O Corvo, de Edgar Allan Poe
Tradução: Fontoura Xavier (1887)
Tradução: Fontoura Xavier (1887)
Ao Conde Afonso Celso
Uma vez, ao
bater da meia noite, quando eu meditava sobre o volume de uma doutrina
ignorada, e quando mais sonolenta sentia a cabeça fatigada curvar-se sobre as
suas páginas, ouvi o ruído como de alguém que batia, batia à porta de meu
quarto. "É talvez uma visita, murmurei: é talvez um visitante, tardio que
bate à porta do meu quarto, é isso e nada mais".
Ah! Lembro-me
distintamente: era pelas neves de Dezembro, e cada brasa de fogão exalava o seu
último raio de agonia. Eu anelava ardentemente que amanhecesse. Em vão tinha-me
esforçado para arrancar dos livros um alívio para a minha saudade, a saudade da
minha morta Leonor; saudade daquela que os anjos chamam Leonor e que na terra
ninguém mais há de chamar, nunca mais!...
E a vaga e leve
ondulação das cortinas penetrava todo o meu ser, enchendo-o de um terror
fantástico que eu então desconhecia. Se bem que para acalmar o meu coração eu
repetisse comigo mesmo: "É talvez uma visita que deseja entrar a porta do
meu quarto; é talvez um visitante tardio que deseja entrar a porta do meu
quarto, é isso e nada mais".
E assim,
sentindo-se animado, não hesitei por mais tempo: "Senhor ou Senhora, disse
quem quer que sejas, peço-vos que me perdoeis; mas o fato é que estava quase
adormecido; e depois batestes tão docemente, tão docemente, viestes bater à
porta do meu quarto, que eu apenas pude convencer-me que tinha ouvido..."
E, abrindo-a subitamente, vi trevas e nada mais!
Perscrutando
ansiosamente essas trevas, sentir-me tomado de assombros e de apreensões,
imaginando sonhos que nenhum mortal jamais ousou sonhar; mas o silêncio era
imóvel, e a sua imobilidade foi ainda acentuada por uma palavra,
"Leonor"! Era eu que a murmurava, e o eco a seu turno repetiu essa
palavra "LEONOR". Só isso e nada mais.
Voltando ao meu
quarto, e sentindo dentro em mim como um incêndio na alma, ouvi de novo o
ruído, um pouco mais forte que o primeiro. "Naturalmente, pensei, já
alguma coisa atrás da minha janela; vejamos o que seja, desvendemos o mistério;
deixemos o coração acalmar-se um instante e desvendemos este mistério: é o
vento e nada mais".
Mas, abrindo-a
subitamente, vejo entrar um soberbo corvo digno de eras primitivas. Sem fazer a
menor reverência, sem que sequer lhe parecesse estranho o lugar onde entrava,
ele não hesitou um instante, mas, com ar senhorial de um nobre, pousou
tranquilamente sobre a porta do meu quarto... pousou sobre o busto de Palas que
fica sobre a porta do meu quarto, pousou, recolheu as asas e nada mais.
Então, esta ave
negra, não sei se pela severidade de seu aspecto ou se pelo grotesco do seu
todo, induziu-me a triste imaginação a sorrir: "Se bem que sejas calvo,
disse, e conservas a cabeça despida de penachos bélicos, tu não és decerto um
vilão, ó lúgubre e velho corvo, viajante aportaro da profunda noite de
Averno!... Dize-me qual é o teu nome senhorial na profunda noite ptutoniana?...
E o corvo respondeu: "Nunca mais".
Assombrou-me
que esse desgraçado plumitivo tivesse tão facilmente entendido a minha
pergunta; com quanto a sua resposta não fosse inteiramente satisfatória, pois
devemos convir que jamais foi dado a um ser humano ver uma ave ou um animal
pousado sobre a porta do seu quarto, uma ave ou animal pousado sobre o busto
esculpido à porta do seu quarto, e dizendo chamar-se "Nunca mais".
Mas o corvo,
pousado tranquilamente sobre o busto plácido, não proferiu senão essas
palavras, como se nessas palavras ele expandisse toda a sua alma; não
pronunciou nada mais e nem de leve moveu uma pena até que em murmurasse comigo
mesmo: "Em chegando a manhã ele também me deixará como me deixaram as
minhas velhas esperanças; outros amigos foram-se assim como ele..." E o
corvo respondeu: "Nunca mais".
Sobressaltado
com a sua resposta tão a propósito supus que era essa sem dúvida toda a sua
bagagem literária que ele aprendera, quem sabe! de algum infortunado, a quem a
desgraça perseguira tão incessantemente e sem tréguas, que as suas canções não
eram mais que este único estribilho... que o "de profundis" da sua esperança não mais que este melancólico
estribilho: "Jamais, nunca mais".
Mas o corvo,
induzindo o meu triste espírito a sorrir, fez-me chegar a poltrona para mais
junto do busto, onde reclinado sobre o espaldar de veludo eu me esforçava por
concatenar as minhas ideias, procurando o que queria dizer essa agourenta ave
das antigas eras... procurando o que queria dizer essa agourenta, triste e
sinistra ave das antigas eras, grasnando o seu — "Nunca mais".
E conservei-me
assim por algum tempo pensando, mas já sem me dirigir mais à ave, cujos olhos
ardentes parecia agora que me queimavam a alma; pois era embalde que eu me
esforçava por compreendê-la, com a cabeça repousada sobre o veludo da poltrona
que a luz da lâmpada acariciava... esse veludo violeta que a luz da lâmpada
acariciava, e onde a cabeça dela não mais se há de reclinar, nunca mais!
E então
afigurou-se-me que o ar se condensava, perfumado por um turíbulo invisível,
agitado por anjos, cujos passos eu imaginava sentir sobre o tapete:
"Desgraçado! murmurei; o teu Deus levou-ta para sempre, deixando a sua
lembrança como tormento da tua saudade... detém-te, detém-te nessa senda e
esquece de uma vez a tua morta Leonor... E o corvo respondeu: "Nunca
mais".
"Profeta!
exclamei; prenúncio de desgraça, ave ou demônio, mas sempre profeta! sejas
embora um enviado do inferno, ou que só o acaso da tempestade tenha-te arrojado
como um náufrago perdido mas ainda intrépido sobre este retiro onde o horror
habita! diz-me, eu te suplico, poderei encontrar porventura um alívio à minha
dor? dize-me, eu te suplico!" E o corvo respondeu: "Nunca mais".
"Profeta!
Prenúncio de desgraça, ave ou demônio, mas sempre profeta! por este céu estendido
sobre as nossas cabeças, por esse Deus que nós ambos adoramos, dize se a minha
alma carregada de dores pode ainda abraçar num paraíso longínquo essa filha que
os anjos chamam Leonor?..." E o corvo respondeu: "Nunca mais".
"Ave ou
demônio! que essas palavras sejam o adeus eterno da nossa separação. Vai-te
tempestade, torna de novo à mais profunda noite do Averno! não deixeis uma
única pena negra como lembrança da mentira que acabas de proferir; vai-te da
minha solidão inviolável, deixa esse busto de cima, da minha porta... Arranca o
teu bico que me dilacera a alma, e vai-te, espectro lutolento, para bem longe
da minha porta!... E o corvo respondeu: "Nunca mais".
E o corvo
imóvel, está sempre pousado, sempre pousado sobre o busto plácido de Palas,
esculpido sobre a porta do meu quarto; os seus olhos são como os olhos de um
demônio que sonha; a luz da lâmpada entornando-se sobre ele, projeta a sua
sombra negra sobre o pavimento; e fora dessa sombra negra que gira flutuante
sobre o pavimento, a minha alma jamais se poderá elevar, nunca mais!
Adaptação ortográfica: Iba Mendes (2016)
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