Alfredo de Assis Castro nasceu na cidade maranhense de Riachão, no dia 14 de janeiro de 1881. Faleceu no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1977.
Bacharel em
Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Recife, integrou a
turma que colou grau em 11 de dezembro de 1911. Alcançou grande nomeada como
profundo conhecedor da língua portuguesa e severo defensor da correção no falar
e no escrever segundo os ditames da Norma Culta. Realmente notável era sua
cultura filológica. Professor, crítico, poeta, contista e jornalista. Catedrático de Português e
Literatura da antiga Escola Normal do Maranhão. Diretor do Liceu Maranhense.
Diretor da Biblioteca Pública do Estado, no período de 10 de agosto de 1926 a
28 de fevereiro de 1930. Em sua gestão a Biblioteca retornou do pavimento
térreo do então Congresso Legislativo do Estado (na Rua do Egito) para o imóvel
da Rua da Paz (Academia Maranhense de Letras)
Susana
...Não
importa: irei, e sem que veia motivo para que depois me desvaneça de haver
praticado qualquer feito notável, assim como, por exemplo, a defesa do Guaxenduba.
Não queiras transformar argueiros em cavaleiros. Falas de modo que parece me
escreves do outro lado do Atlântico. Pois bem, admitamos que assim seja.
Pergunto agora: que era que eu não faria para vencer a distância que nos separa?
Já me disseste que eu permaneço irremediavelmente um romântico. E tu, meu amor?
Qual de nós dois está a mostrar-se mais fantasista e menos de acordo com a
realidade? É certo, em todo o caso, que eu sou, desde quando nos encontramos
pela primeira vez, a limalha de ferro atraída pelo ímã que és tu. Não posso comigo
mesmo a ponto de vencer a força inefável que me prende e dirige para onde quer
que te encontres. O lugar que se ilumina com os teus olhares e os teus sorrisos
é o único em que sinto as belezas do céu e da terra e ouço as notas da canção
da felicidade. O inverno, bem veio, é rigoroso, mas uma ou outra ventania mais
forte não merece que se lhe atribuam pavores de procela. Não ponhas em dúvida
que o Filho das Ondas, apelido que
lhe foi merecidamente consagrado, resvalará incólume até que chegue à
legendaria Tapuitapera, que agora estimo e abençoo, porque te restituiu a saúde
e te reintegrou no contentamento de viver. Sempre ouvi dizer, desde menino, que
Alcântara é triste, não passa de pobre terra em que vive principalmente a obsessiva
lembrança de grandezas para sempre desaparecidas, atestadas pelas ruínas de
ruas inteiras, onde se encontram vestígios de muitas e custosas vivendas
senhoriais. Pois eu, que ainda não a visitei, ando a imaginá-la como um verde
recanto infinitamente aprazível, onde tudo concorre para que se encha o coração
de esperança e de sonho. Agora então como deve estar encantadora, remoçada pelo
inverno em começo, o nosso inverno tão propício a tardes serenas, de profunda
suavidade, à maneira daquelas que tanta vez gozamos olhando, da casa do
Baluarte, a baía com o Bacanga à esquerda, o Anil à direita, de um lado as
terras do Bonfim e do Itaqui, do outro a ponta de São Francisco, a ponta da
Areia, de praia tão alva, o ao fundo, longe, debruando pequena porção do
continente, a faixa de terra, de arvoredo exuberante, onde se engasta essa Alcântara
que me chama, de dia e de noite, mandando-me, o que é talvez um milagre, a tua
voz e o teu perfume, nos rumores do vento e das águas quando sobre estas me debruço
dos parapeitos do cais da Sagração. Encontrava-me trasanteontem, seriam 22
horas, bem no ponto ao fundo da meia-laranja vizinha da rampa de embarque; e tinha
o olhar mergulhado nas trevas marinhas aqui e ali pontilhadas de luzes de
barcos, alguns mais ou menos próximos e outros distantes, quando se abriu um relâmpago
iluminando em cheio, ziguezagueante e incisivo, a costa alcantarense. Perguntei
a mim mesmo se não fora aquilo uma graça, desejaria dizer uma gentileza do bom
Deus, diante dos anseios do meu enamorado coração. Esse, o vaidoso pensamento
que instantâneo me avassalou e comoveu, a tanto chega o amor nos exageros do
seu egocentrismo. E a verdade é que por mais tempo ali me haveria deixado ficar
à espera de novo relâmpago, se a chuva pouco depois me não tivesse compelido a
subir apressado a ladeira que leva ao largo de Palácio. Acredito que esteias a
rir. Estimo que estejas, e foi mesmo para isso que te referi o episódio. Tenho
outras coisas para contar-te, novidades aqui da terra. Será isso até o fim da próxima
semana. Gostarás de ouvi-las.
O moço Pedro
de Sousa rematou por esse modo a longa epístola dirigida à fascinadora Susana,
joven são-luisense da rua de Santo Antônio, por quem se apaixonara desde a
noite da festa dos Remédios em que se conheceram. O largo, regurgitante,
banhado em luz profusa, semeado de barracas e quiosques a suceder-se por entre
os gramados e a elegante simplicidade das altas palmeiras evocadoras da Canção do Exílio, todo vibrante de músicas,
de pregões de vária natureza, de vozes alegres de adultos e crianças, oferecia,
no vaivém de grupos e grupos que se entrecruzavam em todas as direções, um dos
atrativos que prolongavam pela noite a dentro a demora do povo naquele formoso
logradouro onde, ao centro, se ostenta e predomina, esculturada em mármore, a
primorosa estátua do Gonçalves Dias. Deixou Pedro de Sousa a cadeira que alugara
em uma das filas fronteiras ao templo ainda inacabado e bem outro, no estilo e
nas proporções, daquele em que se fazia ouvir, enlevando o auditório, a voz de
Dona Rosa Loura, celebrada por João Lisboa, voz em tanta maneira
"melodiosa", "extensa", "flexível", "espontânea"
e "pura", que lhe deu o escritor o condão de despertar uma espécie de
saudade em quantos chegaram a ler o folhetim consagrado aos festejos da
"Milagrosa Senhora". Queimava-se um fogo de artifício perto da
amurada sobranceira ao rio. Encaminhava-se o moço para esse lado, onde se
mostrava aos olhos dos passeantes o quadro meio sonolento das águas do Anil,
crescidas, escondendo as coroas e ondulando esmaltadas pelos raios da lua em
quarto minguante. Foi quando o alcançou família conhecida, com quem estava no
momento aquela que desde então, e cada vez mais, passou a ser-lhe a doce
ventura e a dominadora dos pensamentos, a que lhe fora escolhida, segundo
entendia, pelo misterioso instinto renovador da mocidade na terra. "Susana"
— disseram-lhe, apresentando-a. Mirou-a e deslumbrou-se, com o coração batendo
descompassado. De regular estatura, franzina, muito alva, negros os cabelos,
grandes olhos vivos e também negros, boca e nariz bem conformados, toda ela
sedução e maravilha na harmonia das linhas do rosto e do corpo, levou-o a
recordar a Susana da Bíblia, aí considerada "perfeitamente bela", pulchra nimis. Era preciso crer no livro
sagrado, e portanto havia de ser o mesmo o grau de formosura de uma e outra.
Quisera poder afirmá-lo na ocasião a ela própria. Afirmou-o alguns dias depois,
no derradeiro da novena, quando no largo se dirigiam para a igreja à hora da
missa, o que fez que a moça, também conhecedora do capítulo relativo à homônima
do Livro de Daniel, sorrisse
lisonjeada e protestasse em nome do esposo da Babilônia e do espírito de
justiça do profeta que a defendera e salvara.
Essa e outras
passagens da história do seu amor rememorava Pedro de Sousa no bonde que tomara
para levar a carta ao Correio. Manhã agradável, sol esplêndido, iluminando e
jovializando as velhas ruas, onde apenas de raro em raro algum prédio se erguia
menos em desacordo com as novidades do tempo Mas, apesar disso, do avassalador anacronismo
e pobreza das construções, que suave encanto se evolava de tudo e voava sobre todas
as coisas, fino, subtil, inexplicável, beijo de brisa, perfume de rosas,
cantiga em surdina, quase inaudível, e entretanto fundamente penetrativa e
acariciadora!
Chegou a
resposta quatro dias depois. A noiva insistia no pedido de que ele evitasse o
lance da jornada como pretendia realizá-la. Rigorosamente, aliás, ora desnecessário
que a fizesse, porque o seu regresso a São Luiz estava marcado para o mês
seguinte. "Não venhas e não te preocupes. Aguarda ao menos o vapor anunciado
para o fim da próxima quinzena. E se queres distrações, aí tens o cinema, a trupe
Zorda no teatro, o convívio dos amigos, os teus livros bem-amados. Dessa maneira
o tempo ha de correr-te ligeiro o desembaraçado de apreensões. Bem conheço a
força e sinceridade dos teus sentimentos. Mostrar-te-ias porém, o maior dos
imprudentes aventurando-te em um barco à difícil travessia. Chegou-me às mãos a
tua carta, lida neste momento pela terceira vez. Confio que a presente chegue também
ao seu destino. Grande receio, no entanto, me invade, quando penso na vinda que
projetas; e pergunto a mim mesma se esse receio não será uma forma de pressentimento.
Não, não venhas. Reserva o Filho das
Ondas para o tempo das ondas mansas. Queres que te diga? Com esse nome, nem
é difícil que lhe venha o desejo de um profundo mergulho. Estás a rir-te?
Pago-te a história do relâmpago e da chuva. Mas não rias; falo sério. Corre
agora a notícia de que se ignora o que aconteceu a três pescadores que desde
ontem saíram barra a fora."
Pedro de
Sousa recebeu a carta, leu-a, releu-a, beijou-lhe a assinatura e sorriu. Iria.
Porque não havia de ir? Ela, evidentemente, exagerava, e de modo que até o deixava
admirado. O certo, em ultima analise, é que iria. Quando menos esperasse,
tê-lo-ia diante dos olhos tomados de espanto! Mostrar-lhe-ia, com o argumento
da realidade, a inexistência dos negros perigos. Mas porque se mostrava tão
excessivamente apreensiva? Seria que lhe estavam os nervos novamente
perturbados?
Seguiu na
outra semana, às primeiras horas de um dia luminoso, bem diverso dos anteriores
mais próximos. O céu era azul, o mar bonança. Estava a natureza como a ave que
saiu da lagoa e contente enxuga a plumagem aos raios de um grande sol. E Pedro
de Sousa levava o coração em plena e gloriosa aleluia, e tinha presa a vista ao
encanto dos variados panoramas, a começar pelo da cidade no seu alcantilado
assentamento e estendida em parte dos dois rios a cujo eterno abraço a
destinaram os fundadores. Essa contemplação não chegou a perturbá-la nem o
Boqueirão de fama sombria, nem a Cerca, a Correnteza Grande, as outras
corredeiras inevitáveis no trajeto. E porque os ventos sopraram favoráveis bojando
as velas, a viagem se fez depressa, de sorte que às onze horas aportaram à
praia do Jacaré. Pedro de Souza, sem mais demora, subiu com o mestre do barco a
ladeira também daquele nome em procura da casa onde a moça estava hospedada.
Era urna espaçosa morada-inteira, acentuadamente colonial, no meio do escasso
arvoredo, pouco distante da antiga igreja do Carmo. Entrevendo-a, adiantou-se
alvoroçado. Ela estava à porta da entrada conversando alegremente. O interlocutor
era um moço que ele desconhecia, e em cuja destra se prendia descansadamente a
de Susana. Sobresteve, atordoado, como se o envolvesse de improviso o
torvelinho de um vendaval. Foi nesse instante que os dois lhe deram pela
presença. Desenlaçaram-se as mãos, e ela, num ataranto:
— Então,
sempre veio?
Fitou-a,
tomado de assombro. Era mesmo a noiva quem ali estava, naquele momento? Era
mesmo Susana quem lhe falava?
Pesou um
silêncio entre os três. Respondeu, finalmente:
— É certo,
sempre vim. Ou antes, foi como se não viesse, porque não encontrei aquela a
quem procurava.
Deu de
costas, afastando-se com o companheiro. Chegados à praia, tomaram de novo o Filho das Ondas. A luz era a mesma sobre
as águas, nas dobras e extensões litorâneas, em tudo o que a vista alcançava.
Não assim na alma de Pedro de Sousa. Aí o que havia era somente a espessidão de
enorme sombra.
Tempos
depois, em passeio noturno sob as árvores da avenida Silva Maia, fez ele a um
amigo a narrativa do seu mal-aventurado amor; e rematou a confidência com esta
reflexão:
— Ensinam os
entendidos que a significação da palavra Susana é lírio na língua de origem. À Susana do Antigo Testamento, bela de
corpo e limpa de coração, correspondeu maravilhosamente o nome que lhe deram.
Da outra, infelizmente, não posso dizer o mesmo. Tem a alvura dos lírios, fisicamente
é o que vemos. O coração, entretanto...
---
Adaprtação ortográfica, revisão gráfica e seleção: IBA MENDES
Revista "Apectos" - Ano I - Nº 2 - 30 de Outubro de 1937. Disponível digitalmente na Biblioteca Nacional Digital
Revista "Apectos" - Ano I - Nº 2 - 30 de Outubro de 1937. Disponível digitalmente na Biblioteca Nacional Digital
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