Edgar Allan Poe: Poesia e Prosa
Por: Wilson Lousada
Ensaio crítico sobre a obra de Edgar Allan Poe, publicado na antiga revista “Cultura Política”, em sua edição de janeiro de 1945. A transcrição e atualização ortográfica é de Iba Mendes (2016).
No Brasil, a obra em prosa de Edgar Allan Poe tornou-se mais conhecida que a sua obra poética. Certamente, nem os seus contos de impressionante mistério, de terror e alucinação, tiveram entre nós edições meritórias, compatíveis com o renome do autor, nem os seus poemas foram divulgados com a amplitude que mereciam. Até mesmo "O Corvo", a mais famosa das suas peças, que tem merecido dos tradutores nacionais várias tentativas felizes e infelizes, conseguiu fixar o nome de Allan Poe entre as admirações definitivas, já não dizemos do grande público, mas ao menos dos escritores e intelectuais brasileiros. Pode dizer-se, aliás, que esse famoso poema nunca foi realmente lido e analisado pelos que mais se gabavam de conhecê-lo, tomando-se porém um autêntico cavalo de batalha em matéria de citações. Entretanto, é quase certo que o nome de Poe tornou-se familiar aos escritores brasileiros, conforme aconteceu em outros países, através da tradução de Charles Baudelaire, num volume intitulado "Histoires Extraordinaires", em que o poeta francês reuniu alguns dos contos mais famosos do poeta norte-americano: "A carta roubada", "Descida no Maelstrom", "O Escaravelho de Ouro", "Ligeia", "Os crimes da rua Morgue" e outros mais. Nesse volume, portanto, a poesia do autor de "Annabel Lee" estaria completamente ausente, muito embora o próprio tradutor francês já a ela se tivesse submetido, conforme atestam alguns dos seus numerosos críticos. Esse fato de ter sido a prosa de Edgar Allan Poe introduzida no Brasil antes que o fosse em maior escala a sua poesia concorreu para que a segunda acabasse limitada ao famoso "O Corvo". Todavia, através da poesia de Baudelaire, a que não ficaram imunes alguns poetas brasileiros, entre os quais um Augusto dos Anjos, possivelmente chegaram até nós certos reflexos do mórbido romantismo do autor norte-americano. Evidentemente, esses reflexos perderam alguma coisa da sua vitalidade original ao passarem do inglês para o francês e do francês para o português. Chegaram atenuados, portanto, mas tal fato não impedirá que uma análise em profundidade venha a descobri-los na obra do já citado Augusto dos Anjos ou na de um simbolista, por exemplo. Esse caso, porém, da possível influência da obra poética de Edgar Allan Poe sobre a literatura brasileira, demanda um estudo atento e cuidadoso, o que não é possível nos limites de um breve ensaio de divulgação.
A
oportunidade que nos oferece a Livraria do Globo, traduzindo e editando quase toda
a obra de Poe, pode levar-nos a algumas considerações em torno do valor e da
colocação dessa obra na literatura americana e na ocidental. Em primeiro lugar,
um confronto entre a poesia e a prosa de Edgar Allan Poe pode conduzir-nos a
uma angustiosa interrogação: em qual dos dois gêneros ele foi maior, mais
definitivo, mais universal?
Sem
dúvida alguma, sua obra de prosador é mais extensa e talvez mais conhecida que
a sua poesia. Mas na verdade o critério de extensão ou de quantidade não deve
prevalecer no julgamento de nenhuma obra literária, e muito menos no da obra de
um escritor e poeta inimigo positivo das peças longas demais. Realmente, numa
página intitulada "A filosofia da composição", Allan Poe assim
considera o problema: "Se alguma obra literária é longa demais para ser
lida de uma assentada, devemos resignar-nos a dispensar o efeito imensamente importante
que se deriva da unidade de impressão, pois, se se requerem duas assentadas, os
negócios do mundo interferem e tudo o que se pareça com totalidade é imediatamente
destruído." Esse princípio de estética literária, adotado ou pelo menos
defendido por Allan Poe, nem sempre aparece objetivado em sua obra, seja nos poemas
seja nos contos e nos ensaios. Ao contrário, em muitas páginas da edição
brasileira, de que nos ocupamos, são inúmeros os casos de poemas e contos em
que o sentido psicológico de unidade se anula de maneira quase absoluta, por
efeito de uma extensão exagerada. Porque o escritor, muitas vezes, parece
desconhecer os limites da atenção que um leitor pode dedicar a certos e determinados
temas, nem sempre possíveis de uma composição demasiado extensa. Como tantas vezes
acontece, o alongamento dispersivo e inútil de alguns temas já naturalmente
obscuros e pesados, traz consigo a monotonia e um consequente relaxamento de atenção.
Nesse erro incorreu Allan Poe, acumulando às vezes, em suas narrativas,
detalhes, repetições e truques literários que só o conhecimento de sua poderosa
vitalidade intelectual pode levar-nos a esquecer e a desculpar.
Evidentemente,
o autor de "Ulalume" nunca foi um estilista, um artista da palavra
escrita. Podemos e devemos considerá-lo, antes de tudo, um autêntico poeta em
prosa e em verso. Um poeta subjetivo, muito mais dominado pelas suas visões
interiores, pela sua vidência, do que mesmo dominando o seu instrumento natural
de expressão literária — a língua inglesa. Claro está que essa opinião pessoal
não pode tender a um radicalismo absoluto, pela simples razão de estarmos
julgando sua obra através de uma versão portuguesa e de uma versão francesa.
Nesse caso, as peculiaridades estéticas da língua inglesa escaparam totalmente
ao crítico, forçado a adivinhar um estilo por meio de um instrumento de expressão
singularmente oposto ao original. Contudo, pelo que se pode deduzir de uma
versão, convém insistirmos nesse ponto de vista: Edgar Allan Poe não foi um
artista da palavra escrita, apesar de todo o seu esteticismo. Embora fosse um
técnico consciente dos problemas da composição literária, principalmente em
matéria poética, como parece demonstrar em dois ensaios do primeiro volume da
edição brasileira, Edgar Poe foi um poeta muito mais solicitado por visões alucinadas,
por paixões subterrâneas e por um raciocínio extremamente frio, apesar de
intensamente romântico. Nada mais nada menos, portanto, que um escritor representativo
da sua época histórica e literária, sem esquecermos a influência que sobre ele
exerceu uma neurose bastante pronunciada, finalmente agravada pelos excessos do
alcoolismo. Realmente, podemos admitir que a morbidez que transparece em sua
literatura, seja uma consequência direta da sua morbidez pessoal. Entretanto,
não resta dúvida que a sua obra é tipicamente expressiva do seu individualismo revoltado
contra a disciplina puritana, no terreno da ética, e contra a rotina literária
dos Longfellow, por exemplo, no terreno da estética.
Nas suas
atitudes literárias, aliás, e até mesmo nas suas atitudes como homem, como
membro de um grupo social, ao lado do neurótico torna-se fácil perceber o
antipuritano, o anticonformista, o espírito inquieto e desorientado. Tem-se
mesmo a impressão, às vezes, de uma alma pouco acostumada às visões terrenas,
embora na obra de Edgar Poe nada exista de místico ou de religiosidade
profunda. Muito ao contrário, ele pode ser considerado um precursor do
satanismo baudelairiano, embora certos críticos modernos já principiem a
encarar o poeta das "Flores do Mal" sob um prisma cristão. Mas na
verdade não encontramos em Poe nada que justifique um espírito cristão. Grande
poeta, maior poeta que prosador, ou antes, poeta mesmo escrevendo em prosa,
Allan Poe foi sempre guiado por dois princípios artísticos — o culto da beleza
e a arte pela arte — conforme explica o professor William P. Trent, em sua
"Littérature Américaine," embora esse autor não seja propriamente uma
autoridade indiscutível. Por isso mesmo, guiado por semelhantes princípios de
arte, singularmente opostos à natureza geral do espírito cristão,
principalmente numa comunidade puritana e utilitarista por excelência, não é
fácil imaginar-se um Poe angustiado pela sombra do pecado. Entretanto, podemos imaginá-lo
angustiado por libertar-se do meio que o cercava, da atmosfera de preconceitos
puritanos e, talvez, da sua própria alma inquieta e alucinada. É certo que ele
não foi um revolucionário, moral ou politicamente falando. Ao contrário, o
reacionarismo é visível em numerosas páginas suas. Repugnava-lhe a populaça,
massa anônima e obscura julgando governar-se a si mesma, e o seu individualismo
burguês só enxergava o próprio eu ou um sentido diferente sob qualquer aspecto,
na psicologia dos seus personagens. Tanto assim que todos os seres das suas
histórias alucinadas sempre se destacam pela perversão, dificilmente pela
bondade. Quase todos pouco mais são que visões de um delírio permanente,
perdidos entre sensações monstruosas ou burlescas. Mesmo porque, Edgar Poe
jamais foi um analista de almas, um autêntico conhecedor do coração humano.
Seus personagens não trazem a marca da legítima criação artística, que logo
assinala a presença do novelista ou do romancista. Por isso mesmo, é justo que
se conceda primazia ao poeta sobre o prosador, apesar do número diminuto de
poemas que nos deixou. No entanto, ainda de acordo com as suas próprias teorias
poéticas, isto seria uma virtude e não um defeito. Que Edgar Poe não foi um
romancista, um novelista, muito embora tivesse escrito a "Narrativa de
Arthur Gordon Pym", longa história de estranhas aventuras, reconhecem-no
os próprios críticos americanos. Nem Carl van Doren, em "La novela
norte-americana", nem Van Wyck Brooks em "The Flowering of New
England", concendem-lhe um lugar destacado entre os grandes novelistas ao
lado de Melville, Cooper, Hawthorne, Howells, Mark Twain, Henry James, Edith
Wharton, Willa Cather e outros. Consideram-no, sem dúvida, um grande contista. Richard
Burton, por exemplo, em "Masters of the English Novel", assegura a
Poe um lugar muito importante e muito exato na ficção norte-americana. Contudo,
o mesmo autor acaba por dar uma amplitude maior ao talento de ficcionista de
Poe, ao mesmo tempo que confirma os seus princípios de estética literária,
quanto à extensão de qualquer peça de arte.
Essa aproximação
entre Poe e Hawthorne, realmente feliz sob certos aspectos, restringe-se no
entanto à história curta. E ainda Van Doren, referindo-se à ficção americana
durante a primeira metade do século XIX, escreve que “...el arte de la ficción
se estudiaba en los Estados Unidos únicamente en relación con el cuento, al que
Irving le había dotado de un encanto especial, del que Poe descubrió secretos
de composición que hasta agora no han sido estudiados, y en el que Hawthorne
iba poniendo, a medida que el siglo avanzaba, un elemento intelectual y moral
más profundo. Por mucho que las versiones históricas de Irving en obras como
"The Conquest of Granada" o "Astoria" se aproximaran al
procedimiento y al colorido del "romance" de su tiempo por extensa
que fuera la "Narrative of Arthur Gordon Pym of Nantucket" (1838) de
Poe, que pretendia ser un veraz libro de viajes, cosa que no era; ni Irving ni
Poe escribieron ninguna novela en el sentido estricto de la palabra".
Vemos,
portanto, que no terreno da ficção Edgar Poe limitou-se à história curta, ao
conto, motivo principal, em certos países, de toda a sua glória literária. Sua
única tentativa de novela, "Narrativa de Arthur Gordon Pym", não
bastou para colocá-lo no mesmo plano de um Herman Melville, por exemplo, o
grande romancista dos homens e das coisas do mar, e das extraordinárias viagens
às regiões exóticas. Faltou-lhe, para tanto, em primeiro lugar, a noção de
simpatia humana, de afinidade com os seus semelhantes e, consequentemente, com
os seus personagens. Mesmo no conto, gênero em que foi insuperável no seu tempo
e no seu país, Edgar Poe jamais soube revelar seus personagens por inteiro.
Aliás, sua própria maneira de narrar, exclusivamente apoiada na primeira
pessoa, revela-nos que ele sempre estava presente em todas as histórias, como
acentua muito bem Charles Baudelaire na introdução ao volume das "Histoires
Extraordinaires": "Quanto a seu método de narração, é simples. Abusa
do "eu" com uma cínica monotonia. Dir-se-ia que está tão certo de
interessar, que pouco se preocupa em variar seus meios. Seus contos são quase
sempre narrativas ou manuscritos do personagem principal". Linhas adiante,
Baudelaire define ainda melhor o seu pensamento: "Os personagens de Poe,
ou melhor, o personagem de Poe, o homem de faculdades superagudas, o homem de
nervos relaxados, o homem cuja vontade ardente e paciente lança um desafio às
dificuldades, aquele cujo olhar está ajustado, com a rigidez duma espada, sobre
objetos que crescem, à medida que ele os contempla, — é o próprio Poe".
Essa
análise de Baudelaire, tão justa e compreensiva quanto outras foram ingênuas e
sem fundamento, mais do que nunca justifica o poeta que existia em Poe. Só
através da poesia — encarada como "beleza Mímica" — a estranha
personalidade de Poe seria capaz de revelar-se tão exclusivamente egocêntrica,
fundindo e ao mesmo tempo libertando o criador e o seu ideal. Porque nessa
poesia a presença do autor manifesta-se depurada de toda objetividade
desnecessária, libertando assim a sua autêntica "experiência" humana
e artística, como desejaria L. Abercrombie ao definir os objetivos da
literatura. Sem dúvida, na sua obra de prosador, de contista ou de crítico
literário, Edgar Poe transmitiu-nos igualmente uma "experiência". Mas
nesse caso, provavelmente, o que Abercrombie chama de "forma" em literatura
("the aspect wich symbolizes the unity of the substance in a single act of
comprehensive attention"), não atingiu a mesma perfeição que atingira na
poesia. E a forma, em literatura, é que torna significativa toda e qualquer
experiência." Não devemos confundir, é claro, "forma" e
"estilo" ou "linguagem". A linguagem é apenas um
instrumento de comunicação, uma espécie de "médium limitado como símbolo
de possibilidades ilimitadas." Mesmo porque, a "forma" é sempre caracteristicamente
pessoal, própria, assim como o "estilo" ou "linguagem".
Isto é, existe sempre embora admita gradações imperfeita, perfeita ou
excepcional. No caso de Poe, podemos considerar a sua forma, como prosador, ainda
insuficiente, em certos casos, para transmitir-nos toda a substância da sua
literatura. Na verdade, há em toda a sua obra um grande desequilíbrio: páginas
de alta qualidade ao lado de outras realmente medíocres ou de todo nulas. Quase
todas as suas histórias burlescas, por exemplo, porque ele desconheceu o
"humour", são produtos de segunda e às vezes de terceira ordem.
Também alguns ensaios, entre os quais "Eureka", deixam no leitor um
sentimento de absoluta insatisfação. São medíocres, na verdade, como o são
algumas das suas profecias científicas. Como crítico literário, no entanto, a
posição de Poe na literatura americana foi de grande relevo. Atacando a rotina
e a falta de compreensão estética e técnica, no terreno da crítica literária,
Poe, no dizer de Van Wyck Brooks foi "the first American critics to
exercise their judgement freely." Contudo, de uma análise geral da sua
obra podemos deduzir que ela ainda é consideravelmente importante, alimentando
na sombra algumas expressões significativas da poesia moderna, e talvez do
próprio romance, descontando-se embora algo no entusiasmo exagerado de alguns
dos seus admiradores incondicionais, como o foram por exemplo Baudelaire e
Mallarmé. Por essas razões, além da natural magia que envolve o seu nome,
julgamos que a iniciativa da apresentação de "Poesia e Prosa de Edgar
Allan Poe," no Brasil, merece uma simpática acolhida. Sugerimos, aliás,
aos mais capazes dos nossos críticos e ensaístas, o estudo da influência que
essa obra possa ter exercido sobre a literatura brasileira.
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