Edgar Allan Poe
Por: Orvácio
Santamarina
O
velho Poe apaixonou-se por Francis, formosa atriz inglesa. Impulsivo,
arrebatado, raptou-a, desposando-a em seguida.
Amou
profundamente sua mulher e fez de sua vida um lindo e doloroso romance...
Improvisando-se em artistas, ambos percorreram os Estados Unidos como
saltimbancos...
Em
Baltimore, no ano de 1813, veio ao mundo Edgar. Pouco depois morreu seu pai,
deixando a família na penúria. A vida, nessa ocasião, pareceu acenar com a
fortuna ao pequeno órfão... Segundo um de seus biógrafos, um rico negociante
pretendeu educá-lo. Levou-o a viajar pela Inglaterra, Escócia e Irlanda e, por
fim, deixou-o num colégio nos arredores de Londres. Voltou depois a América,
onde continuou seus estudos. Esteve na Universidade de Charlottesville, onde se
distinguiu pela aplicação e pela inteligência. Aqui fez ponto final sua
ventura... E a vida começou a hostilizá-lo. A mãe casou-se novamente e esse
casamento iniciou seu tormento. Apesar de tudo, uma sombra leve e amena pairava
no seu destino, prometendo-lhe existência de sonho e de felicidade... Poe amou
desde menino. Mas no amor sentimento raríssimo — como no ódio, ha um impulso
violento e exclusivo que torna os indivíduos cegos e injustos. O amor, como o ódio,
prende o eu de uma pessoa ao eu de outra, confunde-as a tal ponto que
não é mais possível separá-las ou distinguir-lhes as personalidades. Assim se
amaram Edgard e Virgínia. Ele, desejando torná-la sua companheira, elegeu-a
para motivo de sua inspiração... Virgínia era bela? Talvez não. Mas o amor tem
a virtude de transformar as mulheres em criaturas etéreas!
Uma
grande catástrofe desabou sobre sua terra. Poe viu-se obrigado a assentar praça
no regimento que foi socorrer seus conterrâneos, a fim de não morrer de fome e
de frio... Corria o ano de 1827. Declarou o poeta o nome fictício de Edgar A.
Perry, ter nascido em Boston e ser escritor de profissão. Isto só lhe bastou
para que o ambiente lhe fosse adverso... Incluído na bateria H do 1° de
Artilharia, pouco depois era transferido para o Forte Independência, na baía de
Boston.
Procurara
ele segurança em um meio rude, hostil, calculador, egoísta e, por isso mesmo, inexorável
para os homens de espírito... Aquele terreno era demasiado estéril para planta
tão fina...
Durante
sua permanência na caserna encerrava-se ele nos cantos solitários da fortaleza
e meditava, firmando os alicerces daquele mundo estranho, misterioso e
envolvente, que foi o seu mundo... Mais tarde escreveu: "Os que sonham de
dia sabem coisas que escapam aos que somente de noite sonham". Ali
habituou-se à solidão, aos grandes silêncios tão fecundos para os pensadores.
Em
seguida foi mandado para Carolina do Sul. Nesse clima conheceu as plantas
cheias de seiva, aves extravagantes, escaravelhos e mariposas, que tiveram um
lugar tão destacado em sua obra... Matriculou-se em West Point, depois da morte
de sua mãe. Mas em breve reconheceu que a carreira militar, para uma criatura
como ele, era um calvário difícil de subir... Revoltou-se. E, partindo a
espada, desbravou só com a pena o caminho áspero da glória... Levado a Conselho
de Guerra, foi licenciado com a nota de indisciplinado e relapso... Apesar
disso, saiu contente, lançando-se ao mundo cheio de esperanças... Julgava
construir, em lances rápidos, uma vida grandiosa... Infeliz Poe: nos umbrais de
sua existência esperava-o aquele corvo hediondo, com seu terrível "Never more!"
Desconhecido
e sem profissão segura, vagou pelas ruas passeando sua miséria, meditando sobre
o futuro incerto, enquanto a fome implacável destruía, um a um, os sonhos que
seu cérebro de adolescente concebera... Tendo conhecimento de que uma revista literária
abrira um concurso com dois prêmios, arriscou a sorte... Ganhou-os. Chamado à
redação, espantou os jornalistas com seu aspeto: parecia um mendigo a roupa
velha e sebosa, e a gola do casaco a cobrir-lhe o pescoço. Edgar Allan Poe chegara
a este estado... Reconhecendo-lhe os méritos excepcionais, deram-lhe a direção
da revista Southern Literary Messenger.
Tinha vinte e dois anos, o cérebro povoado de sonhos, e um grande amor para suavizar-lhe
o caminho tortuoso da vida... Poe foi ao encontro de sua prima Virgínia Clemen
e casou-se. A felicidade realizada levou-o a escrever seus primeiros versos.
Publicou o primeiro livro, que não despertou grande interesse... Mesmo nessa
época sua produção literária não dava para fazer face às despesas da família, a
paz doméstica, no entanto, corria bem porque o amor substituía a riqueza...
Certa vez, o romancista John Kennedy observou-lhe: — Você devia deixar esse
estilo e escrever coisas alegres, engraçadas, no genro dos vaudevilles... Rendem mais!
Poe,
que fazia da arte seu ideal supremo, e da beleza seu guia, que desprezava todas
as vantagens para ser apenas artista, respondeu: Pouco me importa o dinheiro.
Eu sei o que valho; a única coisa que me revolta é a ideia de que poderia
alguém no mundo ser superior a mim!
Apesar
da vida errante e infeliz, produz páginas maravilhosas, mas que apenas lhe dão
uma renda ridícula: O silêncio, seis dólares.
O escaravelho de ouro, cinquenta, e
assim muitos dos seus trabalhos. Repentinamente uma grande sombra negra veio
toldar a felicidade do poeta. Virgínia, a doce Virgínia adoeceu gravemente. As
dificuldades cresceram, obrigando-o a trabalhar exaustivamente. Mas que
importava isso, se ela vivesse?! Antevendo o desenlace, perturbou-se com o
sofrimento, que o esperava. E procurou nas tabernas o paliativo para sua dor!
Desde aí sua vida passou a ser a mais delirante, a mais dramática, a mais
grotesca de suas novelas. O destino o aquinhoou com a suprema infelicidade — o
amor. Eis por que aquele corvo horrendo completou sua desgraça, repetindo-lhe a
cada anseio, a cada interrogação dolorosa, o lancinante e sinistro: "Never more!"
Ele
mesmo confessou: "A doença, uma doença fatal, empolgou-a como um simum...
Aí de mim! O flagelo chegou e partiu, e a vítima, onde está ela? Eu já não a
conhecia..."
Virgínia
morreu. E, ao partir da terra, levou com a sua, a alma do poeta. Ele, então,
pôs à prova aquela infinita capacidade de desolar-se, de não ter mais
esperança... ninguém como ele soube falar da amante morta... É que seu sentimento
era real, a paixão fermentava dentro dele como as lavas fervem nas entranhas da
terra, e, incapaz de conter-se, exteriorizava-se... O amor, arrebatando-nos a
alma, absorve o universo que nos rodeia. Perdê-lo, é ver esse universo
esboroar-se aos nossos olhos estupefatos... Separando-se da companheira, Poe
perdia a seiva, a substância preciosa da existência. Os conflitos psíquicos
dominaram-no e ele se revoltou contra a realidade prática, tentou fugir aos
duros embates da vida... Somente na embriaguez encontrou alívio para sua
tortura. A saudade da esposa era grande demais para ficar em silêncio... O cérebro
extirpava do coração a mágoa imensa para mostrá-la ao mundo... Fantasmas,
espectros e monstros pinoteavam ao seu redor, grotescamente... E o mundo, indiferente,
riu da tortura do gênio! Só mais tarde, muito mais tarde, esse mundo cruel o
compreendeu, reconhecendo que sua obra era a imagem do seu destino. Suas páginas,
ressumando mistério e horror, revelavam a alma do esteta que se debateu na angústia
de um oceano sem horizonte... A alma passou a ser sua preocupação obsedante. As
manifestações mórbidas da vida do espírito projetam às vezes uma claridade
insuspeitada sobre a vida. E suas deduções mostram que ele levou suas
investigações até aos mais profundos recessos da psique humana. Desejou saber o
que a morte guardava em seu seio insondável e criou aquele inferno apavorante
que descreveu... Não temia os seres fantásticos como Hoffmann, que ia acordar
sua mulher, nas suas noites diabólicas, para lhe fazer companhia enquanto trabalhava...
Guardava, ao contrário, a esperança de vê-la, de falar-lhe, e como desejava
esse encontro! Essa ilusão o levou a criar a figura que não saía da mente
torturada, e que descreve assim: "...era uma recordação semelhante a uma
sombra, vaga, variável, indefinida, inconsistente, e que a uma sombra se
assemelha ainda, na impossibilidade em que me debato, de me libertar dela
enquanto se me não apagar o sol da razão". Nestas linhas estão os retratos
de Ligéia, Lenora, Leonor, Berenice, e todas são bem a imagem de Virgínia que o
poeta ressuscitava, dando-lhe a centelha de sua própria vida, para aliviar sua dor...
Mas o alívio era sempre um tétrico "Never
more!"
"Toda
beleza, seja de que espécie for, no seu desenvolvimento supremo, impele
inevitavelmente às lagrimas uma alma sensível". É uma confissão. O
sofrimento tem a virtude de tornar os homens sinceros. E a tristeza, que é um
sentimento depressivo, imola o indivíduo ao seu egoísmo, inutiliza-o para as
utilidades práticas... Andando ao léu, encontrou um irmão num outro torturado,
que teve, contudo, a ventura de não conhecer o amor... Foi em França. Identificados
pelo idealismo artístico e atraídos pela emoção profunda, Baudelaire e Poe
uniram-se como "cúmplices da mesma obra de beleza." Pontificando nas
mesas dos cafés do bairro latino, em breve Poe tornou-se o patrono dos bebedores
do Chat Noir. E foi aí que, certa
noite, com o copo na mão, ele exclamou: "Não há doença que se compare com
o álcool!" Referindo-se a isso, Baudelaire escreveu: "Poe não bebia
como Musset, por desfastio ou imprudência. O álcool era, para ele, necessidade
imperiosa, irresistível. Ingeria, uns após outros, com sofreguidão, copos cheios
de gim, até cair fulminado". Quando isso acontecia, contemplavam-no e limitavam-se
a baixar a cabeça entristecidos, porque conheciam sua história... Seus méritos,
apesar de tudo, eram exaltados com entusiasmo febril. Sua arte empolgou Paris.
Certa ocasião, quando no Michigan caiu uma neve negra, Le Journal, ao noticiar o caso, comentou: "É bem a neve do país
de Poe". Sua influência contaminou a todos — artistas e burgueses,
puritanos e moralistas... Mallarmé cinzelou o pedestal de sua glória ao
considerá-lo prince spirituel de cet âge.
Gauthier o amou. Os Goncourt só o comparavam a Heine. Rollinat escreveu:
Edgar Poe fut démon, ne voulant pas être auge.
Au lieu du Rossignol, il chauta le Corbeau;
Et dans le diamant du mal et de l'E'trange
Il cisela, son rêve
effroyablement beau.
Baudelaire perguntava a todos os que encontrava se conheciam The Raven. Certa vez, um norte-americano respondeu-lhe que Poe não passava dum maluco e dum bêbedo. O autor de Flores do Mal, fulminou-o com esta frase:
—
Afinal, não passas dum ianque!
O
tempo não maculou sua glória. Entre os contemporâneos, Papini, referindo-se a
sua obra, disse: Miracoli di supremo
terrore e di fantástica dolcezza. E Mauclaire considera-o uma das inteligências
mais notáveis do ocidente moderno.
Edgar
Poe tornara-se indiferente ao que diziam dele, deixara de preocupar-se com o
que o rodeava. O mundo para ele era um amontoado de escombros, onde fantasmas
dançavam ao som de ritmos macabros... E bebia, bebia até a cabeça pender sobre
as mesas dos cafés... Baudelaire justificava-o: "Rancores literários,
vertigens do infinito, saudade, insultos da miséria, a tudo isso fugia Poe,
mergulhando na embriaguez como num túmulo preparatório." O delirium tremens por duas vezes lhe
experimentara a resistência. Tinha então 37 anos! Certo dia, cambaleando,
caminhava pelas ruas mal iluminadas, quando foi agarrado por um bando de cabos eleitorais
que o fizeram votar, inconsciente, em várias sessões, com diversos nomes...
Depois o deixaram num bar diante de uma garrafa de whisky... Um médico que o conhecia, vendo-o naquele deplorável
estado, levou-o para um hospital, onde entrou gritando, debatendo-se num novo e
mais terrível acesso de delirium tremens.
Pedia uma arma para se matar, dizia nomes incompreensíveis... De repente
acalmou-se, repousou um pouco e, afinal, disse: "Que Deus tenha pena da
minha alma!" E fechou os olhos para sempre. Então, o grande corvo que o atordoou
durante toda vida, bateu as asas, soltando seu mais longo e mais lúgubre
estribilho: — Never never more!
Aspectos, 1939.
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