A projeção mítica de Edgar Poe
Por: John Nist
Ensaio crítico sobre a obra de Edgar Allan
Poe, publicado no “Suplemento Literário”, em sua edição do 24 de dezembro de
1959. A pesquisa, transcrição e atualização ortográfica é de Iba Mendes
(2016).
James
Russell Lowell (1819, 1891), que nos seus anos constituiu uma poderosa força crítica conservadora da literatura americana, declarou que a
obra de Edgar Allan Poe constituía em cerca de 60% de gênio e 40% de
mistificação. O Juízo de Lowell, embora a nosso ver correto, não chega à profundidade
máxima da percepção, isto é, à da relação entre o gênio e a mistificação. Nas
palavras do professor Robert E. Spiller da Universidade de Pensilvânia, o autor
de "The Cycle of American Literature" (1955), Edgar Allan Por “foi o
primeiro escritor americano que conseguiu criar uma vida total na arte como
contraste aos conflitos e frustrações da condição humana''. Assim como o fascínio
pelo feio e obsceno entre os mais sublimes autor (quem é mais terrível do que
Dante, mais grotesco do que Shakespeare?) é um aspecto negativo do seu impulso positivo para o belo e o puro,
assim a mistificação e o reverso da medalha do gênio de Poe. E além disso, a mistificação,
como ímpeto inicial à sua busca de urna válvula temperamental na arte, é tão responsável
pelo êxito de Poe como o seu gênio.
Talvez
nem mesmo Baudelaire possuísse uma sensibilidade com tantas terminações nervosas
à flor da pele como a de Edgar Allan Poe. A sensibilidade de Poe era uma arma engatilhada,
pronta para disparar ao menor estímulo. Combine-se esse tato com o idealismo e sentimentalismo
romântico do velho Sul que o alimentou; com a incapacidade de absorver mais de
um copo de qualquer bebida alcóolica sem embriagar-se; com a sua rebelião contra
toda a autoridade, simbolizada no seu severo e incompreensível pai adotivo John
Allan; com o seu amor assexuado e etéreo pela sua esposa-criança Virgínia; com
os seus magros proventos de jornalista (insuficientes para sustentar a casa); com o sofrimento que lhe
causavam as delongas da lei, dificultando-lhe o recebimento dos pequenos
cheques referentes aos seus escritos avulsos; com a circunstância de estar ele
rodeado por um crasso comercialismo ianque e por uma crítica puritana e didática
de intelectuais de terceira ordem — e
o que surpreende não é só fato de Poe ter conseguido escrever obras de valor
eterno, mas ainda o de ter simplesmente conseguido escrever. À luz desses
obstáculos, ingredientes da mistificação, as conquistas, no gênio de Poe tem
algo de quase miraculoso.
Com a
expressão conquistas de Poe não queremos aludir à sua crítica combativa, de
auto enaltecimento e racionalizadora, nem aos seus contos quase histéricos de
raciocínio e de horror gótico. Como crítico, salvo raras exceções, Poe preferia
o perfume nauseante de um jardim de estufa ou luzes fosforescentes da matéria
em decomposição. Como novelista, quis comprazer a sua fantasia de força
intelectual pessoal, a sua inclinação teatral para entreter adolescentes com recursos
melodramáticos e chapas demasiado retóricas. Nem queremos referir-nos às suas
enormes e inegáveis influências sobre certas espécies de subliteratura e seus
popularíssimos autores. Sem a menor dúvida, Poe inventou o gênero da história
policial e iniciou a voga sempre crescente da ficção cientifica e da aventura
Juvenil. Como inventor e iniciador do gênero, Poe é o pai literário de escritores
tão divergentes como Júlio Verne, R.L. Stevenson, A.C. Doyle, H.G. Wells e
Mickey Spillane. A imensa ironia das suas influências, com a notável exceção
das mais altas expressões do Simbolismo francês, é simplesmente esta: elas foram
máximas onde deveriam ter sido mínimas. Porém ninguém pode com justiça condenar
Poe pelo fato de permanecerem quase todos os homens meros “escapistas” pela
vida afora, de muito deles buscarem escoamentos indiretos e portanto inofensivos
ao masoquismo e ao sadismo; de estarem dispostos a alimentar os seus sonhos perversos
com máscaras de necrofilia e incesto. O vício privado é sempre preferível ao
crime público, e o mórbido mundo habitado pala psique doentia de Poe permite e
escapamento pacífico das supressões violentas que sem isso encheriam as prisões
e hospícios deste mundo a ponto de transbordar. No seu nível mais baixo Imito
de funcionalidade, a arte da patologia em Poe á tão necessária à cidade doa
homens como a rede de esgotos.
Com a exclusão
dos contos e da crítica literária de Edgar Allan Poe devemos voltar para a sua
poesia a fim de descobrir a pura chama do seu gênio. Mas não a totalidade da
sua poesia: somente os poemas em que ele realiza suas projeções míticas de seu
mundo interior de paixão turbulenta e frustração perplexa, num mundo exterior
de fatos fabulosos. Nas suas primeiras poesias, Poe demonstra o seu domínio padrões
sonoros, o seu perfeito ouvido para o ritmo. Mas nessa poesia inicial ele também
aquece e mistura os ingredientes do seu romantismo até atingir a consistência
pegajosa do melado. Uma história descontrolada nessa primeira poesia, um horror
gótico fácil, uma melancolia exagerada, as imagens banais dos chavões. Poe
jamais soube enfrentar a experiência atacá-la diretamente. Para conseguir liberar
de modo apropriado o seu intenso talento, teve ele de abordar o seu tema
obliquamente, com frieza até, e de um modo um tanto mecânico. Em outros termos,
Edgar Aliso Poe teve de seguir o conselho de Alexandre Pope: "Dá-me a
minha máscara e cantarei a verdade”. Poe encontrou a sua máscara numa projeção mítica
que lhe permitiu empregar fábula, alusão, alegoria e simbolismo ao máximo.
Ao
declarar que Edgar Allan Poe pertence às luzes elétricas da literatura norte-americana,
brilhantes mas frias, Walt Whitman, o mestre dos versos livres, resumiu a
qualidade mecânica da estruturação da experiência poética em Poe. Assim, a
famosa "Filosofia de Composição" de Poe é urna verdadeira análise dos
meios usados para alcançar preleção mítica. Como tal, o ensaio não é uma racionalização
"ex-post-facto”, por alguém que se considerara dono de uma poderosa mente
investigadora; é um relato honesto do método que
uma atormentada alma poética teve de usar a fim de soltar o gemo no “Corvo"
e impedir que a mistificação lá entrasse. Os críticos que veem uma espécie de trágica
auto-decepção ou deliberada fraude na "Filosofia da Composição”, cometem o
erro de desleixar o sentido literal do ensaio e de entregar-se, por conta própria,
a uma espécie de descoberta deformada. O equívoco de Poe, na sua mineira mecânica
de abordar a arte, é ter ele prescrito como uma panaceia o remédio que resolvia
o seu caso particular. Tal prescrição nem trágica nem intencionalmente enganadora;
é meramente patética. Patética pelo fato de Poe não ter podido perceber que
muito pouco são poetas que precisam abordar a arte de modo tão oblíquo que como
o dele, a fim de dizer qualquer coisa de valor permanente, porque muito pouco
são os poetas com urna sensibilidade tão crua, uma predileção tão espontânea
pela mistificação. Porém o patético tem o seu lado grandioso também, e a
grandeza de Poe é a sua consciência dos meios necessários que teve de usar para
trabalhar dentro das suas limitações. Esse conhecimento de causa posto em prática
em poemas como "O Corvo", "Ulalume", “Os Sinos”, “A cidade do mar”,
“Israfel” e "Annabel Lee" é o que o marca como um herói nas lides do
espírito criador do homem. Muito poucos são os poetas capazes de dominar as
suas limitações tão bem como Poe.
Esse
domínio de Poe tornou-se possível pela sua projeção mítica. Quando ele consegue
dramatizar a dor inconsolável no símbolo de um pássaro, quando consegue chegar
a um acordo com o seu luto pessoal num reino à beira mar, ou deambular pelos
bosques assombrados de Weir com uma deusa fenícia da fertilidade, quando
consegue modelar uma vida universal do homem em quatro estágios caracterizados pelo
som de vários signos — então Poe
está livre da sua mistificação pessoal e domina a estrutura e textura com a
visão do gênio. E é esse domínio que o torna indiscutivelmente o pai da poesia
moderna. Críticos que estão prontos a zombar de Edgar Poe como uma espécie de
mágico adolescente, deveriam estudar Eliot e Pound com mais cuidado. Tanto um
como outro são netos estéticos, quer o admitam ou não, de Edgar Allan Poe,
através da paternidade imediata de Baudelaire, Laforgue e outros membros
ilustres do simbolismo francês. De um modo muito profundo, pode-se indagar
quanta poesia fresca e original Eliot e Pound poderiam ter produzido em sua
abordarem indireta da experiência, se Edgar Allan Poe não tivesse, em sua heroica
luta, realizada a uma projeção mítica e mantido uma sensibilidade sempre em
perigo de explodir em fragmentos de histeria incontrolável.
Juntamente
com a maestria estrutural em seus poemas de preleção mítica, Poe realiza uma beleza
quase única de padrões sonoros. E críticos que se comprazem
numa espécie de poesia moderna destinada apenas à leitura silenciosa, deveriam
reconsiderar algumas das obras-primas da tradição oral. Poe, como Hopkins e
Thomas, depois dele, devolve a poesia ao ouvido do povo. Aliteração,
assonância, consonância e estribilho, e um uso preponderante de líquidas e nasais,
ajudam Poe a criar essa hipnose melódica que contribui extraordinariamente para
o seu propósito expresso: uma excitação da alma.
Essa excitação em Poe é muito semelhante à da
boa música e desafia a análise. E é ela que permanece como a testemunha mais
imediata desse gênio que fez de Poe um verdadeiro herói literário, um herói que
conseguiu “criar uma vida total na arte como contraste aos conflitos e
frustrações da condição humana”.
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