9/21/2016

A projeção mítica de Edgar Poe (Ensaio Crítico)




A projeção mítica de Edgar Poe

Por: John Nist
Ensaio crítico sobre a obra de Edgar Allan Poe, publicado no “Suplemento Literário”, em sua edição do 24 de dezembro de 1959. A pesquisa, transcrição e atualização ortográfica é de Iba Mendes (2016).

James Russell Lowell (1819, 1891), que nos seus anos constituiu uma poderosa força crítica conservadora da literatura americana, declarou que a obra de Edgar Allan Poe constituía em cerca de 60% de gênio e 40% de mistificação. O Juízo de Lowell, embora a nosso ver correto, não chega à profundidade máxima da percepção, isto é, à da relação entre o gênio e a mistificação. Nas palavras do professor Robert E. Spiller da Universidade de Pensilvânia, o autor de "The Cycle of American Literature" (1955), Edgar Allan Por “foi o primeiro escritor americano que conseguiu criar uma vida total na arte como contraste aos conflitos e frustrações da condição humana''. Assim como o fascínio pelo feio e obsceno entre os mais sublimes autor (quem é mais terrível do que Dante, mais grotesco do que Shakespeare?) é um aspecto negativo  do seu impulso positivo para o belo e o puro, assim a mistificação e o reverso da medalha do gênio de Poe. E além disso, a mistificação, como ímpeto inicial à sua busca de urna válvula temperamental na arte, é tão responsável pelo êxito de Poe como o seu gênio.
Talvez nem mesmo Baudelaire possuísse uma sensibilidade com tantas terminações nervosas à flor da pele como a de Edgar Allan Poe. A sensibilidade de Poe era uma arma engatilhada, pronta para disparar ao menor estímulo. Combine-se esse tato com o idealismo e sentimentalismo romântico do velho Sul que o alimentou; com a incapacidade de absorver mais de um copo de qualquer bebida alcóolica sem embriagar-se; com a sua rebelião contra toda a autoridade, simbolizada no seu severo e incompreensível pai adotivo John Allan; com o seu amor assexuado e etéreo pela sua esposa-criança Virgínia; com os seus magros proventos de jornalista (insuficientes para  sustentar a casa); com o sofrimento que lhe causavam as delongas da lei, dificultando-lhe o recebimento dos pequenos cheques referentes aos seus escritos avulsos; com a circunstância de estar ele rodeado por um crasso comercialismo ianque e por uma crítica puritana e didática de intelectuais de terceira ordem — e o que surpreende não é só fato de Poe ter conseguido escrever obras de valor eterno, mas ainda o de ter simplesmente conseguido escrever. À luz desses obstáculos, ingredientes da mistificação, as conquistas, no gênio de Poe tem algo de quase miraculoso.
Com a expressão conquistas de Poe não queremos aludir à sua crítica combativa, de auto enaltecimento e racionalizadora, nem aos seus contos quase histéricos de raciocínio e de horror gótico. Como crítico, salvo raras exceções, Poe preferia o perfume nauseante de um jardim de estufa ou luzes fosforescentes da matéria em decomposição. Como novelista, quis comprazer a sua fantasia de força intelectual pessoal, a sua inclinação teatral para entreter adolescentes com recursos melodramáticos e chapas demasiado retóricas. Nem queremos referir-nos às suas enormes e inegáveis influências sobre certas espécies de subliteratura e seus popularíssimos autores. Sem a menor dúvida, Poe inventou o gênero da história policial e iniciou a voga sempre crescente da ficção cientifica e da aventura Juvenil. Como inventor e iniciador do gênero, Poe é o pai literário de escritores tão divergentes como Júlio Verne, R.L. Stevenson, A.C. Doyle, H.G. Wells e Mickey Spillane. A imensa ironia das suas influências, com a notável exceção das mais altas expressões do Simbolismo francês, é simplesmente esta: elas foram máximas onde deveriam ter sido mínimas. Porém ninguém pode com justiça condenar Poe pelo fato de permanecerem quase todos os homens meros “escapistas” pela vida afora, de muito deles buscarem escoamentos indiretos e portanto inofensivos ao masoquismo e ao sadismo; de estarem dispostos a alimentar os seus sonhos perversos com máscaras de necrofilia e incesto. O vício privado é sempre preferível ao crime público, e o mórbido mundo habitado pala psique doentia de Poe permite e escapamento pacífico das supressões violentas que sem isso encheriam as prisões e hospícios deste mundo a ponto de transbordar. No seu nível mais baixo Imito de funcionalidade, a arte da patologia em Poe á tão necessária à cidade doa homens como a rede de esgotos.
Com a exclusão dos contos e da crítica literária de Edgar Allan Poe devemos voltar para a sua poesia a fim de descobrir a pura chama do seu gênio. Mas não a totalidade da sua poesia: somente os poemas em que ele realiza suas projeções míticas de seu mundo interior de paixão turbulenta e frustração perplexa, num mundo exterior de fatos fabulosos. Nas suas primeiras poesias, Poe demonstra o seu domínio padrões sonoros, o seu perfeito ouvido para o ritmo. Mas nessa poesia inicial ele também aquece e mistura os ingredientes do seu romantismo até atingir a consistência pegajosa do melado. Uma história descontrolada nessa primeira poesia, um horror gótico fácil, uma melancolia exagerada, as imagens banais dos chavões. Poe jamais soube enfrentar a experiência atacá-la diretamente. Para conseguir liberar de modo apropriado o seu intenso talento, teve ele de abordar o seu tema obliquamente, com frieza até, e de um modo um tanto mecânico. Em outros termos, Edgar Aliso Poe teve de seguir o conselho de Alexandre Pope: "Dá-me a minha máscara e cantarei a verdade”. Poe encontrou a sua máscara numa projeção mítica que lhe permitiu empregar fábula, alusão, alegoria e simbolismo ao máximo.
Ao declarar que Edgar Allan Poe pertence às luzes elétricas da literatura norte-americana, brilhantes mas frias, Walt Whitman, o mestre dos versos livres, resumiu a qualidade mecânica da estruturação da experiência poética em Poe. Assim, a famosa "Filosofia de Composição" de Poe é urna verdadeira análise dos meios usados para alcançar preleção mítica. Como tal, o ensaio não é uma racionalização "ex-post-facto”, por alguém que se considerara dono de uma poderosa mente investigadora; é um relato honesto do método que uma atormentada alma poética teve de usar a fim de soltar o gemo no “Corvo" e impedir que a mistificação lá entrasse. Os críticos que veem uma espécie de trágica auto-decepção ou deliberada fraude na "Filosofia da Composição”, cometem o erro de desleixar o sentido literal do ensaio e de entregar-se, por conta própria, a uma espécie de descoberta deformada. O equívoco de Poe, na sua mineira mecânica de abordar a arte, é ter ele prescrito como uma panaceia o remédio que resolvia o seu caso particular. Tal prescrição nem trágica nem intencionalmente enganadora; é meramente patética. Patética pelo fato de Poe não ter podido perceber que muito pouco são poetas que precisam abordar a arte de modo tão oblíquo que como o dele, a fim de dizer qualquer coisa de valor permanente, porque muito pouco são os poetas com urna sensibilidade tão crua, uma predileção tão espontânea pela mistificação. Porém o patético tem o seu lado grandioso também, e a grandeza de Poe é a sua consciência dos meios necessários que teve de usar para trabalhar dentro das suas limitações. Esse conhecimento de causa posto em prática em poemas como "O Corvo", "Ulalume", “Os Sinos”, “A cidade do mar”, “Israfel” e "Annabel Lee" é o que o marca como um herói nas lides do espírito criador do homem. Muito poucos são os poetas capazes de dominar as suas limitações tão bem como Poe.
Esse domínio de Poe tornou-se possível pela sua projeção mítica. Quando ele consegue dramatizar a dor inconsolável no símbolo de um pássaro, quando consegue chegar a um acordo com o seu luto pessoal num reino à beira mar, ou deambular pelos bosques assombrados de Weir com uma deusa fenícia da fertilidade, quando consegue modelar uma vida universal do homem em quatro estágios caracterizados pelo som de vários signos — então Poe está livre da sua mistificação pessoal e domina a estrutura e textura com a visão do gênio. E é esse domínio que o torna indiscutivelmente o pai da poesia moderna. Críticos que estão prontos a zombar de Edgar Poe como uma espécie de mágico adolescente, deveriam estudar Eliot e Pound com mais cuidado. Tanto um como outro são netos estéticos, quer o admitam ou não, de Edgar Allan Poe, através da paternidade imediata de Baudelaire, Laforgue e outros membros ilustres do simbolismo francês. De um modo muito profundo, pode-se indagar quanta poesia fresca e original Eliot e Pound poderiam ter produzido em sua abordarem indireta da experiência, se Edgar Allan Poe não tivesse, em sua heroica luta, realizada a uma projeção mítica e mantido uma sensibilidade sempre em perigo de explodir em fragmentos de histeria incontrolável.
Juntamente com a maestria estrutural em seus poemas de preleção mítica, Poe realiza uma beleza quase única de padrões sonoros. E críticos que se comprazem numa espécie de poesia moderna destinada apenas à leitura silenciosa, deveriam reconsiderar algumas das obras-primas da tradição oral. Poe, como Hopkins e Thomas, depois dele, devolve a poesia ao ouvido do povo. Aliteração, assonância, consonância e estribilho, e um uso preponderante de líquidas e nasais, ajudam Poe a criar essa hipnose melódica que contribui extraordinariamente para o seu propósito expresso: uma excitação da alma. Essa excitação em Poe é muito semelhante à da boa música e desafia a análise. E é ela que permanece como a testemunha mais imediata desse gênio que fez de Poe um verdadeiro herói literário, um herói que conseguiu “criar uma vida total na arte como contraste aos conflitos e frustrações da condição humana”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...