O Demônio da perversidade, de Edgar Allan Poe
Tradução publicada em “A Noite”, do 21 de
novembro de 1950. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2016)
No exame das faculdades e das tendências dos móveis primordiais da alma humana os frenólogos esqueceram-se de mencionar uma tendência que, apesar de existir evidentemente como sentimento primitivo, radical e irredutível, foi igualmente omitida pelos moralistas que os precederam. E todos nós a omitimos; todos deixamos que a sua existência nos passasse em claro.
A ideia
dessa tendência não nos ocorreu nunca, simplesmente por não termos precisão
dela. Nunca sentimos necessidade de a verificar: nunca concebemos tal necessidade.
E dado o caso que a noção desse "rimum
mobile" se introduzisse à força em nosso espírito, não teríamos nunca
podido entender qual o papel que representa na economia das coisas humanas,
temporais ou eternas.
Não se
pode negar que a frenologia e uma boa parte das ciências metafísicas foram
feitas "a priori". O homem da metafísica, ainda mais que o homem da
inteligência e da observação, pretende adivinhar os desígnios de Deus,
conceber-lhe os planos. E depois de ter penetrado, a seu bel-prazer, as
intenções de Jeová, edifica-se segundo essas mesmas intenções os seus
inumeráveis e caprichosos sistemas.
Em
matéria de frenologia, por exemplo, estabelecemos em primeiro lugar, muito
naturalmente, aliás, que entrava nos desígnios da Divindade que o homem
comesse; determinamos-lhe logo um órgão de alimentividade (e esse órgão é o
chicote de que Deus se serve para obrigar o homem a comer, quer queira ou não).
Em
segundo lugar, tendo decidido que era a vontade de Deus que o homem propagasse
a sua espécie, descobrimos-lhes imediatamente um órgão de amatividade. E assim
os da combatividade, da idealidade, da casualidade, da construtividade; em
suma, um órgão para cada tendência, para cada sentimento moral, para cada
faculdade da pura inteligência. Nesta distribuição dos princípios da ação
humana, os Spurgheimistas, com razão ou sem ela, em parte ou na totalidade, não
fizeram mais do que seguir as pegadas dos seus predecessores, deduzindo e
estabelecendo todas as coisas, segundo o que eles imaginam ser o destino do
homem, tomando por base as intenções do Criador.
Teria
sido mais cordato e mais seguro basear a nossa classificação (uma vez que
queremos por força classificar) sobre os atos que o homem executa habitualmente
e sobre aqueles que ele executa ocasionalmente; mas ocasionalmente e não na
hipótese de que a Divindade que o obriga a executá-los.
Se não
podemos compreender Deus nas suas obras visíveis, como poderíamos compreendê-lo
nos seus pensamentos inconcebíveis?
Se não
podemos concebê-lo nas suas criaturas objetivas, como poderíamos concebê-lo nos
seus métodos incondicionais e nas suas fases de criação?
A indução
"a posteriori" teria conduzido a frenologia a admitir como princípio
primitivo e inato da ação humana, um não sei que de paradoxal, a que chamaremos
de "perversidade", à falta de termo mais característico. No sentido
que liga a esta palavra, podemos defini-la como um móvel sem motivo, um motivo
não motivado. Sob a sua influência procedemos sem fim inteligível; ou antes,
sob a sua influência procedemos de modo que não deveríamos proceder. Em teoria
não pode haver "porque" mais absurdo; mas de fato não existe outro
mais forte. Para certos espíritos, em certas condições, chega a ser
irresistível.
Quanto a
mim, não há nada mais verdadeiro do que a seguinte proposição: a certeza do
pecado ou do erro, incluída num ato qualquer, é muitas vezes a única força
invisível que nos impele a praticá-lo. E esta tendência deplorável para o mal,
pelo amor do mal, não admite análise nem resolução em elementos ulteriores. É
um movimento radial, primitivo, elementar.
Dir-me-ão
que se perseveramos em certos atos por conhecer que não devemos praticá-lo, a
nossa conduta é apenas uma modificação daquela que deriva ordinariamente da
combatividade frenológica. Mas uma simples observação bastará para demonstrar a
falsidade de semelhante ideia. A combatividade frenológica por causa da existência
tem a necessidade de defesa pessoal; é a nossa salvaguarda contra a injustiça.
O seu princípio diz respeito ao nosso bem-estar; por conseguinte, qualquer
princípio, que não fosse apenas modificação da combatividade, deveria
igualmente excitar em nós o desejo do bem-estar. Mas no caso deste "não
sei que", que eu classifiquei de perversidade, não somente o desejo do bem-estar
não é excitado, como também se manifesta um sentimento singularmente
contraditório.
Por fim,
todo o homem que sondar seu coração, achará a melhor resposta ao sofisma de que
se trata. Quem consultar conscienciosamente a própria alma e a interrogar com lealdade,
não ousará negar a radicalidade da tendência em questão. Esta tendência não é
menos caracterizada que incompreensível.
Não há
homem algum, por exemplo, que, em momento dado, não se tenha visto possuído
pelo desejo ardente de torturar o seu ouvinte com perífrases. Sabe que
desagrada; no entanto, tem a melhor intenção de agradar. Está habituado a ser
breve, conciso e claro; agita-se, debate-se-lhe no espírito uma linguagem lacônica,
luminosa, que só a custo pode reprimir. Teme e conjura e o mau humor daquele a
quem se dirige, contudo vem-lhe o pensamento de que certos incisos e parênteses
podem irritá-lo. Não é preciso mais nada. Aquele pensamento converte-se em
veleidade, a veleidade em desejo, o desejo em necessidade irresistível; e a
necessidade satisfaz-se, não obstante todas as consequências.
Temos
diante de nós um trabalho que precisamos de executar rapidamente. Sabemos que
retardá-lo é a nossa ruína. A crise mais importante de nossa vida reclama com
voz imperiosa a ação e a energia imediata. Estamos impacientes, em brasa por nos pôr à obra. O antegozo de um resultado brilhante põe-nos já em alvoroço. É
forçoso, é forçoso que este trabalho seja começado hoje mesmo; contudo, adiamo-lo
para o dia seguinte. Por quê? Não há senão uma explicação: porque sentimos que
este sentimento é perverso (servimo-nos da palavra sem compreender o princípio).
Chega o dia seguinte, e com ele uma ansiedade ainda mais impaciente de fazermos
o nosso dever.
Mas com este
aumento de ansiedade chega também um desejo ardente, anônimo, de diferir ainda;
desejo positivamente terrível, porque a sua natureza é impenetrável. E quanto
mais foge o tempo, mais força vai ganhando esse desejo. Resta-nos apenas uma hora
para a ação. Trememos pela violência do conflito que se trava em nós; é a batalha
entre o positivo e o indefinido, entre a substância e a sombra. Mas quando a
luta chega a este ponto, debatemo-nos em vão! É a sombra que vence. Finalmente,
a hora ecoa; é o sinal da nossa redenção; a sombra desaparece; voltamos à
antiga energia; trabalharemos agora. Aí é já muito tarde!
Estamos à
borda de um precipício: olhando para o abismo acometem-nos duas sensações: o
medo e a vertigem. O primeiro movimento é recuar para longe do perigo; inexplicavelmente
ficamos. Pouco a pouco o medo, a vertigem, o horror confundem-se num sentimento
nebuloso, indefinível; gradualmente, insensivelmente, essa nuvem toma forma,
como o vapor do frasco de onde erguia o espírito das "Mil e Uma
Noites". Mas da nossa nuvem, à borda do precipício, ergue-se cada vez mais
palpável uma forma mil vezes mais terrível que qualquer gênio ou demônio fabuloso.
Contudo, não é senão um pensamento; mas um pensamento medonho, um pensamento
que nos gela até à medula, penetrando-nos com a voluptuosidade feroz do seu horror.
E apenas esta ideia: que sensações produziria em nós a queda desta altura? E
essa ideia, esse aniquilamento fulminante, que envolve em si as mais horrendas
e odiosas imagens da dor que se ajam jamais apresentado à nossa imaginação,
desejamo-la ardentemente. E como o bom senso nos impede a fugir do abismo, por
isso mesmo abordamo-lo com impetuosidade.
Não há na
natureza paixão tão diabolicamente violenta como a do homem que, tremendo sobre
as arestas dum precipício, sente passar-lhe pelo espírito a ideia de se lançar
nele. Deter o pensamento nessa ideia, um instante que seja, é estar inevitavelmente
perdido; porque então o raciocínio ordena-lhe que fuja, e é exatamente por isso
que não pode deixar de ficar. Se não está ali um braço amigo para o segurar, ou
se não é capaz de um esforço repentino para se arrojar longe do abismo,
atira-se... Está perdido.
Examinando
estas e outras ações análogas, que a perpetramos simplesmente porque não as
deveríamos perpetrar, não podemos deixar de reconhecer que resultam do espírito
da "perversidade". Mais por aqui, mais por ali, todos os princípios
são ininteligíveis; e se não estivesse provado que o da perversidade também
serve muitas vezes para o cumprimento do bem, poderíamos considerá-lo como uma
instigação direta do Arquidemônio.
Se me
demorei tanto sobre esse assunto, foi para responder de algum modo à pergunta
do leitor; para explicar a razão por que estou aqui; para poder apresentar um
simulacro de causa, que motive estes ferros que arrasto e esta prisão onde estou
encerrado. Se não houvesse explicado tão claramente, ou o leitor não poderia
entender-me ou, como a maior parte da gente, julgar-me-ia louco. Assim,
compreenderá imediatamente que sou uma das inumeráveis vítimas do Demônio da
Perversidade.
Nunca houve
no mundo ação mais profundamente refletida. Meditei sobre os meios de cometer
aquele assassínio durante semanas, meses, rejeitando mil planos, porque em
todos descobria uma possibilidade de revelação. Afinal, certa vez, percorrendo
umas memórias francesas, achei a história da doença quase mortal que atacou Madame
Pilan, em consequência de uma lamparina envenenada acidentalmente. Aquela ideia
iluminou-me subitamente a imaginação. Sabia que a minha vítima costumava ler na
cama. Sabia também que ficava num quarto pequeno e mal ventilado. Não preciso
fatigar o leitor com minudências inúteis. Não contarei as manhas que empreguei,
para encaixar no castiçal do seu quarto uma vela de minha composição. Um dia
pela manhã o homem apareceu morto. O "veredictum"
do "coroner" foi: "Morto pela visitação de Deus".
Herdei-lhe
a fortuna; e durante muitos anos tudo correu no melhor possível. Nunca me
passou pelo cérebro a ideia de uma revelação. Eu mesmo havia destruído os restos
da vela fatal, sem deixar nem a sombra de um fio que pudesse vir a organizar
uma suspeita de crime. Seria impossível conceber o magnífico sentimento de
satisfação que me inundava a alma à certeza da absoluta segurança. Contraí por
assim dizer o hábito de me deleitar com aquele sentimento, o qual me dava mais
prazer real que todos os benefícios puramente materiais que me tinham resultado
do crime. Mas, finalmente, chegou uma época em que esse sentimento de prazer se
transformou, por gradações quase imperceptíveis, num pensamento tenaz e
inoportuno. Não havia meio de me livrar dele um instante. É uma coisa
perfeitamente ordinária termos os ouvidos, ou, antes, a memória dominada pelo
estribilho de uma canção vulgar, ou por alguns bocados insignificantes de
ópera, e não podermos afastá-los do espírito, por mais que queiramos. Assim foi
para mim aquele pensamento; de meditar incessantemente na minha segurança,
passei a não pensar em outra coisa, chegando até, muitas vezes, a murmurar em
voz baixa: "Estou salvo!"
Um dia surpreendi-me
a pronunciar, quase em voz alta no meio da rua, essas sílabas habituais. Num
acesso de petulância exprimia-as sob uma forma nova: "Estou salvo! estou
salvo! sim, contanto que não faça a tolice de o ir confessar".
Apenas
tinha acabado aquelas palavras percorreu-me o corpo um frio glacial. Conhecia
por experiência própria esses acessos de perversidade (cuja natureza singular
expliquei aos leitores) e sabia que não era capaz de lhe resistir. Por isso
essa sugestão fortuita, que eu podia fazer a toleima de confessar o crime,
intimidou-me e aterrou-me como a própria sombra do assassinado.
Primeiro,
fiz um esforço para sacudir da alma aquele pesadelo. Comecei a andar
apressadamente, mas depressa; por fim, deitei a correr. Senti um desejo
fortíssimo de gritar as frases fatais com toda a força dos pulmões. Cada
pensamento sucessivo me acabrunhava de novo terror, porque demasiado o sabia
eu: na minha situação pensar era perder-me.
Acelerei
a carreira quanto pude, saltando como louco através das ruas cheias de gente.
Dentro em pouco, a população alvoroçada desatou a correr atrás de mim. Senti então
a consumação do meu destino; se tivesse podido arrancar a língua naquela ocasião,
tê-lo-ia feito. De repente retumbou aos meus ouvidos uma voz rude, e mão ainda
mais rude agarrou-me pelo braço. Voltei-me e abri a boca para respirar. Durante
um momento sofri todas as agonias da sufocação; tornei-me cego, surdo, tonto. Então,
creio que houve algum demônio invisível que me bateu nas costas, porque o
segredo tanto tempo comprimido, saiu-me pela boca.
Dizem que
não me exprimi com muita clareza; mas, em compensação, falei com energia
prodigiosa e precipitação ardente, como se temesse ser interrompido antes de
acabar as frases breves, porém grandes em importância, que me entregavam ao
carrasco e ao inferno.
Depois de
ter relatado tudo quanto era preciso para a plena convicção da justiça caí
desmaiado.
Que me
resta a dizer? Hoje estou aqui carregado de ferros! Amanhã estarei livre, mas
onde?
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