9/10/2016

Análise de "O Corvo" e de suas traduções para o Português

 Pesquisa, adaptação ortográfica e produção gráfica: Iba Mendes

Por ocasião do centenário de “O Corvo”, no remoto ano de 1945, publicou-se no Brasil inúmeras análises e resenhas sobre o famoso poema do mestre Edgar Allan Poe. O que vai a seguir, foi extraído da revista “Autores e Livros”, em sua edição de 20 de junho de 1948. A autoria é de Múcio Leão. Algumas adaptações no  texto foram feitas por mim, além daquelas relacionadas à ortografia. Apreciemos, pois, o belíssimo texto...

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O "Corvo", de Edgar Allan Poe
A PRIMEIRA PUBLICAÇÃO DO POEMA
O poema foi publicado, pela primeira vez, em 29 de janeiro de 1945, no Evening Mirror de Nova Iorque, jornal de que naquela ocasião Edgard Allan Poe era um dos redatores. O poema apareceu naquele número do Evening Mirror, apresentado por algumas palavras da redação, palavras que os editores de Poe (The Cameo Edition) imaginavam ser de autoria de N.P. Willis. Nessa nota dizia-se que “O Corvo” tinha sido copiado do segundo número, então a sair, da American (Whig) Review.
Com efeito, no número de fevereiro da American Whig Review teve o poema sua segunda impressão, precedido por algumas palavras de explicação, e mesmo de louvor – palavras que os citados editores de Poe imaginam inspiradas, senão escritas, pelo próprio poeta. Ali, naquelas quarenta ou cinquenta linhas de apresentação de “O Corvo”, analisa-se o poema com tanta minúcia, dá-se tão sutil esclarecimento acerca de sua sábia e complexa arquitetura, que aquela nota já parece antecipar a Filosofia da Composição, o famoso estudo no qual Poe havia de explicar “O Corvo”, procurando dar a uma obra que lhe saíra do espírito, ditada pela força dominadora do Inconsciente, uma explicação fria, matemática, esterilmente algébrica...
“O Corvo” teve um êxito universal, e poucos poemas terão obtido, diante dos leitores de todos os países, a voga que ele alcançou. E por que? Os motivos estão implicitamente explicados naquela Filosofia da Composição, a que eu aludia há pouco. E consistem em muitas das coisas que explica Poe, e consistem, também, em muitas outras coisas que ele omitiu. Consistirão sobretudo, nessa atmosfera de imenso mistério, de que o poeta conseguiu impregnar o seu poema —, ele que, aliás, construiu toda a sua poesia dentro dessa mesma atmosfera de mistério. E consistirão naqueles elementos de beleza, e de melancolia, que Poe procurou em primeiro lugar, quando deliberou criar o seu poema: na evocado clara sempre, e sempre difusa, daquele elemento que é a coisa por excelência poética na terra — a morte de uma mulher formosa; e na imagem daquele pássaro sinistro, sinistramente vindo da noite, e transmitindo à cena em que o poeta se move toda a imensa dor da noite, que é, afinal de contas, toda a dor imensa da morte.
Não acredito, realmente, que uma obra como “O Corvo” houvesse saído, jamais, de uma região consciente, no espírito de um poeta. E quando o autor do maravilhoso poema nos afirma que tudo ali é arquitetado, é geométrico, é susceptível de fria análise, realiza mais um daqueles trabalhos de mistificação sobre os leitores, nos quais sempre se mostrou tão exímio. A verdade é que Lenora, e sua poesia imensa e melancólica, estavam, de há muito, no espírito do poeta. Seus intérpretes e seus críticos têm, decerto, procurado a gênese do poema, em obras das quais estaria Impregnado o espírito de Poe. Têm procurado encontrá-la, por exemplo, em uma balada de Bürger, chamada também Lenore, e que havia tido grande voga entre os leitores de língua inglesa. O próprio Poe, porém, já vinha de há muito impressionado com essa figura de Lenora, e a uma poesia com esse título, sob várias formas e em várias ocasiões, havia desde 1836 dado publicidade. E quem leu esta primeira celebração a Lenora sabe que aqui já encontrará — menos o pássaro da noite — toda a atmosfera dolorosa e trágica de “O Corvo”.
Acredito, de resto, que é uma tarefa estéril, esta de se procurar a filiação de “O Corvo” — de se procurar saber em que poetas foi Poe encontrar a sua Lenora, de se procurar saber onde é que ele foi descobrir o seu corvo. Há quem afirme que Poe transportou o seu pássaro de uma novela de Dickens. Há quem diga que ele o foi buscar aos versos de um seu contemporâneo, Chivers. Tocamos aqui o problema universal das impregnações literárias. E por menos favorável que queiramos ser aqueles que, como Molière apanham o seu bem onde quer que o encontrem, o que podemos dizer é que Lenore pertence unicamente a Poe, porque foi ele quem, com os elementos que teve, conseguiu criar esta coisa misteriosa e definitiva — uma obra. Os outros, aqueles que supostamente o terão inspirado não conseguiram tanto...

OS TRADUTORES BRASILEIROS DO "CORVO"
Pedindo perdão aos especialistas dos assuntos de bibliografia, tentarei fazer uma ligeira nota bibliográfica acerca dos tradutores brasileiros de "O Corvo", de Edgar Poe.
Ao que posso saber, o poema foi pela primeira vez publicado no Brasil, em tradução de nossa língua, em 1885. Era a versão de Venceslau de Queiroz, poeta paulista, autor das Rezas do Diabo. Essa versão apareceu no O Mequetrefe, número de 20 de Abril, e é em prosa.
Em 1887, fez Fontoura Xavier a sua tradução, que datou de Baltimore. É também em prosa, e foi recolhida à coletânea das Opalas. Trás dedicatória ao Conde de Afonso Celso.
A tradução de Machado de Assis apareceu na edição das Poesias Completas, em 1901. O grande escritor não se contentou, como Venceslau de Queiroz ou Fontoura Xavier, em fazer uma simples tradução em prosa. Sabendo, embora, que a tradução em verso do "Corvo" oferecia dificuldades aspérrimas a elas, se aventurou. Fez uma pequena alteração no plano poemático, pois transformou em rimas exteriores tudo o que no "Corvo" são rimas interiores. Procurou, porém, dar aos versos em português uma disposição simétrica em cada estrofe, disposição que tanto quanto possível correspondesse à sábia, misteriosa e complexíssima disposição dos versos no original.
Seguiu-se a tradução de Escragnolle Dória, a qual foi publicada em os números 8, 9, 10 de Ateneida. Essa Ateneida era uma revista que existia no ato de Janeiro, e tinha como seu diretor o jornalista Trajano Chacon, aquele que, mais tarde, na época das salvações, foi miseramente assassinado em Pernambuco, em plena rua Nova, por um bandido que lhe abriu a cano de ferro a cabeça...
Mas a Ateneida oferece uma particularidade notável: é uma revista que não trás nenhuma indicação de data! Fiquei sabendo que o exemplar em que se encontra a tradução de Escragnolle Dória deve ser de 1903, porque encontrei, em um dos trabalhos pagos que se acham inclusos naquele número — Empresa Industrial de Melhoramentos do Brasil a data de 31 de Agosto de 1903. A tradução de Escragnolle Dória é feita em décimas, sendo os versos decassílabos, menos o quinto e o décimo, que são alexandrinos.
Em 1916, publica João Kopke duas traduções de "O Corvo" na Revista do Brasil, sendo uma em prosa e a outra em verso. A tradução em verso está disposta em estrofes de quatorze versos alexandrinos cada uma, disposição esta que altera fundamentalmente a fisionomia do poema. Apaixonado de Poe e de sua estética, João Kopke publicou também, como uma espécie de apresentação de suas duas traduções, um longo estudo acerca do "Corvo", estudo em que são discutidas as teses da Filosofia da Composição, curiosíssimo ensaio, em que Poe narra como chegou a realizar o seu poema.
Em 1917, Emílio de Menezes, deu, em suas Últimas Poesias, outra tradução do "Corvo". Se João Kopke alterava a fisionomia do poema, por convertê-lo em uma série de cerradas estrofes alexandrinas, Emílio de Menezes foi mais adiante: abalançou-se a traduzir o poema em uma série de 18 sonetos também alexandrinos!
Em 1927, apareceu a tradução de Gondim da Fonseca. Procurava dar exata correspondência ao original americano, formando estrofes de cinco versos, cada um deles de dezesseis sílabas, e findando cada estrofe com um verso de dito sílabas rimando em mais, correspondente ao inglês more. Em 1931 Gondim da Fonseca tornou a publicar a sua tradução no volume Poemas da Angústia Alheia, fazendo-a acompanhar da tradução de Machado de Assis e do original de The Raven. Completavam esse livro a tradução de Confissão, de Paul Claudel, e a da Balada do Cárcere de Reading, de Oscar Wilde.
Em 1944, Milton Amado publicou nova tradução do "Corvo", procurando também respeitar a disposição das estrofes e dos versos de Poe. Fê-la em estrofes de cinco versos de dezesseis sílabas, os quais podem, como os de Gondim da Fonseca, ser distribuídos em quatro versos de quatro sílabas, findando cada estrofe com um sexto verso de oito sílabas, rimando sempre na palavra mais.

OUTROS TRADUTORES DE "O CORVO"
Reuni acima algumas notas referentes a dez versões do famoso poema, devidas a diferentes autores. Parecia-me um número bem largo. Mas, ao que parece, o amor dos brasileiros pelo "Corvo" é um capítulo importantíssimo de nossa ornitologia literária e sentimental. E tenho verificado, por informações de amigos ou mesmo de desconhecidos, que o número de tradutores brasileiros do "Corvo" deve ser bem maior do que supomos.
Trago, pois, duas novas informações acerca do assunto, e ambas referindo-se a poetas mineiros.
O primeiro deles é Honório Armond. Terá feito uma tradução do "Corvo", mas nunca tive ocasião de vê-la. Possuo desse poeta apenas um livro. — Les Voix et les Benheurs, e pouco conheço de sua vida. Sei que foi professor do Colégio Estadual de Barbacena, em Minas. E sei também que em substituição a Alphonsus de Guimarães falecido em 1921, foi eleito príncipe dos poetas mineiros.
Outro tradutor do famoso poema é Américo Lobo, poeta e político mineiro.
Américo Lobo nasceu na cidade de Campanha e era o mais velho de uma longa série de irmãos. Entre estes contava-se Fernando Lobo, figura das mais eminentes e prestigiosas na primeira fase da República.
Tendo nascido em 1841, Américo Lobo formou-se em direito pela Faculdade da São Paulo, em 1863.
Logo depois de formado foi juiz municipal de Pouso Alegre. Abandonou a magistratura pela política, e filiou-se ao partido liberal. Em 1867, na 13ª Legislatura, veio para a Câmara, pelo 1° Distrito de Minas, Em 1868, dissolvida a Câmara, abandonou o partido, passando a fazer a propaganda da República. Foi também um dos paladinos da Abolição.
Feita a mudança do regime, foi Américo Lobo, em 1890, nomeado governador do Paraná. Em 1891 veio para o Senado Federal, eleito por Minas para a Constituinte. Em 1894 foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal. Faleceu nesta cidade, em 1903.
Poeta não desprovido de mérito, era o oráculo literário de muitos amigos e admiradores. Lúcio de Mendonça, na primeira mocidade, submetia ao gosto de Américo as poesias que compunha.
Grande admirador de Longfellow, Américo Lobo publicou, em 1887, a sua coletânea — Poemas norte-americanos. Ali incluiu três dos principais poemas de Longfellow: — Poemas da Escravidão, Evangelina, O Canto de Hiawatha. O livro saiu na Imprensa Oficial.
Morrendo Américo Lobo em 1903, em 1918, seu filho, o Desembargador Américo Lobo Júnior, organizou nova coletânea dos versos paternos e publicou as Poesias.
É nessa coletânea póstuma que se encontra "O Corvo", cuja primeira publicação surgira no Jornal do Comércio desta Capital em 7 de agosto de 1892.
Tecnicamente, parece que Américo Lobo não teve nenhum propósito de encontrar uma exata adaptação para o "Corvo" em nossa língua, Adotou, para poema o verso decassílabo, dispondo cada estrofe em uma oitava portuguesa, na qual rimam independentemente, as duas quadras. Assim ficou supressa aquela rica variedade de ritmos que constitui, sem dúvida, um dos sortilégios do estranho e maravilhoso poema.
Nem sequer adotou o sistema de Machado, de Assis. O grande escritor, ao traduzir "O Corvo", não se aventurou aos ritmos de 16 sílabas — os quais aos seus olhos de bom seguidor dos preceitos poéticos do velho Castilho, haviam de aparecer como verdadeiros atentados contra a tradição de nossa poesia. Preferiu dividir cada verso em dois ou três, de dimensões menores, e obteve assim, pela variedade de ritmos, efeito semelhante ao que dá o verso largo e solene em que Poe escreveu seu poema. Américo Lobo não quis adotar semelhante partido. E ficou em verso monótono, no decassílabo de uma cadência quase uniforme. Creio que esse será o principal defeito de sua tradução.

A PALAVRA "NEPENTES"
Os tradutores do "Corvo" encontram entre as várias dificuldades que o poema apresenta, uma, que para muita gente é verdadeiramente intransponível. Está na estrofe décima quinta do poema — estrofe que, por sinal, marca o clímax do mistério do "Corvo", pois é aquela em que Poe percebe que o ar se encontra impregnado de um incenso invisível, vertido pelos anjos, agora companheiros de sua extinta Lenore...
Diz assim a estrofe:
Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censerSwung by seraphim whose footfalls tinkled on the tufted floor.Wretch, I cried, thy God hath lent thee by these angels he hath sent theeRespite-respite and nepenthe from thy memories of Lenore!Quaff, O quaff this kind nepenthe, and forget this lost Lenore!Quoth the raven, "Nevermore!"
A dificuldade da tradução dessa estrofe está principalmente na palavra nephente, que nela duas vezes ocorre.
Pareceu-me de interesse examinar, com os elementos que tenho à mão, essa palavra nepente. Verifico que nepente, é uma planta dos climas tropicais, uma dessas plantas mais hábeis do que as outras; que aprenderam o segredo precioso de devorar insetos. O prestante Jackson diz que, no Borneu, os indígenas usam o suco desse vegetal, e com ele fazem uma bebida, excelente no facilitar a digestão. — Vá como aviso aos nossos peritos droguistas.
Disse sentido primeiro, que pode ser estudado em qualquer livro de botânica, é que o nepentes passou a designar a bebida celebrada per Homero, bebida que será, portanto, o próprio suco da planta.
Nepenthe — vejo agora no Webster International Dictionary — é uma poção ou droga usada pelos antigos para dar o esquecimento das dores ou das tristezas. Alguns supõem ser o opto ou haxixe.
Na Odisseia encontramos uma referência muito expressiva a essa planta do esquecimento. A procura de informações acerca de seu pai, o jovem Telêmaco chegara à vasta e cavada Lacedemônia, terra de Menelau. E ali, recebido no palácio do rei. O filho de Ulisses teve a glória incomparável de poder ver Helena... "Helena saiu da alta câmara nupcial, perfumada, semelhante a Artemis, que usa um arco de ouro"... E Menelau e Helena põem-se, então, a lembrar a Telêmaco os dias passados, os episódios deslumbrantes da guerra de Troia, as figuras incomparáveis dos heróis mortos e as daqueles cujo destino está ignorado. E entre tantos heróis assim recordados, se encontra o divino Ulisses...
Tantas evocações trazem a todos uma saudade ardente. E todos se põem a chorar, Manelau, Helena, Telêmaco, o filho de Nestor, que também está presente... E então, para minorar a dor daquelas desconsoladas saudades, que Helena resolve colocar no vinho, que está servido nas taças, o licor do esquecimento... "E então Helena, filha de Zeus, teve outro pensamento, e, sem demora, deitou ao vinho que estavam bebendo um bálsamo, o Nepentes, que dá o esquecimento dos males..." E o poeta explica então o que é esse balsamo Nepentes: "Aquele que tiver bebido essa mistura não poderá derramar lágrimas, durante um dia inteiro, mesmo se seu pai e sua mãe morrerem, mesmo se vir matarem com e aço, diante cios seus olhos, o seu irmão ou o seu filho bem amado. A filha de Zeus possuía esse licor excelente que lhe tinha Polidama, mulher de Thó, no Egito, terra fértil que produz muitos bálsamos, uns salutíferos, outros mortais...". (Odisseia. Rap. IV).
Essa é a informação que Homero possui acerca do Nepentes. Foi esse bálsamo que os Serafins trouxeram, tantos séculos depois, para desfazer os sofrimentos e as saudades do tristíssimo amante de Lenore...
É curioso ver como os tradutores de Poe conseguem atravessar esse escolho. O maior deles, Machado de Assis, passa por cima da dificuldade, vertendo os versos em que aparece Nepentes:
"Um Deus sensívelManda repouso à dor que te devoraDestas saudades imortais.Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."
Venceslau de Queiroz (tradução em presa) também passa per cima da dificuldade, substituindo nepentes por esquecimento: "Desgraçado, bradei contra mim mesmo, o Deus de tua crença, por intermédio de seus anjos, envia-te repouso e "esquecimento" às saudades e angústias que te ralam o selo..." (O Mequetrefe, 20/04/1885).
João Kopke traduz o nepente de Poe conto olvido. (Revista do Brasil, janeiro de 1917).
Fontoura Xavier (tradução em prosa) não parece advertir-se da dificuldade: "Desgraçada!, murmurei: o teu Deus levou-te para sempre, deixando sua lembrança como tormento da tua saudade... detém-te... detém-te nessa senda e esquece, de uma vez, a tua morta Lenora (Opalas, 4ª edição).
O infidelíssimo Emílio de Menezes — tão infiel que se deu ao esporte de traduzir "O Corvo" em sonetos, e que duros, que pavorosos sonetos! — foi, nesse ponto, fiel, e eis como conseguiu vencer a dificuldade:
Infeliz! Infeliz! Um Deus piedoso e imenso,Pelos anjos te manda o repouso e a alegria!
[...]
Do nepentes é o sumo! Ei- lo, bebe- o! Ei-lo, esquece!  (Últimas Rimas)
Escragnolle Dória também adotou o nepentes:
— Miserável, disse eu, Deus bem me ouvePor seus anjos me dando a deslembrançaO repouso melhor que jamais houveBebe, oh! bebe o nepentes sem tardança (Ateneida, nºs 8,9,10)
Também Gondim da Fonseca:
"Ente infeliz" - eu exclamei. "Deus apiedou-se dos teus ais!
Calma-te! calma-te e domina essas saudades de Lenora!
Bebe o nepente benfazejo! Olvida a imagem de Lenora! 
(Poemas da angústia alheia).
Igualmente Milton Amado encontrou a solução da tradução no vocábulo nepentes:
"Sorve o nepentes. Sorve-o agora!
Esquece, olvida esta Lenora"
(Pensamentos da América, 24/12/1944),

O BÁLSAMO DE GALAAD
Outra dificuldade com que lutam os tradutores de "O Corvo" encontra-se na estrofe 15ª, no trecho em que em que o poeta alude bálsamo de Galaad:
"Prophet!" said I, "thing of evil! — prophet still, if bird or devil!Whether tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,Desolate, yet all undaunted, on this desert land enchanted—On this home by horror haunted--tell me truly, I implore:Is there — is there balm in Gilead? — tell me —tell me I implore!"
No verso quarto dessa estrofe encontra-se uma alusão a certa passagem de Jeremias — capítulo e 8 versículo 21-22. Diz assim Jeremias:
"Super contritione filiae populi mei contritus sum, et contristatus: stupor obtinuit me. Numquid resina non est in Galaad? Aut medicus non est ibi? Quare igitur non est odducax cicatrix filiae populi mei".
A esse trecho, Figueiredo deu a seguinte tradução em português:
"Quebrantado estou, e entristecido pela dor da filha do meu Povo, o espanto se apoderou de mim. Acaso não há resina Galaad ou não se acha lá Médico? Por que razão logo não tem encourado a cicatriz da filha do meu Povo?"
O tradutor inglês da Bíblia (refiro-me à chamada King James Version) verte o versículo de Jeremias em que se fala de Galaad, com estas palavras:
"Is there no baim in Gilead?"
É exatamente essa a expressão que encontramos em Poe, sendo de observar que também o poeta americano deixa em destaque o verbo, "is", que acompanha Galaad — "Gilead" em inglês.
Galaad — encontro agora em uma nota de João Kopke, escrita mesma à margem dessa passagem de Poe — é uma palavra árabe "jau ad", que significa áspero, rude. Tomou esse nome um distrito montanhoso da margem oriental do Jordão, cujos limites são incertos no Velho Testamento. Sendo embora um nome que designa aspereza e hostilidade, Galaad era uma região de belos arvoredos, opulenta, nas imediações cio regato Jaboque, em carvalhos e terebintos.
Renan diz que Galaad tem a significação de "lugar do testemunho", e acrescenta que é um lugar santo, no qual se faziam sacrifícios, libações, festins de aliança desde a mais alta antiguidade. O autor da "Histoire du peuple d'Israel" identifica esse lugar com lugares designados com outros nomes nos velhos cronistas do povo de Deus: Mispa, Mispé Galaad. Ramot Mispé, Ramot Galaad.
As tribos que habitavam a região de Galaad parece terem sido das mais fantasiosas, das mais imbuídas de poesia, entre quantas conhece o Velho Testamento. Ali nasceram diversas lendas encantadoras, e entre estas uma das mais famosas histórias que os homens ainda conheceram: a história da filha de Jefté. Sabe-se que Jefté era um chefe guerreiro que, tendo partido para um combate contra os filhos de Amon, deixou em casa uma única filha, mocinha, a quem adorava. No decorrer do combate, receando a derrota, fez uma promessa ao seu Deus: se vencesse, sacrificar-lhe-ia, ao chegar em casa, o primeiro ser vivo que atravessasse a soleira de sua casa, indo ao seu encontro. E, feita a promessa, obteve uma vitória estrondosa: destruiu vinte cidades, desde Aroer até Meninth, e nunca os filhos de Amon foram tilo humilhados pelos filhos de Israel. Assim, regressou ele como triunfador. "Mas, voltando Jefté para sua casa, em Masfa, eis que saiu a recebê-lo, dançando ao som de tambores, sua filha única: porque não tinha outros filhos".
E Jefté se viu na obrigação de sacrificar a sua própria filha! A menina, porém, pediu ao pai que lhe concedesse dois meses de vida, a fim de que ela pudesse ir para as montanhas, com as suas companheiras, chorar a sua virgindade. Jefté acedeu, e ela partiu para as montanhas. Durante dois meses ali esteve, realmente, com as amigas da mesma idade, chorando uma virgindade que ia morrer tão cedo. Ao cabo de dois meses, foi feito o sacrifício. "E daqui velo o costume de Israel, e se tem conservado o uso, de uma vez cada ano se juntarem as filhas de Israel, para chorarem a filha de Jefté de Galaad durante quatro dias..." (Juízes, XI).
Isso é o que podemos saber sobre Galaad. Agora — por que a pergunta do velho Jeremias: "não há bálsamo em Galaad?" — pergunta que é a mesma de Poe? Acaso se referirá ele a um simples fato material, a produção de resinas e mirras, que era abundante em Galaad, como o podemos ver no capítulo 37 do Gênesis, em que nos são mostrados numerosos camelos que transportavam aqueles produtos de Galaad para o Egito? Ou será uma alusão mais poética — uma alusão à dor imensa de Jefté, que não encontrava bálsamo para minorar o desespero, de sua alma, diante do fato inexorável, o de ser forçado, por uma promessa a sacrificar uma filha adorada? uma alusão, enfim à tristeza da filha do chefe guerreiro, chorando desconsoladamente nas montanhas, em companhia de suas amigas, a sua mísera virgindade que ia morrer inútil?... Creio que a expressão prende de preferência a esse último sentido, por assim dizer, moral.
Agora, podemos ir ver como venceram a dificuldade os tradutores brasileiros de Edgard Poe.
Machado de Assis, a exemplo do que já fizera com a palavra "nepentes", não se advertiu da palavra "Galaad". Eis o verso que em sua tradução corresponde àquele de Poe:
"Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo".
Venceslau de Queiroz leu Judeia onde estava Galaad: "Di-se-me, sinceramente, eu to suplico: existe, existe ainda, no mundo, algum bálsamo da Judeia para a minha dor?"
 João Kopke omitiu simplesmente a palavra "Galaad", como também omitira a palavra "nepentes".
Emílio de Menezes — contingência da rima! — também encontrou solução na palavra "Judeia":
"Existe um mendaz bálsamo da Judeia
Que da saudade a dor nos arranca da ideia?"
Fontoura Xavier não se advertiu da delicadeza do trecho, e assim o verteu: "Dize-me, eu te suplico, poderei encontrar por ventura um alívio à minha dor?"
Escragnolle Dória também não deu sentido preciso ao trecho:
"Dize: pode contar-se com o auxílio de um bálsamo na vida?"
Gondim da Fonseca encontrou uma correspondência feliz para o texto americano:
"Existe bálsamo em Galaad? Existe, fala, ó Cervo! Falai"
Milton Amado também se saiu galhardamente da dificuldade:
"Existe um bálsamo em Galaad? Imploro! Dize-me em verdade".

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Observações:
A imagem (desenho) acima de Edgar Allan Poe, é atribuída à sua própria autoria, quando tinha 25 anos de idade.
Pesquisa, adaptação ortográfica e composição gráfica: IBA MENDES (São Paulo, 2016).

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