O Corvo, de Edgar Allan Poe
Tradução: Aurélio de Lacerda (1949)
Certa
vez, numa noite tempestuosa, à meia-noite lúgubre e trevosa,
Eu,
cabeceando, exausto e sonolento, estava a ler velhíssimos anais
De
um antigo saber hoje esquecido, e cochilava, guando ouvi um ruído
Como
de alguém que tivesse batido, a medo, leve, à porta do meu quarto.
"Um
visitante — murmurei — decerto, está batendo à porta do meu quarto.
Deve
ser isso, e nada mais".
Ah!
bem distintamente ainda me lembro! Era no frio, gélido Dezembro;
E o
fogo na lareira se apagando enchia o chão de sombras espectrais.
Que
viesse a aurora, ansioso, eu desejava; em vão, nos livros meus, a ler buscava
Algum
consolo à mágoa em que me achava — a mágoa atroz da perda de Lenora
A
radiante e formosa criatura a quem hoje, nos céus, chamam Lenora
E
nome aqui não terá mais.
E o
sedoso, soturno sussurrar da purpúrea cortina a drapejar
Todo
me arrepiava à alma trazendo uns pavores estranhos, anormais.
Querendo,
então, vencer meu vão alarme, ergui-me a repetir, para acalmar-me:
"É
só alguém que veio visitar-me e bate agora, assim, à minha porta.
Algum
noturno visitante, alguém que chegou tarde e bate à minha porta.
É
isto só — e nada mais".
Minha
alma assim se foi fortalecendo, e pude então dizer, não mais temendo:
"Senhor,
senhora, quem sejais, perdão, se à tempestade, fora, me esperais,
Tanto
tempo depois de haver batido! A verdade é que eu estava adormecido
E
mal podia mesmo ter ouvido esse bater tão leve, à minha porta.
Esse
bater tão leve, tão de manso!" — E abri, então, de par em par, a porta:
A
escuridão — e nada mais!
De
pé, à porta, o escuro a esquadrinhar, longo tempo fiquei, triste, a pensar,
A
temer, a sonhar, sonhando ali sonhos jamais sonhados por mortais...
Mas
da noite o silêncio persistiu; nem coisa alguma entre as trevas surgiu,
E,
num leve sussurro, só se ouviu uma palavra, um nome, e foi — Lenora!
Isto,
pensando nela, eu sussurrara; e um eco repetiu depois — Lenora!
Isto
somente, e nada mais.
Entrando
no meu quarto novamente, a alma abrasada numa chama ardente,
Logo
outra vez ouvi o tal bater, em pancadas mais fortes, mais brutais.
"Foi
na janela! — exclamo. — Eu bem dizia! Isto é só o furor da ventania
Que
bate da janela à gelosia. E já vou desvendar esse mistério!
Calma-te
agora, coração, sossega, e deixa-me explorar esse mistério!
Isto
é o vento, e nada mais!"
Abri
então, de súbito, a janela! E voando, esvoaçando, entrou por ela
Um
velho Corvo negro, tenebroso, ave augural dos tempos ancestrais!
Sem
me saudar sequer e sem parar, pelo quarto se pôs a esvoaçar,
Até
que, como um "lord", foi pousar, orgulhoso, num busto alvo de Palas
Que
havia sobre a porta do meu quarto, e, soberbo, no busto alvo de Palas
Pousou,
quedou-se — e nada mais.
Mas
sucedeu que, olhando essa ave escura, um sorriso distrai minha amargura,
Pois
engraçado achei-lhe o porte altivo, as soberbas maneiras senhoriais.
"De
crista nua embora — então murmuro, — um covarde não és, eu o asseguro,
Ó
velho bicho feio, magro, escuro, escapado das praias de Plutão!
Qual
será o teu nome senhoril, lá nas noturnas praias de Plutão?!..."
E o
Corvo, disse: "Nunca mais".
Estranhei
que ave estulta assim houvesse entendido a pergunta, e a respondesse,
Embora
fosse uma resposta estranha, aquela, proferida em termos tais,
Porque
ninguém decerto suporia, e acreditar nem mesmo eu ousaria
Que
algum mortal pudesse ver um dia um pássaro surgir à sua porta,
Um
pássaro ou qualquer outro animal, pousado sobre um busto, à sua porta,
Tendo por nome "Nunca mais".
Tendo por nome "Nunca mais".
Mas
o Corvo, no busto onde pousara, após aquilo, pronto, se calara,
Como
se houvesse esvaziado a alma ao proferir tais palavras fatais.
Ficou
soturno, em plácida postura, e sem mover uma só pena escura,
Até
que eu murmurei, com amargura: "Outros amigos, quantos, já se foram!...
Pela
manhã, este se irá também, como os meus sonhos todos que se foram..."
E o
Corvo disse: "Nunca mais!"
Rompe
o silêncio e dessa vez me assusta, essa resposta — que era clara e justa!
Mas
logo refleti: "É natural! São esses os seus termos habituais...
Sabe
acaso só isso, e o aprendeu de algum desventurado dono seu
Que
a sorte, sempre ingrata, ensandeceu, e a quem restou somente o estribilho
Com
que fazia os tristes funerais das mortas esperanças, o estribilho
De
"Nunca mais! ai, nunca mais!
Mas
como olhar o bicho distraía aquela dor sem nome que eu sentia,
Logo
girei uma poltrona e, ali imerso em deduções filosofais,
Em
frente a porta, ao busto e ao Corvo mudo afundado no plácido veludo,
Pus-me
a fantasiar, num vão estudo, a imaginar porque a ave agoureira,
Aquela
feia, negra, repulsiva, espectral e grotesca ave agoureira
Grasnava
sempre "Nunca mais".
E
assim fiquei em sonhos, a cismar, sem nada mais, contudo, acrescentar
A
ave soturna, cujos olhos cruéis, fitos em mim, varavam quais punhais.
E
assim fiquei cismando meditando, a cabeça em repouso reclinando
Sobre
o espaldar aveludado e brando, iluminado pela luz da lâmpada,
Esse
espaldar em cuja macieza a cabeça querida, à luz da lâmpada,
Não
porá ela — nunca mais!
Então
o ar foi ficando mais denso, ali no quarto, qual se leve incenso
Estivessem
uns anjos esparzindo — e eu lhes ouvia os passos celestiais!
"Desgraçado!
— exclamei — Deus apiedou-se! Um mensageiro Dele te trouxe
Esquecimento,
paz, alívio doce à dolorosa perda de Lenora!
Bebe
depressa o salutar nepente, e esquece! esquece a perda de Lenora!"
E o
Corvo disse: "Nunca mais"!
"Profeta!
— então gritei — Ente do mal! Profeta, sejas duende ou animal,
Que
acaso o Tentador mandou a mim ou que fugido vens dos temporais,
E
assim chegaste aqui sozinho e ousado a este lar de tristezas devastado,
A
este mundo de horrores assombrado — agora dize, eu peço, eu to suplico:
Bálsamo
se acha, um dia, em Galaad? Acha se, enfim? Oh, dize! eu to suplico!"
E o
Corvo disse: "Nunca mais!"
"Profeta!
— continuei — Ente do mal! Profeta, sejas duende ou animal!
Pelo
Deus que adoramos, eu e tu, pelas sublimes plagas celestiais,
Dize
a esta alma que vês sofrendo assim se ela, no Éden, um dia, há de, por fim,
Abraçar
novamente um querubim — aquela a quem nos céus chamam Lenora!
Se
abraçará a excelsa criatura a quem hoje nos céus chamam Lenora!"
E o
Corvo disse: "Nunca mais!"
"Seja,
pois, isso o teu adeus! — bradei — Ave ou demônio! (e então me levantei,
Desvairado
de dor). Retorna agora à tempestade e às praias infernais!
De
ti uma só pena aqui não reste atestando a mentira que disseste!
Fique
eu só qual estava quando vieste! Afasta-te, arreda desse busto!
Tira
teu bico que me fere o peito e sai daí de cima desse busto!"
E o
Corvo disso: "Nunca mais!"
Adaptação ortográfica: Iba Mendes (2016)
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