O malabarista de Nossa Senhora, de Anatole France
Tradução publicada no "Diário de
Notícias", em sua edição de 28 de novembro de 1943. A pesquisa,
transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
I
No tempo do rei Luiz, havia na França um pobre malabarista, natural de Compiégne,
chamado Barnabé, que andava pelas cidades, dando mostras de sua força e de sua
agilidade.
Nos dias
de feira, estendia um tapete já gasto, na praça pública e, depois de ter
atraído as crianças e os basbaques, com atitudes grotescas e espalhafatosas,
punha um prato de estanho em equilíbrio, na ponta do nariz. A multidão
olhava-o, a princípio, com indiferença; mas quando, com as mãos no chão e a
cabeça para baixo, ele atirava ao ar e apanhava novamente com os pés, seis
bolas de cobre que brilhavam ao sol, ou quando, virando o corpo até que a nuca
encostasse nos calcanhares, tomava a forma uma de uma perfeita roda e fazia malabarismo,
nessa posição, com doze facas, um murmúrio de admiração elevava-se da assistência
e as moedas choviam sobre o tapete.
No
entanto, como a maior parte daqueles que vivem de sou talento, Barnabé lutava
muito. Ganhando o pão à custa do seu próprio suor, sofria, muitas vezes agruras
sem fim.
Não
conseguia trabalhar tanto quanto desejava. Para mostrar sua arte, tinha, como
as árvores para darem flores e frutos, necessidade do calor do sol e da luz do
dia. No inverno, não era mais que um arbusto despojado de suas folhas e quase
morto. A terra gelada era-lhe penosa. E, como a cigarra de que fala Maria de
França, sentia frio e fome naquela triste estação. Como, porém, tinha o coração
simples, padecia com paciência. Nunca pensara na origem das riquezas nem na desigualdades
das condições humanas. Acreditava firmemente que, se este mundo era mau, o
outro não poderia deixar de ser bom. Não imitava os ladrões e os infiéis, que
vendem a alma ao diabo. Jamais blasfemava em nome de Deus; vivia honestamente,
embora, sem faltar à sobriedade, gostasse de beber quando fazia calor. Era um
homem de bem, temendo a Deus e muito devoto da Santa Virgem. Não deixava,
quando entravava numa igreja, de ajoelhar-se diante da imagem da Mãe de Deus e
dirigir-lhe a seguinte súplica:
—
Senhora, tomai conta de minha vida até que Deus queira a minha morte e quando
eu estiver morto, fazei-me gozar as alegrias do paraíso.
II
Ora,
certa noite, depois de um dia de chuva, quando caminhava triste e curvado,
carregando debaixo do braço suas bolas e facas, escondidas no velho tapete, e
procurava alguma granja onde pudesse dormir sem cear, viu, na estrada, um monge
que seguia o mesmo caminho e o saudou alegremente. Como caminhassem no mesmo
passo, olharam-se e começaram a conversar.
—
Companheiro, disse o monge, de onde vem o por que veste essa roupa verde?
— Chamo-me
Barnabé, senhor, sou malabarista na minha terra; seria a mais bela vida do mundo, se se pudesse comer todos os dias.
— Amigo
Barnabé, respondeu o monge, toma nota do que te digo: não há nada melhor do que
a vida monástica. Celebram-se louvores a Deus, à Virgem e aos santos e a vida
do religioso é um perpétuo cântico ao Senhor.
Barnabé
falou:
— Meu
Pai, confesso que falei como um ignorante. A vossa vida não se compara com a
minha e, embora ou tenha mérito em dançar, equilibrando na ponta do nariz uma
bengala tendo uma moeda na extremidade, esse mérito está longe do vosso.
Desejaria, como vós, mau Pai, contar todos os dias a missa e especialmente a da
Santa Virgem, por quem tenho uma devoção particular. Renunciaria, de boa
vontade, à minha arte, na qual lá sou famoso em mais de seiscentas cidades e
aldeias, para abraçar a vida religiosa.
O monge
ficou comovido com a simplicidade do malabarista e, como não lhe faltasse discernimento,
reconheceu em Barnabé um desses homens de boa vontade, dos quais Nosso Senhor
disse: "Que a paz esteja convoco sobre a terra!" Foi por isso que lhe
respondeu:
— Amigo Barnabé,
vem comigo e farei com que entres no convento da onde sou o superior. Aquele
que guiou Maria no deserto, colocou-me em teu caminho para conduzir-te na senda
da salvação.
Foi assim
que Barnabé se tornou monge. No convento, onde foi recebido, os religiosos
celebravam, com ardor, o culto da Santa Virgem e cada um empregava, para
servi-la, toda a habilidade que lhe concedera Deus. O superior, por sua parte,
escrevia livros que tratavam, segundo as regras da escolástica, das virtudes da
Mãe do Deus...
O irmão Maurício
copiava, com mão firme, aqueles tratados em folhas do pergaminho. O irmão
Alexandre pintava delicadas miniaturas.
O irmão
Marbode talhava, sem cessar, imagens de pedra, embora já tivesse os cabelos e a
barba brancos e os olhos sempre lacrimejantes. Era, apesar disso, cheio da
força e de alegria, na sua avançada idade e, visivelmente a Rainha dos Céus
protegia velhice do seu filho.
Existiam
também no convento poetas, que compunham, em latim, orações os hinos em louvor
da bem-aventurada Virgem Maria e havia mesmo o irmão Picard, que cantava os milagres
de Nossa Senhora, em lindos versos.
III
Assistindo a um tal concurso de louvores e a uma tão bela colheita de obras,
Barnabé lamentava sua ignorância e sua simplicidade.
— Ah! —
suspirava ele, enquanto passeava sozinho no jardinzinho som sombra do convento
— sou bem desgraçado por não poder, como meus irmãos, louvar dignamente a Santa
Mãe de Deus! Ah! sou um homem rude e sem arte e não tenho para vos servir,
Santa Virgem, nem sermões edificantes, nem tratados bem escrito, nem finas
pinturas, nem estátuas magnificamente talhada, nem versos bem metrificados. Ah!
nada tenho!
Queixava-se
da sorte e entregava-se tristeza.
Uma noite,
em que os monges divertiam-se conversando, Barnabé ouviu um deles contar a história
de um religioso que não sabia rezar outra coisa a não ser a Ave Maria.
Era por
isso desprezado pelos companheiros que o achavam um ignorante. Quando morreu,
no entanto, conta a lenda, saíram de sua boca cinco rosas em honra das cinco
letras do nome do Maria e sua santidade ficou assim provada.
Ao
escutar essa narrativa, Barnabé admirou, mais uma vez, a bondade da Virgem, mas
não se consolou com o exemplo daquela morte bem-aventurada, porque seu coração
estava cheio do desejo de servir à gloria da Senhora que está nos céus.
Procurava,
para isso, um meio de conseguir achá-lo e se afligia cada dia mais, quando, uma
manhã, levantando-se muito alegre, correu à capela e lá ficou sozinho, durante
mais de meia hora.
E desde
esse dia, dirigia-se ao santuário, sempre à hora em que este estava deserto e
aí passava uma grande parte do tempo que os outros monges consagravam às artes
liberais e mecânica. Não se sentia mais triste e não se lastimava mais.
Uma conduta
tão singular despertou a curiosidade dos monges e todos perguntavam porque o
irmão Barnabé se retirava da conversa tão frequentemente.
O
superior, cujo dever é nada ignorar da vida de seus religiosos, resolveu observar
Barnabé.
Corto da,
em que ele se fechara, como de costume, na capela, o superior, acompanhado dos
dois monges mais antigos do convento, foram espiar através da fresta da porta o
que se passava no seu interior.
Viram,
então, Barnabé, que, diante do altar da Santa Virgem, a cabeça para baixo, os
pés no ar, fazia malabarismo com seis bolas de cobre e doze facas. Executava,
em honra da Virgem, os trabalhos que lhe haviam dado tanta fama outrora.
Não
compreendendo que aquele homem simples colocava, desse modo, o seu talento e o
seu saber ao serviço da Santa Virgem, os dois velhos religiosos consideraram-no
um sacrílego.
O superior
sabia que Barnabé tinha a alma inocente; mas naquela hora, acreditava-o caído em
demência.
Estavam
os três monges dispostos a expulsá-lo da capela, quando tiveram a impressão
nítida do que a Santa Virgem descia os degraus do altar para enxugar, com seu
manto azul, o suor que gotejava na fronte do seu malabarista.
Então o
prior, prosternando-se com o rosto contra os ladrilhos, disse as palavras seguintes:
— Felizes
os simples, porque verão a Deus!
— Amém! — responderam os velhos beijando o
assoalho.
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