Mademoiselle Roxane, de Anatole France
Tradução publicada originalmente no
"Jornal das Moças", em sua edição de 29 de janeiro de 1925. A
pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
Meu bom mestre, o abade Jerônimo Coignard, levou-me para cear em casa de um dos seus antigos condiscípulos, que residia em um celeiro da rua Git-le-Coeur.
Nosso
hóspede, reputado com grande competência e bom teólogo, indispusera-se com o
pregador do seu convento por ter feito um livrinho a propósito das desgraças da
senhorita Fauchon; depois disso tornou-se dono de um Café em Haia. Regressando
à França, ele vivia assoberbado de dificuldades com os sermões que compunha com
muita doutrina e eloquência.
Depois da
ceia, ele nos leu as desgraças da senhorita Fauchon, origem também das suas, a leitura
durara muito tempo; e eu achei-me na rua com o meu bom mestre, em uma noite de
verão, maravilhosamente doce, que me fez conceber imediatamente a verdade das
fábulas antigas que se relacionam com as freguesas de Diana e sentir que é
natural empregar no amor as horas argentinas e caladas. Fiz essa observação ao
senhor abade Coignard, que me objetou que o amor causa grandes males.
– Tournebreche,
meu filho, não acabaste de ouvir da boca daquele homem que, por ter amado um
sargento recrutador, um caixeiro do sr. Ganlot, comerciante em Truilquifile, e
o senhor filho mais moço do tenente criminalista Leblanc, a senhorita Fauchon
foi levada para o hospital? Queres ser esse sargento, esse caixeiro ou esse
filho mais moço?
Respondi
que queria. Meu bom mestre exprobou esse desejo e recitou-me alguns versos de Lucrécio
para persuadir-me de que o amor é contrário à tranquilidade de uma alma
verdadeiramente filosófica.
Desse
modo conversando, chegamos ao centro da Pont-Neuf.
Debruçados
sobre o parapeito, olhamos a enorme torre do Chatelet, negro sob a lua.
– Haveria
muita coisa a dizer a propósito dessa justiça das nações cultas, cujas vinganças
são mais cruéis que o próprio crime. Não creio que essas torturas e essas
penas, que homens infligem a homens, sejam necessárias para a conservação dos
Estados, pois que, de tempo em tempo, suprimem-se algumas dessas crueldades
legais sem prejuízo para a república. E presumo que as severidades que se mantém
não são mais úteis do que as que foram abandonadas. Mas os homens são cruéis.
Vem, Tournebroche, meu amigo, para mim é penoso imaginar que desgraçados velam
sob esses muros, na angústia e no desespero.
A ideia
das suas faltas não me impede de lamentá-los. Qual de nós é justo?
Prosseguimos
nosso caminho.
A ponte
estava deserta, nesse ínterim, um mendigo e uma mendiga encontraram-se.
Eles se
comprimiram em uma meia lua, no seio de uma arcada. Pareciam bastante contentes
de confundir suas misérias e, quando passamos perto deles, poderiam pensar em
tudo, menos em implorar a nossa caridade.
Entretanto,
o meu bom mestre, que era o mais piedoso dos homens, atirou-lhes uma moeda, a única
que restava no bolso de sua calça.
Recolherão
o nosso óbolo quando tiverem recuperado o sentimento da sua miséria. Oxalá eles
não disputem essa moeda com muita violência.
Fomos
além, sem outro encontro, quando chegamos ao cais dos Oiseleurs, percebemos uma
senhorita que andava com uma decisão singular. Tendo aumentado o passo para
observá-la de mais perto, vimos que tinha um talhe delgado e cabelos loiros,
nos quais brincavam os clarões da lua. Trajava como uma burguesa da cidade.
– Eis uma
liada rapariga, disse o abade, de onde virá ela para encontrar-se só na rua, a
esta hora?
– Efetivamente,
retruquei, não é isso o que se nos depara frequentemente nas pontes a estas
horas.
Nossa
surpresa transformou-se em viva inquietude quando a vimos descer para a muralha
por uma escadinha frequentada por marinheiros. Corremos para ela. Pareceu, porém,
que ela não nos ouvia. Parou à beira das águas que estavam muito altas, cujo rumor
surdo se percebia a alguma distância. Conservou-se um momento imóvel, a cabeça reta
e os braços pensos, em atitude de desespero. Depois, inclinando o seu dorso gracioso,
levou as mãos às faces que, durante uns poucos de segundos, ela manteve ocultas
pelos seus dedos. Logo após, precipitadamente, segurou a saia e a puxou para a
frente, com o gesto peculiar às mulheres que se vão jogar. Meu bom mestre e eu seguramo-la
no momento em que ela tomava esse impulso funesto, puxando-a fortemente rara
trás. Ela se debateu em nossos braços. Como a muralha estivesse muito gordurosa
e escorregadia em virtude do limo depositado pelas águas (porque o Sena
começava a esvaziar) faltou pouco para que o sr. abade Coignard fosse arrastado
pelo rio.
Até eu
escorreguei ali. Mas a felicidade quis que os meus pés encontrassem uma raiz
que lhes servisse de apoio, enquanto eu mantinha abraçados o melhor dos mestres
e aquela jovem desesperada.
Dentro em
pouco, a poder de força e coragem, ela se deixai ir recostada ao peito do sr. abade
Corgnard e podemos, então, tornar a subir a muralha.
Ele a sustinha delicadamente com aquela graça ingênita
que não o abandonava nunca. E ele conduziu-a até uma árvore, junto à qual havia
um banco de madeira, onde a assentou.
Também ele
assentou.
—Senhorita,
disse lhe ele, não tema nada. Não diga nada por enquanto, mas saiba que tem um
amigo ao seu lado.
Depois,
virando-se para mim, o meu mestre disse-me:
—Tournebroche,
meu filho, devemos alegrar-nos por ter feito terminar bem essa curiosa
aventura. Mas deixei lá em baixo o meu chapéu que, apesar de desprovido de quase
todos os seus galões o um tanto estragado por longo uso, não deixa de
resguardar do sol e da chuva a minha cabeça tantas vezes posta à prova pela
idade e pelos trabalhos. Vá ver, meu filho, se ele se encontra ainda no lugar
em que caiu. Se o descobrires, traga-me, peço-te, assim como uma fivela dos
meus sapatos, que verifiquei ter perdido. Quanto a mim, ficarei perto desta
moça e vigiarei o seu repouso.
Corri ao
lugar de onde viéramos e fui suficientemente feliz para encontrar lá o chapéu
do meu bom mestre. Quanto à fivela, não a pude descobrir. É verdade que não
tive grande preocupação de procurá-la, não tendo visto, em toda minha vida, o
meu bom mestre senão com uma fivela de sapato. Quando regressei, encontrei a
moça tal qual como a deixara, assentada, imóvel, a cabeça apoiada na árvore. Vi
que era extraordinariamente bela. Trazia uma manta de seda guarnecida de renda
e limpíssima, calçava sapatinhos cujas fivelas refletiam os raios da lua.
Não
cessei de contemplá-la.
De súbito,
dia reanimou os seus olhos amortecidos e, lançado ao sr. Coignard e a mim um
olhar ainda velado, disse com voz lacrimosa, mas que me assemelhou a de uma
pessoa de educação.
— Admiro, senhores, o que fizeram por mim, com
um sentimento de humanidade, mas não lhes posso exprimir o meu contentamento porque
a vida a que novamente me entregaram, é um mal odioso e um suplício cruel.
Ouvindo
essas palavras, o meu bom mestre, cuja fisionomia exteriorizava compaixão,
sorriu docemente, porque ele não acreditava que a vida pudesse ser sempre
odiosa para uma pessoa tão jovem e bela.
— Minha
menina, disse-lhe ele, as coisas não nos fazem a mesma impressão, estando elas próximas
ou distantes.
Ainda não
é chegado o momento de entristecer-se. Faça como em que, no estado a que me
reduziu o tempo injurioso, suporto a vida em que tenho por prazeres, traduzir
grego e jantar algumas vezes com muitas pessoas honestas.
Olhe-me e
diga-me se concordaria em viver nas mesmas condições do que eu?
Ela olhou-o,
seus olhos quase se perderam, e sacudiu a cabeça. Depois, retomando a sua
tristeza e a sua desolação, exclamou:
— Não há
no mundo uma criatura tão desgraçada quanto eu.
— Senhorita,
replicou o meu bom mestre, sou discreto por condição e temperamento, em
absoluto não procurarei arrancar o seu segredo, mas vê-se logo pelo seu aspecto
que a senhora sofre terrível mal amoroso. E mal é esse de que se não escapa,
até eu já fui atacado por ele. Há quanto tempo já lá isso vai...
Ele tomou-lhe
a mão, deu-lhe mil provas de simpatia e prosseguiu com esses termos:
—Presentemente
não deploro senão uma coisa — é não ter um lugar em que a senhora possa passar
o resto da noite. Meu abrigo é um velho castelo que fica bem longe, onde
traduzo um livro grego juntamente com esse jovem Tournebroche, que vê aqui.
Efetivamente,
habitávamos então em casa do sr. Assarac, no Castelo de Sablous, na vila de Neuilly
e estávamos por conta de um grande negociante que morreu, depois, de um modo trágico.
— Se,
todavia, senhorita, acrescentou o meu bom mestre, souber algum lugar para onde
possa ir, sentir-me-ei feliz em poder acompanhá-la.
Ao que a
senhorita respondeu que era sensível a tanta bondade, que ela se alojaria em
casa de um parente, onde estava certa de entrar a qualquer hora, mas não queria
regressar ali antes do dia, não só porque não queria perturbar o sono das
pessoas, como pelo temor de ser comovida pela dor à vista dos objetos que lhe
eram familiares.
Proferindo
essas palavras, ela derramou abundantes lágrimas.
Meu bom
mestre disse-lhe:
Que dirá
minha tia? E que lhe direi eu? murmurou ela.
Esta tia
residia em frente a S. Eustáquio, a menos de cem passos da pilastra Mathurin. Para
lá conduzimos a sobrinha. E o abade de Coignard, que tinha o ar bastante venerável,
a despeito do seu sapato sem fivela, acompanhou a bela Sofia aos aposentos da
sra. sua tia, a quem fez sua narrativa:
— Tive a
felicidade, disse-lhe ele, de encontrar a senhorita sua sobrinha no momento
justamente em que ela era atacada por quatro ladrões armados de revólveres e eu
chamei a polícia com uma voz tão forte que os bandidos aterrorizados
escapuliram, mas não tão rapidamente que se pudessem livrar da polícia que, por
grande sorte, acorreu ao meu apelo. Os policiais se apoderaram dos agressores
depois uma luta furiosa.
Participei
dela, minha senhora, e pensei perder o meu chapéu. Depois disso, fomos
conduzidos, a senhorita sua sobrinha, os quatro ladrões e eu, diante do “tenente
criminalista”, que nos tratou asperamente e deteve-nos em seu gabinete até pela
manhã, para ouvir o nosso depoimento.
A tia
respondeu secamente:
— Eu lhe
agradeço, senhor, ter tirado a minha sobrinha de um perigo que, realmente, é dos
que uma senhorita de sua idade mais deve temer, quando se encontra só a noite,
em uma das ruas de Paris.
Meu bom
mestre nada respondeu, mas a senhorita Sofia disse com bastante sentimento:
— Minha
tia, posso garantir-lhe que o senhor abade me salvou a vida.
Alguns
meses mais tarde, o meu bom mestre fez a fatal viagem de Lion, a qual não
concluiu. Foi indignamente assassinado e eu sofria a inconcebível dor de vê-lo
expirar nos meus braços. As circunstâncias dessa morte não têm relação com o
assunto de que faço menção aqui. Eu tomei a precaução de marrá-las em outro
lugar, são memoráveis e não creio que possam ser esquecidas nunca.
Posso
dizer que essa viagem foi, sob todos os aspectos, infortunada, porque depois de
nela ter perdido o melhor dos mestres, fui desprezado por uma mulher que me
amava, que me amava mais do que eu, cuja perda me foi muito sensível depois da
do meu mestre.
É um erro
julgar que um coração torturado por um mal cruel torna-se insensível aos novos
golpes da sorte. Assim, eu vim a Paris num estado tal de abatimento que apenas
é possível imaginar-se.
Ora, uma
tarde em que para divertir-me fui à “Comedie”, onde se representava “Bajazet”,
que é um belo trabalho de Racine, aprecei particularmente a beleza encantadora
e o talento original da comediante que desempenhava o papel de Roxane. Ela
exprimia com admirável naturalidade a paixão de que esta personagem é animada e
eu agitei-me quando ouvi que ela dizia com um tom unido e terrível:
“Escutai,
Bajazet, sinto que vos amo”.
Eu não deixei
de a contemplar durante todo o tempo em que ela esteve em cena e de admirar a
beleza de seus olhos sob uma fronte pura como o mármore, coroada por uma cabeleira
empoada, completamente semeada de pérolas. Seu telhe fino não fazia menor
impressão no meu coração. Maior ainda foi o meu prazer de examinar tão adorável
pessoa porque ela se voltou para mim a fim de recitar vários trechos
importantes do seu papel. Quanto mais eu a via, mais me persuadia de já a ter
visto, sem que me fosse dado lembrar qualquer circunstância deste primeiro encontro.
Meu vizinho, que frequentava assiduamente a “Comédia”, disse-me que aquela
atriz era a senhorita B., o ídolo da plateia. Acrescentou que ela empolgava
tanto na rua como no palco, que o duque de La... a pusera na moda e que dentro
em breve ela eclipsaria a senhorita Lecouvreur.
Ia deixar
o meu lagar depois do espetáculo, quando uma criada me trouxa um bilhete, onde
eu li essas palavras:
“A senhorita Roxane vos espera em seu
carro, na porta da Comédia”.
carro, na porta da Comédia”.
Não pude
crer que aquele bilhete me fosse destinado e perguntei à mulher que o trouxera
se ela não estava equivocada.
— É
preciso, respondeu-me ela, se estou enganada, que o sr. não seja o sr.
Tournebroche.
Corri até
o carro parado diante da “Comédia” e aí reconheci a senhorita B., envolvida em
um "capuchon" de cetim preto.
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