9/26/2016

O malabarista de Nossa Senhora (Conto), de Anatole France


O malabarista de Nossa Senhora, de Anatole France
Tradução publicada no "Diário de Notícias", em sua edição de 28 de novembro de 1943. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)



I
No tempo do rei Luiz, havia na França um pobre malabarista, natural de Compiégne, chamado Barnabé, que andava pelas cidades, dando mostras de sua força e de sua agilidade.
Nos dias de feira, estendia um tapete já gasto, na praça pública e, depois de ter atraído as crianças e os basbaques, com atitudes grotescas e espalhafatosas, punha um prato de estanho em equilíbrio, na ponta do nariz. A multidão olhava-o, a princípio, com indiferença; mas quando, com as mãos no chão e a cabeça para baixo, ele atirava ao ar e apanhava novamente com os pés, seis bolas de cobre que brilhavam ao sol, ou quando, virando o corpo até que a nuca encostasse nos calcanhares, tomava a forma uma de uma perfeita roda e fazia malabarismo, nessa posição, com doze facas, um murmúrio de admiração elevava-se da assistência e as moedas choviam sobre o tapete.
No entanto, como a maior parte daqueles que vivem de sou talento, Barnabé lutava muito. Ganhando o pão à custa do seu próprio suor, sofria, muitas vezes agruras sem fim.
Não conseguia trabalhar tanto quanto desejava. Para mostrar sua arte, tinha, como as árvores para darem flores e frutos, necessidade do calor do sol e da luz do dia. No inverno, não era mais que um arbusto despojado de suas folhas e quase morto. A terra gelada era-lhe penosa. E, como a cigarra de que fala Maria de França, sentia frio e fome naquela triste estação. Como, porém, tinha o coração simples, padecia com paciência. Nunca pensara na origem das riquezas nem na desigualdades das condições humanas. Acreditava firmemente que, se este mundo era mau, o outro não poderia deixar de ser bom. Não imitava os ladrões e os infiéis, que vendem a alma ao diabo. Jamais blasfemava em nome de Deus; vivia honestamente, embora, sem faltar à sobriedade, gostasse de beber quando fazia calor. Era um homem de bem, temendo a Deus e muito devoto da Santa Virgem. Não deixava, quando entravava numa igreja, de ajoelhar-se diante da imagem da Mãe de Deus e dirigir-lhe a seguinte súplica:
— Senhora, tomai conta de minha vida até que Deus queira a minha morte e quando eu estiver morto, fazei-me gozar as alegrias do paraíso.
II
Ora, certa noite, depois de um dia de chuva, quando caminhava triste e curvado, carregando debaixo do braço suas bolas e facas, escondidas no velho tapete, e procurava alguma granja onde pudesse dormir sem cear, viu, na estrada, um monge que seguia o mesmo caminho e o saudou alegremente. Como caminhassem no mesmo passo, olharam-se e começaram a conversar.
— Companheiro, disse o monge, de onde vem o por que veste essa roupa verde?
— Chamo-me Barnabé, senhor, sou malabarista na minha terra; seria a mais bela vida do mundo, se se pudesse comer todos os dias.
— Amigo Barnabé, respondeu o monge, toma nota do que te digo: não há nada melhor do que a vida monástica. Celebram-se louvores a Deus, à Virgem e aos santos e a vida do religioso é um perpétuo cântico ao Senhor.
Barnabé falou:
— Meu Pai, confesso que falei como um ignorante. A vossa vida não se compara com a minha e, embora ou tenha mérito em dançar, equilibrando na ponta do nariz uma bengala tendo uma moeda na extremidade, esse mérito está longe do vosso. Desejaria, como vós, mau Pai, contar todos os dias a missa e especialmente a da Santa Virgem, por quem tenho uma devoção particular. Renunciaria, de boa vontade, à minha arte, na qual lá sou famoso em mais de seiscentas cidades e aldeias, para abraçar a vida religiosa. 
O monge ficou comovido com a simplicidade do malabarista e, como não lhe faltasse discernimento, reconheceu em Barnabé um desses homens de boa vontade, dos quais Nosso Senhor disse: "Que a paz esteja convoco sobre a terra!" Foi por isso que lhe respondeu:
— Amigo Barnabé, vem comigo e farei com que entres no convento da onde sou o superior. Aquele que guiou Maria no deserto, colocou-me em teu caminho para conduzir-te na senda da salvação.
Foi assim que Barnabé se tornou monge. No convento, onde foi recebido, os religiosos celebravam, com ardor, o culto da Santa Virgem e cada um empregava, para servi-la, toda a habilidade que lhe concedera Deus. O superior, por sua parte, escrevia livros que tratavam, segundo as regras da escolástica, das virtudes da Mãe do Deus...
O irmão Maurício copiava, com mão firme, aqueles tratados em folhas do pergaminho. O irmão Alexandre pintava delicadas miniaturas.
O irmão Marbode talhava, sem cessar, imagens de pedra, embora já tivesse os cabelos e a barba brancos e os olhos sempre lacrimejantes. Era, apesar disso, cheio da força e de alegria, na sua avançada idade e, visivelmente a Rainha dos Céus protegia velhice do seu filho.
Existiam também no convento poetas, que compunham, em latim, orações os hinos em louvor da bem-aventurada Virgem Maria e havia mesmo o irmão Picard, que cantava os milagres de Nossa Senhora, em lindos versos.

III
Assistindo a um tal concurso de louvores e a uma tão bela colheita de obras, Barnabé lamentava sua ignorância e sua simplicidade.
— Ah! — suspirava ele, enquanto passeava sozinho no jardinzinho som sombra do convento — sou bem desgraçado por não poder, como meus irmãos, louvar dignamente a Santa Mãe de Deus! Ah! sou um homem rude e sem arte e não tenho para vos servir, Santa Virgem, nem sermões edificantes, nem tratados bem escrito, nem finas pinturas, nem estátuas magnificamente talhada, nem versos bem metrificados. Ah! nada tenho!
Queixava-se da sorte e entregava-se tristeza.
Uma noite, em que os monges divertiam-se conversando, Barnabé ouviu um deles contar a história de um religioso que não sabia rezar outra coisa a não ser a Ave Maria.
Era por isso desprezado pelos companheiros que o achavam um ignorante. Quando morreu, no entanto, conta a lenda, saíram de sua boca cinco rosas em honra das cinco letras do nome do Maria e sua santidade ficou assim provada.
Ao escutar essa narrativa, Barnabé admirou, mais uma vez, a bondade da Virgem, mas não se consolou com o exemplo daquela morte bem-aventurada, porque seu coração estava cheio do desejo de servir à gloria da Senhora que está nos céus.
Procurava, para isso, um meio de conseguir achá-lo e se afligia cada dia mais, quando, uma manhã, levantando-se muito alegre, correu à capela e lá ficou sozinho, durante mais de meia hora. 
E desde esse dia, dirigia-se ao santuário, sempre à hora em que este estava deserto e aí passava uma grande parte do tempo que os outros monges consagravam às artes liberais e mecânica. Não se sentia mais triste e não se lastimava mais.
Uma conduta tão singular despertou a curiosidade dos monges e todos perguntavam porque o irmão Barnabé se retirava da conversa tão frequentemente.
O superior, cujo dever é nada ignorar da vida de seus religiosos, resolveu observar Barnabé.
Corto da, em que ele se fechara, como de costume, na capela, o superior, acompanhado dos dois monges mais antigos do convento, foram espiar através da fresta da porta o que se passava no seu interior.
Viram, então, Barnabé, que, diante do altar da Santa Virgem, a cabeça para baixo, os pés no ar, fazia malabarismo com seis bolas de cobre e doze facas. Executava, em honra da Virgem, os trabalhos que lhe haviam dado tanta fama outrora.
Não compreendendo que aquele homem simples colocava, desse modo, o seu talento e o seu saber ao serviço da Santa Virgem, os dois velhos religiosos consideraram-no um sacrílego.
O superior sabia que Barnabé tinha a alma inocente; mas naquela hora, acreditava-o caído em demência.
Estavam os três monges dispostos a expulsá-lo da capela, quando tiveram a impressão nítida do que a Santa Virgem descia os degraus do altar para enxugar, com seu manto azul, o suor que gotejava na fronte do seu malabarista.
Então o prior, prosternando-se com o rosto contra os ladrilhos, disse as palavras seguintes:
— Felizes os simples, porque verão a Deus!
 — Amém! — responderam os velhos beijando o assoalho.

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