteca Nacional Digital
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