Tradução anônima de 1929, com adaptação ortográfica de Iba Mendes
Eu estava
alquebrado pelas torturas materiais e morais suportadas durante o longuíssimo interrogatório
e o ainda mais longo processo. Por isso, quando afinal me soltaram de uma
espécie de roda de moinho a que estivera pendurado pelos polegares, deixei-me cair
sobre o banco de pedra e tive a impressão de que todos os sentidos me
abandonavam.
A
sentença, a terrível sentença de morte foi a última frase que ouvi distintamente.
Depois, o som da voz dos Inquisidores, diluiu-se para mim em um zumbido
confuso, que me produzia em meus ouvidos o efeito de uma rotação; por que a única
ideia que trazia a meu cérebro era a de estar ouvindo a roda de um moinho.
Mas isso
pouco durou por que ao fim de alguns instantes nada mais ouvi.
O último
sentido que conservei até o fim foi o da vista; mas com horrendas deformações! Via
os lábios dos frades-juízes; mas via-os brancos, mais brancos do que o papel
sobre o qual estou escrevendo. E finos... finos corno esse mesmo papel,
afinados pela expressão de dureza, de crueldade implacável e de infinito desprezo
pela dor humana. Eu via os decretos do Destino escoar em por esses lábios: via
esses lábios contorcidos pela palavra "morte", e pelas sílabas de meu
nome.
E
estremeci por que o som não acompanhava o movimento desses lábios. Vi também,
em alguns instantes de delírio, a mole e quase imperceptível ondulação das cortinas negras que revestiam as paredes da sala.
Então, como a vibração de uma
nota musical rica e sonora, insinuou-se em meu espírito a ideia do repouso delicioso,
que nos espera no túmulo Essa ideia me veio tão doce e furtivamente que precisei
de algum tempo para ter dela uma apreciação completa; mas no momento em que ela
começava a me embalar o espírito, as figuras dos juízes desvaneceram-se, as
trevas me cercaram, todas as minhas sensações desapareceram como se houvessem
mergulhado subitamente no Hades. E então, o silêncio, a calma e a escuridão
resumiram todo o universo para mim.
Eu
desmaiara, mas, nem assim, perdera completamente os sentidos. E o pouco que
conservava, em vão tentarei definir.
Em meus
esforços desesperados e teimosos para reavivar a memória, em minha ardente aplicação
para reunir as migalhas desse estado, de aniquilamento em que minha alma
naufragara, lembro-me, apenas, em sombras de recordações sem nitidez alguma,
que grandes e frios vultos me ergueram e transportaram, silenciosamente, para
baixo — para baixo, mais para baixo ainda e sempre para mais baixo, até que
horrível vertigem apagou toda luz de meu pensamento, à só ideia da perpetuidade
dessa descida. Depois... — muito mais tarde, por certo — tive uma primeira
sensação, a de bolor e umidade; além disso, tudo era demência, — a demência de
uma memória, que se debatia entre horrores.
Bruscamente,
recobrei a consciência do movimento e do ruído, o movimento tumultuoso de meu
coração e, em meus ouvidos, o ruído de suas pancadas. Depois a simples
consciência da existência — mas sem
pensamento. E esse estado durou horas. — Enfim, repentinamente, o pensamento... um terror arrepiante e uma
enérgica tentativa para compreender minha situação. Depois, um violento desejo
de recair na completa insensibilidade e um despertar impetuoso de minha
consciência. Esforço-me para me mover e consigo-o. Então, recordo-me do
processo, dos juízes, das cortinas sombrias, da sentença, do mal-estar, do
desfalecimento...
Até
então, eu não abrira os olhos. Tinha a impressão de estar deitado de costas, e
sem laços, que me prendessem. Estendi a mão e ela caiu, pesadamente, sobre
qualquer cousa úmida e dura. Deixei-a ficar assim, esforçando-me por imaginar
onde poderia estar e o que de mim fora feito.
Estava
ansioso por fazer uso de meus olhos, mas não o ousava. Temia meu primeiro olhar
sobre os objetos, que podiam estar em torno de mim: não que receasse ver cousas
terríveis, mas é que estava obcecado pela ideia de que não havia nada a ver.
Finalmente,
com o coração estrangulado por uma selvagem angústia, abri rapidamente os olhos.
Confirmava-se o que eu conjecturara de pior. As trevas da noite eterna
cercavam-me. Foi-me necessário grande esforço para respirar. Sentia a intensidade
das trevas pesarem sobre mim, sufocando-me. A atmosfera estava
insuportavelmente pesada.
Fiquei
estendido, sem ousar outro movimento e apelei para todas as forças de meu
raciocínio. Rememorei os modos de agir da Inquisição e, desse ponto de partida,
tratei de deduzir qual podia ser minha situação presente. Desde que a sentença
fora pronunciada, devia ter decorrido muito tempo, todavia não me veio ao espírito,
um só instante, que eu pudesse estar efetivamente morto. Uma tal suposição, malgrado
tudo o que pretendem as obras de imaginação, é absolutamente inconciliável com
a existência real. Mas onde estava eu e em que situação?
Sabia que
os condenados à morte pela Inquisição pereciam, habitualmente, nas fogueiras e
que uma dessas cerimônias teria lugar na própria noite de meu julgamento. Teria
eu sido, novamente, recolhido ao meu calabouço, para nele esperar o sacrifício,
que só seria celebrado ao fim de alguns meses? Compreendi imediatamente, que
isso era inverossímil. As vítimas disponíveis tinham sido requisitadas imediatamente.
Além do
mais, meu antigo calabouço, como das as calas dos condenados, em Toledo, tinham
selo de pedra e a luz não era totalmente exilada dele.
Bruscamente
um pensamento atroz atacou meu espírito, fazendo refluir o sangue, em ondas quentes,
a meu coração e por algum tempo mergulhei mais uma vez na insensibilidade.
Logo que
recuperei os sentidos, pus-me de pé num salto, enquanto um tremor convulsivo
sacudia todo o meu corpo. Estendi precipitadamente os braços acima e abaixo de
mim, em todas as direções. Nada encontrei. Entretanto, não ousei dar um passo,
temendo esbarrar nas paredes de um túmulo. O suor escorria de todos os meus poros
e juntava-se em minha fronte em enormes gotas geladas.
Mas acabei
por não mais suportar essa agonia de dúvida; dei um passo à frente, com grande
precaução, braços estendidos e olhos desmesuradamente abertos, procurando
captar o menor raio de luz. Dei vários passos, porém tudo era trevas....
Respirei mais livremente, porque me pareceu evidente que, pelo menos, a sorte
mais horrenda entre todos, não me fora reservada.
Então, enquanto continuava em minha marcha
circunspecta, vieram-me em tumulto, à memória, os mil beatos vagos que tinham
curso sobre as atrocidades da Inquisição em Toledo. A respeito de seus calabouços
circulavam estranhas narrações, — que eu sempre considerara — de fabulosas tão estranhas...
e tão horríveis que eram contadas em voz baixa. Estaria eu destinado a morrer
de fome no mundo das trevas subterrâneas? Ou qual outra sorte, talvez mais
terrível ainda, me esperava? Que o termo fosse a morte e que essa morte fosse
de uma atrocidade fora do comum, eu o imaginava, posto que tivera tempo
bastante para estudar o caráter de meus juízes. O modo e hora dessa morte eram
minha única preocupação, todo o meu tormento.
Finalmente,
minhas mãos estendidas se chocaram cem um obstáculo resistente.
Era uma
parede, que parecia feita com grandes pedras. Seguia-a de perto, com as
desconfiadas precauções, que me eram sugeridas pela recapitulação das estranhas
narrativas. Esse processo, no entanto, não me permitia de forma alguma avaliar
as dimensões de meu calabouço, porque eu podia dar uma volta completa e chegar
de novo ao ponto de partida, sem o perceber, tanta uniformidade apresentava a muralha.
Procurei
a faca, que se encontrava em meu bolso, no momento em que me introduziram na
sala dos inquisidores. Não a possuía mais: tinham substituído toda a minha
roupa por um burel de sarja grosseira. Meu primeiro pensamento fora o de enterrar
a lâmina em alguma fissura da parede para marcar meu ponto de partida. Acabei
resolvendo rasgar uma tira de meu burel e depositei-a no sentido de seu comprimento,
perpendicularmente à muralha.
Tateando
para procurar meu caminho, ao longo da muralha, eu devia, inevitavelmente, ao terminar
a volta, encontrar essa tira de fazenda. Era, pelo menos, o que eu pensava; mas
não contara com a vastidão de minha cela e com a extrema fraqueza de meu corpo.
O solo era úmido e escorregadio. Caminhei por algum tempo, titubeando, depois
tropecei e cair.
Minha
fadiga excessiva fez com que eu ficasse prostrado e não tardei a adormecer nessa
posição.
Ao
despertar, estendendo o braço, encontrei do meu lado um pão relativamente macio
e um cântaro cheio de água. Com o corpo demasiadamente dolorido para poder
refletir sobre esse fato, bebi e comi avidamente. Pouco depois recomecei a
caminhar e, não sem grande esforço, cheguei, finalmente, a tira de sarja. No
mento de minha queda eu já havia contado cinquenta e dois passos, e depois que
recomecei a marcha lenta e difícil contei ainda quarenta e oito até encontrar o
ponto de partida. Isso fazia um total de cem passos. A razão de dois passos
para um metro, conclui que o calabouço tinha uma circunferência de cinquenta
metros. No entanto, como eu encontrava muitos ângulos, não podia fazer uma
ideia exata da sua configuração.
Deixei de
me interessar por essas investigações. Mas uma curiosidade confusa incitava-me
a prossegui-las. Abandonando a muralha, resolvi fazer a travessia da superfície
circunscrita. A princípio, caminhei com prudência extrema, por que o solo,
embora parecesse feito de matéria consistente, era recoberto por um pérfido
lençol de água. Ganhei, entretanto, alguma coragem, conseguindo caminhar com
algum desembaraço, esforçando-me por avançar em linha reta. Dei, desse modo,
dez ou doze passos para a frente, quando o incômodo burel entravando meus pés,
provocou minha queda. Cair rudemente batendo com o queixo no chão.
Na
confusão, que se formou em meu espírito não notei logo um detalhe interessante;
porém alguns segundos depois, tive minha atenção voltada para ele. Foi, o
seguinte: Meu queixo repousava sobre o solo de minha prisão, porém meus lábios,
a parte superior de meu rosto, não tinham contato com coisa alguma. Ao mesmo
tempo, minha fronte parecia banhada exalações nauseabundas e um cheiro característico
de cogumelos podres quase me sufocou. Estendi os braços e estremeci ao verificar
que era sobre o rebordo de um poço circular que eu tinha caído! Naturalmente,
eu não podia, no momento, determinar as dimensões desse poço; mas, tateando
seus bordos pude destacar uma pedra de regular dimensões e deixei-a cair.
Durante
alguns segundos prestei ouvidos ao ruído de seus choques reiterados contra as paredes
do poço acabou por mergulhar na água com um ruído sinistro, seguido de ecos
ressonantes. Quase ao mesmo tempo ouvi acima de minha cabeça um ruído de porta,
que abriam rapidamente para tornarem a fechá-la no mesmo enquanto u frágil raio
de luz perfurava as trevas para morrer logo em seguida.
Compreendi,
então, qual era aquela a sorte, que me fora preparada e felicitei-me pelo
acidente, que me salvara.
Se
tivesse dado mais um passo, antes de cair, minha queda teria sido mortal. Entretanto,
a morte da qual eu me livrara apresentava esse caráter que me levara a taxar de
imaginárias as narrações que faziam da Inquisição.
Tremendo
fortemente, voltei a me encostar à parede, decidido a morrer preso e ela e não
mais afrontar o terrível poço. Em outra disposição de espírito, eu teria
acabado de uma vez com tais tormentos, atirando-me ao abismo; mas. Naquele
momento, eu era o último dos covardes. Não podia esquecer, também, o que me
fora dado ler a respeito desse poço, a saber: que a extinção repentina da vida
era uma eventualidade que os Inquisidores não podiam admitir em suas horríveis
concepções. A agitação de meu espírito manteve-me alerta por longas horas,
depois adormeci novamente; despertando encontrei junto de mim, como da primeira
vez, um pão e um novo cântaro cheio de água. Minha sede era ardente e traguei
logo toda a água. Esta devia conter narcótico violento, pois apenas a engoli
fui tomado de invencível necessidade de dormir. Um sono profundo pesou sobre
mim, semelhante ao sono da morte. Qual foi sua duração? Não posso dizer; mas,
ao despertar, verifiquei que os objetos, que me cercavam, eram agora visíveis.
Um brilho estranho, sulfuroso, cuja origem foi-me impossível determinar no
primeiro momento, permitia-me limitar a extensão e aspecto de minha prisão, Enganara-me
e muito a respeito de suas dimensões O circuito total das paredes não podia
exceder vinte e cinco jardas. Isso lançou-me em grande confusão — confusão bem
vã, porque entre as terríveis conjecturas de que me via cercado, nenhum outro
detalhe poder ter menor importância do que este. Mas meu espírito fica
profundamente impressionado por esse fato e tentei descobrir o que me levara a
erra tanto! Finalmente a verdade surgiu. Em meu primeiro esforço de exploração
do recinto, eu fizera cinquenta e dois passos, até minha primeira queda; eu
devia estar, então, a um ou dois passos da tira de sarja e, na verdade, já dera
uma volta completa ao longo da muralha. Mas foi então, que, vencido pela
fadiga, adormeci e ao despertar, voltei, sem dúvida, sobre meus passos, o que
me fez contar duplamente a extensão do circuito real. A desordem de meu cérebro
impedira-me de observar que a parede ficava à esquerda, ao iniciar a marcha e, à
direita, quando a terminei.
Errara, igualmente,
quanto à forma do recinto. Era quase quadrado e suas paredes pareciam ser de
ferro ou qualquer outro metal, em vastas placas, ostentando pinturas que representavam
símbolos medonhos, figuras demoníacas. E notei que essas monstruosidades ofereciam
contornos bastante nítidos, mas que as cores pareciam antigas e apagadas pela umidade
ou pelo tempo. No meio do solo o poço escancarava sua horrível boca! Tudo isso
eu vi de modo impreciso e não sem esforços, porque, enquanto dormira, eu fora
amarrado de costas, sobre uma estrutura de madeira, muito baixa. Braços e
pernas estavam atados por meio de uma longa correia. Esta se enrolava em torno
de meus membros e de meu busto, deixando livres apenas minha cabeça e meu braço
esquerdo. Mesmo assim eu tinha de fazer penosos esforços para alcançar os alimentos
colocados em um prato de barro, no chão, junto da estrutura de madeira. Olhei
para cima e considerei o teto de minha prisão. Ficava dez a quinze metros acima
de minha cabeça e dele pendia um pêndulo formidável, como os dos antigos relógios.
O aspecto desse instrumento oferecia, entretanto, uma particularidade, que fez
com que eu o examinasse com mais atenção. Pareceu-me estar em movimento.
Pouco
depois essa aparência se transformou em certeza. Sua oscilação era curta e
naturalmente lenta; observei-o durante alguns segundos com certa apreensão,
mas, principalmente, com surpresa.
Afinal,
cansado de seguir seu movimento monótono, observei os outros objetos da cela.
Um frágil
ruído despertou minha atenção e, olhando para baixo, vi vários e grandes ratos
correndo de um para outro lado. Enquanto eu assim os observava, eles se
aproximavam em fileiras cerradas, precipitadamente, olhinhos ávidos, atraídos
pelo cheiro de carne.
Foram-me
precisos, para afugentá-los, muitos esforços e atenta vigilância.
Havia
passado uma meia hora ou uma hora no máximo, (porque eu tinha do tempo noção
muito imperfeita) quando dirigi novamente meus olhos para o alto.
O que vi,
então, fez saltar meu coração. A oscilação do pêndulo aumentara cerca de uma
jarda. Naturalmente sua velocidade aumentara também.
Porém o
que mais me perturbou foi verificar que ele "descera sensivelmente”! Notei
então — é inútil dizer com que terror — que sua extremidade inferior era
constituída por uma espécie de meia lua de aço luzente, com cerca de trinta centímetros
de comprimento, de uma a outra ponta. Essas pontas estavam voltadas para cima e
o rebordo inferior aparecia cuidadosamente afiado como uma navalha; e, como uma
navalha, parecia maciço e pesado, engrossando acima do fio, até a parte
superior, que era larga e sólida. Estava suspenso por uma sólida corrente e
assobiava em seu rápido movimento oscilatório.
Não
duvidei por mais tempo do destino que me fora preparado pelo engenho cruel dos monges.
Os agentes da Inquisição, certamente, sabiam que eu descobrira a existência do
poço. E já que eu não me precipitara nele, tinham me preparado uma morte diferente.
De que
servirá descrever as longas, longuíssimas horas de angústia mais que mortal,
passadas com os olhos desmesuradamente abertos, contando as oscilações da lâmina
acerada? Polegada a polegada, linha a linha, sua descida só era sensível a
intervalos que a mim pareciam séculos. Mas sua aproximação era contínua. Mais baixo!
Sempre mais baixo! Horas se passaram, muitas horas talvez, antes que ele me
ameaçasse de muito perto a ponto de me secar o suor com sua ventilação.
Implorei aos céus, importunei-os com minhas preces, rogando que a lâmina
descesse mais depressa.
Depois
tive um novo período de completa insensibilidade. Foi breve, porque, ao
recuperar os sentidos, não notei progresso apreciável na descida do pêndulo.
Mas talvez tenha sido longa, porque havia, sem dúvida, algum demônio, que
espionava meus desfalecimentos e, para que eu não perdesse um só instante o espetáculo
da sinistra oscilação, esse mesmo demônio talvez tenha detido o movimento do pêndulo
durante meu desmaio. Recuperando os sentidos, minha primeira sensação foi de
fraqueza intensa, causada por uma longa inanição.
No meio daquela
agonia atual, a humana natureza reclamava alimento. Com grande trabalho, esforcei-me
por estender o braço esquerdo tão longe quanto me permitiam as voltas da
correia e apoderei-me das poucas migalhas abandonadas pelos ratos. Quando
levava um pedaço à boca, uma ideia brilhou em meu cérebro, uma ideia louca
talvez, mas alegre e cheia de esperança.
Mas era
uma ideia imperfeita.... Em vão tentei completá-la... A longa duração de meu sofrimento
quase aniquilara os recursos ordinários de minha inteligência. Eu estava como
que idiotizado.
A oscilação
do pendulo efetuava-se em um plano perpendicular ao comprimento de meu corpo.
Verifiquei que a meia lua afiada estava disposta de modo a atravessar a região
do coração. Roçaria pela sarja de meu burel, depois voltaria ao mesmo lugar e,
outra vez e outra mais...
Nos primeiros
minutos não poderia contar senão meu burel; depois.... Não ousei refletir mais....
Não quis pensar no contato da lamina atravessando minha roupa e depois...
Tive,
então, um acesso de delírio. Alternativamente ria e urrava, segundo a ideia
predominante na desordem de meu cérebro.
Mais
baixo, regularmente, inexoravelmente mais baixo! Ele oscilava agora a menos de três
polegadas de meu peito.
Mais
baixo... mais baixo ainda! Eu arquejava e me debatia a cada oscilação.
Convulsivamente, a cada passagem do pêndulo eu me encolhia todo.
E eis
que, no meio desse desespero, a ideia inteira, se me oferecia, fraca, apenas constituída,
entretanto... já completa! Sem tardar, com a nervosa energia do desespero,
comecei a tentar sua realização.
Havia já
mais de uma hora, as imediações da estrutura de madeira sobre a qual eu estava
estendido formigavam de ratos. Turbulentos, atrevidos, vorazes, fixavam sobre
mim seus olhinhos rubros, como se esperassem apelas minha imobilização para
fazer de meu corpo sua presa. A que alimento estarão habituados neste poço! —
pensei.
Malgrado todos os meus esforços para os
impedir, eles haviam devorado o contendo do prato, fora algumas migalhas. Para
mantê-los à distância, eu balançara maquinalmente minha mão, em um movimento de
vaivém, acima do prato. Mas a inconsciente uniformidade desse movimento,
acabara par torna-lo ineficaz. Com o que me restava ainda de carne gordurosa,
untei todos os laços que me prendiam, até onde minha mão pôde alcançar. Depois
ergui a mito acima do sol e fiquei quieto, contendo a respiração.
Primeiramente,
os ferazes animais ficaram assustados com a cessação do movimento... e fugiram!
Mas foi só por alguns instantes. Eu não contara em vão com sua voracidade.
Vendo que eu não me mexia mais, um ou dois entre os mais audaciosos escalaram a
estrutura de madeira e farejaram a correia. Foi como um sinal para o assalto
geral. Reforços surgiram do poço. Treparam sobre mim, às centenas...
O
movimento regular do pêndulo não os atrapalhava. Desviavam-se dele e atacavam
em massa cerrada a correia engordurada. Empurravam-se, saltavam sobre mim, em
número cada vez maior. Pisaram meu rosto, seus lábios frios procuravam os meus.
Eu estava quase esmagado sob essa multidão.
Um minuto
ainda e verifiquei que meu suplício ia terminar. Senti nitidamente o afrouxar
da correia. Sabia que em mais de dez pontos estava estraçalhada. E com firmeza
sobre-humana mantive-me imóvel.
Minhas previsões
não me haviam enganado; eu nada sofrera. Senti que estava livre. A correia caía
aa longo de meu corpo...
Mas já o pêndulo roçava por meu peito. Cotara a sarja de meu burel: atravessara
o tecido de linho, que o forrava... Duas vezes mais tornou a passar e uma
sensação atroz percorreu todos os meus nervos. Mas o momento de me libertar chegara.
A um
gesto brusco de minha mão, meus libertadores se dispersaram em tumulto. Com movimento
seguro e prudente, esgueirei-me de lado, lentamente.
Apenas eu
deixei minha horrível cama de macieira e pisei sobre as lajes, o movimento diabólico
do instrumento se deteve e eu o vi atraído por alguma força invisível, teto a
dentro.
Quase no
mesmo instante houve lá fora uma confusão de ruídos e vozes fortes de homens.
Uma porta
se abriu e um braço estendido me amparou no momento em que eu tombava desfalecido
de emoção.
Era o
braço do general Lassalle. As tropas francesas tinham entrado em Toledo. Agora
era a Inquisição que estava em poder de seus inimigos.
"Eu Sei Tudo", 6 de novembro de 1929.
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