9/27/2016

Mademoiselle Roxane (Conto), de Anatole France


Mademoiselle Roxane, de Anatole France
Tradução publicada originalmente no "Jornal das Moças", em sua edição de 29 de janeiro de 1925. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)


Meu bom mestre, o abade Jerônimo Coignard, levou-me para cear em casa de um dos seus antigos condiscípulos, que residia em um celeiro da rua Git-le-Coeur.
Nosso hóspede, reputado com grande competência e bom teólogo, indispusera-se com o pregador do seu convento por ter feito um livrinho a propósito das desgraças da senhorita Fauchon; depois disso tornou-se dono de um Café em Haia. Regressando à França, ele vivia assoberbado de dificuldades com os sermões que compunha com muita doutrina e eloquência.
Depois da ceia, ele nos leu as desgraças da senhorita Fauchon, origem também das suas, a leitura durara muito tempo; e eu achei-me na rua com o meu bom mestre, em uma noite de verão, maravilhosamente doce, que me fez conceber imediatamente a verdade das fábulas antigas que se relacionam com as freguesas de Diana e sentir que é natural empregar no amor as horas argentinas e caladas. Fiz essa observação ao senhor abade Coignard, que me objetou que o amor causa grandes males.
– Tournebreche, meu filho, não acabaste de ouvir da boca daquele homem que, por ter amado um sargento recrutador, um caixeiro do sr. Ganlot, comerciante em Truilquifile, e o senhor filho mais moço do tenente criminalista Leblanc, a senhorita Fauchon foi levada para o hospital? Queres ser esse sargento, esse caixeiro ou esse filho mais moço?
Respondi que queria. Meu bom mestre exprobou esse desejo e recitou-me alguns versos de Lucrécio para persuadir-me de que o amor é contrário à tranquilidade de uma alma verdadeiramente filosófica.
Desse modo conversando, chegamos ao centro da Pont-Neuf.
Debruçados sobre o parapeito, olhamos a enorme torre do Chatelet, negro sob a lua.
– Haveria muita coisa a dizer a propósito dessa justiça das nações cultas, cujas vinganças são mais cruéis que o próprio crime. Não creio que essas torturas e essas penas, que homens infligem a homens, sejam necessárias para a conservação dos Estados, pois que, de tempo em tempo, suprimem-se algumas dessas crueldades legais sem prejuízo para a república. E presumo que as severidades que se mantém não são mais úteis do que as que foram abandonadas. Mas os homens são cruéis. Vem, Tournebroche, meu amigo, para mim é penoso imaginar que desgraçados velam sob esses muros, na angústia e no desespero.
A ideia das suas faltas não me impede de lamentá-los. Qual de nós é justo?
Prosseguimos nosso caminho.
A ponte estava deserta, nesse ínterim, um mendigo e uma mendiga encontraram-se.
Eles se comprimiram em uma meia lua, no seio de uma arcada. Pareciam bastante contentes de confundir suas misérias e, quando passamos perto deles, poderiam pensar em tudo, menos em implorar a nossa caridade.
Entretanto, o meu bom mestre, que era o mais piedoso dos homens, atirou-lhes uma moeda, a única que restava no bolso de sua calça.
Recolherão o nosso óbolo quando tiverem recuperado o sentimento da sua miséria. Oxalá eles não disputem essa moeda com muita violência.
Fomos além, sem outro encontro, quando chegamos ao cais dos Oiseleurs, percebemos uma senhorita que andava com uma decisão singular. Tendo aumentado o passo para observá-la de mais perto, vimos que tinha um talhe delgado e cabelos loiros, nos quais brincavam os clarões da lua. Trajava como uma burguesa da cidade.
– Eis uma liada rapariga, disse o abade, de onde virá ela para encontrar-se só na rua, a esta hora?
– Efetivamente, retruquei, não é isso o que se nos depara frequentemente nas pontes a estas horas.
Nossa surpresa transformou-se em viva inquietude quando a vimos descer para a muralha por uma escadinha frequentada por marinheiros. Corremos para ela. Pareceu, porém, que ela não nos ouvia. Parou à beira das águas que estavam muito altas, cujo rumor surdo se percebia a alguma distância. Conservou-se um momento imóvel, a cabeça reta e os braços pensos, em atitude de desespero. Depois, inclinando o seu dorso gracioso, levou as mãos às faces que, durante uns poucos de segundos, ela manteve ocultas pelos seus dedos. Logo após, precipitadamente, segurou a saia e a puxou para a frente, com o gesto peculiar às mulheres que se vão jogar. Meu bom mestre e eu seguramo-la no momento em que ela tomava esse impulso funesto, puxando-a fortemente rara trás. Ela se debateu em nossos braços. Como a muralha estivesse muito gordurosa e escorregadia em virtude do limo depositado pelas águas (porque o Sena começava a esvaziar) faltou pouco para que o sr. abade Coignard fosse arrastado pelo rio.
Até eu escorreguei ali. Mas a felicidade quis que os meus pés encontrassem uma raiz que lhes servisse de apoio, enquanto eu mantinha abraçados o melhor dos mestres e aquela jovem desesperada.
Dentro em pouco, a poder de força e coragem, ela se deixai ir recostada ao peito do sr. abade Corgnard e podemos, então, tornar a subir a muralha.
 Ele a sustinha delicadamente com aquela graça ingênita que não o abandonava nunca. E ele conduziu-a até uma árvore, junto à qual havia um banco de madeira, onde a assentou.
Também ele assentou.
—Senhorita, disse lhe ele, não tema nada. Não diga nada por enquanto, mas saiba que tem um amigo ao seu lado.
Depois, virando-se para mim, o meu mestre disse-me:
—Tournebroche, meu filho, devemos alegrar-nos por ter feito terminar bem essa curiosa aventura. Mas deixei lá em baixo o meu chapéu que, apesar de desprovido de quase todos os seus galões o um tanto estragado por longo uso, não deixa de resguardar do sol e da chuva a minha cabeça tantas vezes posta à prova pela idade e pelos trabalhos. Vá ver, meu filho, se ele se encontra ainda no lugar em que caiu. Se o descobrires, traga-me, peço-te, assim como uma fivela dos meus sapatos, que verifiquei ter perdido. Quanto a mim, ficarei perto desta moça e vigiarei o seu repouso.
Corri ao lugar de onde viéramos e fui suficientemente feliz para encontrar lá o chapéu do meu bom mestre. Quanto à fivela, não a pude descobrir. É verdade que não tive grande preocupação de procurá-la, não tendo visto, em toda minha vida, o meu bom mestre senão com uma fivela de sapato. Quando regressei, encontrei a moça tal qual como a deixara, assentada, imóvel, a cabeça apoiada na árvore. Vi que era extraordinariamente bela. Trazia uma manta de seda guarnecida de renda e limpíssima, calçava sapatinhos cujas fivelas refletiam os raios da lua.
Não cessei de contemplá-la.
De súbito, dia reanimou os seus olhos amortecidos e, lançado ao sr. Coignard e a mim um olhar ainda velado, disse com voz lacrimosa, mas que me assemelhou a de uma pessoa de educação.
 — Admiro, senhores, o que fizeram por mim, com um sentimento de humanidade, mas não lhes posso exprimir o meu contentamento porque a vida a que novamente me entregaram, é um mal odioso e um suplício cruel.
Ouvindo essas palavras, o meu bom mestre, cuja fisionomia exteriorizava compaixão, sorriu docemente, porque ele não acreditava que a vida pudesse ser sempre odiosa para uma pessoa tão jovem e bela.
— Minha menina, disse-lhe ele, as coisas não nos fazem a mesma impressão, estando elas próximas ou distantes.
Ainda não é chegado o momento de entristecer-se. Faça como em que, no estado a que me reduziu o tempo injurioso, suporto a vida em que tenho por prazeres, traduzir grego e jantar algumas vezes com muitas pessoas honestas.
Olhe-me e diga-me se concordaria em viver nas mesmas condições do que eu?
Ela olhou-o, seus olhos quase se perderam, e sacudiu a cabeça. Depois, retomando a sua tristeza e a sua desolação, exclamou:
— Não há no mundo uma criatura tão desgraçada quanto eu.
— Senhorita, replicou o meu bom mestre, sou discreto por condição e temperamento, em absoluto não procurarei arrancar o seu segredo, mas vê-se logo pelo seu aspecto que a senhora sofre terrível mal amoroso. E mal é esse de que se não escapa, até eu já fui atacado por ele. Há quanto tempo já lá isso vai...
Ele tomou-lhe a mão, deu-lhe mil provas de simpatia e prosseguiu com esses termos:
—Presentemente não deploro senão uma coisa — é não ter um lugar em que a senhora possa passar o resto da noite. Meu abrigo é um velho castelo que fica bem longe, onde traduzo um livro grego juntamente com esse jovem Tournebroche, que vê aqui.
Efetivamente, habitávamos então em casa do sr. Assarac, no Castelo de Sablous, na vila de Neuilly e estávamos por conta de um grande negociante que morreu, depois, de um modo trágico.
— Se, todavia, senhorita, acrescentou o meu bom mestre, souber algum lugar para onde possa ir, sentir-me-ei feliz em poder acompanhá-la.
Ao que a senhorita respondeu que era sensível a tanta bondade, que ela se alojaria em casa de um parente, onde estava certa de entrar a qualquer hora, mas não queria regressar ali antes do dia, não só porque não queria perturbar o sono das pessoas, como pelo temor de ser comovida pela dor à vista dos objetos que lhe eram familiares.
Proferindo essas palavras, ela derramou abundantes lágrimas.
Meu bom mestre disse-lhe:
Que dirá minha tia? E que lhe direi eu? murmurou ela.
Esta tia residia em frente a S. Eustáquio, a menos de cem passos da pilastra Mathurin. Para lá conduzimos a sobrinha. E o abade de Coignard, que tinha o ar bastante venerável, a despeito do seu sapato sem fivela, acompanhou a bela Sofia aos aposentos da sra. sua tia, a quem fez sua narrativa:
— Tive a felicidade, disse-lhe ele, de encontrar a senhorita sua sobrinha no momento justamente em que ela era atacada por quatro ladrões armados de revólveres e eu chamei a polícia com uma voz tão forte que os bandidos aterrorizados escapuliram, mas não tão rapidamente que se pudessem livrar da polícia que, por grande sorte, acorreu ao meu apelo. Os policiais se apoderaram dos agressores depois uma luta furiosa.
Participei dela, minha senhora, e pensei perder o meu chapéu. Depois disso, fomos conduzidos, a senhorita sua sobrinha, os quatro ladrões e eu, diante do “tenente criminalista”, que nos tratou asperamente e deteve-nos em seu gabinete até pela manhã, para ouvir o nosso depoimento.
A tia respondeu secamente:
— Eu lhe agradeço, senhor, ter tirado a minha sobrinha de um perigo que, realmente, é dos que uma senhorita de sua idade mais deve temer, quando se encontra só a noite, em uma das ruas de Paris.
Meu bom mestre nada respondeu, mas a senhorita Sofia disse com bastante sentimento:
— Minha tia, posso garantir-lhe que o senhor abade me salvou a vida.
Alguns meses mais tarde, o meu bom mestre fez a fatal viagem de Lion, a qual não concluiu. Foi indignamente assassinado e eu sofria a inconcebível dor de vê-lo expirar nos meus braços. As circunstâncias dessa morte não têm relação com o assunto de que faço menção aqui. Eu tomei a precaução de marrá-las em outro lugar, são memoráveis e não creio que possam ser esquecidas nunca.
Posso dizer que essa viagem foi, sob todos os aspectos, infortunada, porque depois de nela ter perdido o melhor dos mestres, fui desprezado por uma mulher que me amava, que me amava mais do que eu, cuja perda me foi muito sensível depois da do meu mestre.
É um erro julgar que um coração torturado por um mal cruel torna-se insensível aos novos golpes da sorte. Assim, eu vim a Paris num estado tal de abatimento que apenas é possível imaginar-se.
Ora, uma tarde em que para divertir-me fui à “Comedie”, onde se representava “Bajazet”, que é um belo trabalho de Racine, aprecei particularmente a beleza encantadora e o talento original da comediante que desempenhava o papel de Roxane. Ela exprimia com admirável naturalidade a paixão de que esta personagem é animada e eu agitei-me quando ouvi que ela dizia com um tom unido e terrível:
“Escutai, Bajazet, sinto que vos amo”.
Eu não deixei de a contemplar durante todo o tempo em que ela esteve em cena e de admirar a beleza de seus olhos sob uma fronte pura como o mármore, coroada por uma cabeleira empoada, completamente semeada de pérolas. Seu telhe fino não fazia menor impressão no meu coração. Maior ainda foi o meu prazer de examinar tão adorável pessoa porque ela se voltou para mim a fim de recitar vários trechos importantes do seu papel. Quanto mais eu a via, mais me persuadia de já a ter visto, sem que me fosse dado lembrar qualquer circunstância deste primeiro encontro. Meu vizinho, que frequentava assiduamente a “Comédia”, disse-me que aquela atriz era a senhorita B., o ídolo da plateia. Acrescentou que ela empolgava tanto na rua como no palco, que o duque de La... a pusera na moda e que dentro em breve ela eclipsaria a senhorita Lecouvreur.
Ia deixar o meu lagar depois do espetáculo, quando uma criada me trouxa um bilhete, onde eu li essas palavras:
“A senhorita Roxane vos espera em seu
carro, na porta da Comédia”.
Não pude crer que aquele bilhete me fosse destinado e perguntei à mulher que o trouxera se ela não estava equivocada.
— É preciso, respondeu-me ela, se estou enganada, que o sr. não seja o sr. Tournebroche.
Corri até o carro parado diante da “Comédia” e aí reconheci a senhorita B., envolvida em um "capuchon" de cetim preto.

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