Rafael
Cansinos Assens nasceu em Sevilha, Espanha, no dia 24 de novembro de 1882. Faleceu em Madrid, em 6
de julho de 1964.
"Morreu sem conhecer o mar, e apenas
deixou Madrid para visitar Toledo durante os 81 anos que durou sua vida....
criador de obras fundamentais como tradutor, ensaísta, contista e poeta... Tabicado
durante o franquismo, Cansinos Assens gozou, porém, do reconhecimento afetivo e
intelectual de seus colegas, com os quais manteve intensa correspondência, sendo
esta conservada num enorme arquivo que leva o seu nome. Um legado de incalculável
valor literário, que inclui o diálogo epistolar inédito com o argentino Jorge
Luis Borges, a quem conheceu no ano de 1920..." (Jornal "El
País", 11 de junho de 2009).
***
O conto, a seguir, é uma tradução para o
português, publicado na revista "America", em sua edição de outubro
de 1923. A pesquisa, a transcrição e a adaptação ortográfica é de Iba Mendes
(2016)
Aquela tarde
de domingo, Juanito, a pobre criança, o filho natural, que se criava entre
caras mal-humoradas como se recebesse a vida de esmola, contemplava, debruçado ao
parapeito da janela, o belo sol de junho, cuja flama, reverberando sobre a
parede fronteira, ornava-a de uma colgadura deslumbrante, mais brilhante do que
as que no dia do Corpus Christi adornam os balcões. Preso sempre em casa, o
pequeno olhava avidamente a rua em que brincavam os seus amiguinhos e
chamava-os com gritos alegres, semelhantes aos pios dos pássaros engaiolados
quando vêm outros pássaros livres. Estava contentíssimo porque naquela tarde a
sua mãe lhe prometera levá-lo a passeio, vestira-o com a sua roupinha mais nova
e lhe penteara os cabelos, repartindo-os lindamente ao centro. O padrinho prometera
vir buscá-los às cinco horas, quando a luz do sol é menos intensa e Juanito
estava ansioso por dar a notícia aos amiguinhos que nos outros domingos via sair
com os seus pais, vestidos elegantemente e carregados de brinquedos enquanto
que ele ficava em casa, à janela, entre as plantas dos vasos, como um pobre
canário triste...
— Pepito!
Luizinho! chamava, debruçado para a rua.
Os outros
respondiam, erguendo as cabeças e entrecerrando os olhos, porque estava tão
alto aquela janela de um terceiro andar...
— Que é?
— Vai sair?
— Vou!
— Eu também! Vou com a mamãe e o padrinho! Nós
vamos ao parque. E você?
Eu
também, respondia Juanito. E acrescentava: Lá nos encontraremos!
— Leva os
teus brinquedos! Nós vamos levar a pá e o arco.
— Bem. Lá
nos encontraremos!
Brincar
no parque! Inefável ilusão para Juanito, sempre preso em casa, a quem, quando
muito, consentiam que fosse brincar junto ao rio, onde não havia areia para
fazer castelos e onde as pedras impediam o rolar dos arcos! Brincar no parque!
Naquela tarde, finalmente, brincaria no parque, na areia extensa, à beira dos
lagos, na areia tão macia e doce à pele... Correria até perder-se pelas
alamedas ensombradas em que silvam melros e onde surgem cascatas imprevistas...
E Juanito
saltava de prazer e de impaciência, agarrado aos ferros da sacada, olhando uma
vez ou outra para o interior da casa, onde a mamãe, bela e jovem, acabava de se
preparar diante do espelho magicamente iluminado pelo seu rosto. Como a mamãe
custava a se vestir! E, principalmente, como custava a chegar o padrinho!
Inclinado
sobre a rua, Juanito via partirem os seus amigos, à mão das suas mamães, que,
na porta da rua, ainda lhes faziam uma última carícia para alisar-lhes os cabelos
ou ajustar-lhes os gorros de marinheiro, com largas fitas em que se lia um
nome. E eles partiam, dobravam a esquina, dirigindo-lhe ainda um olhar de
adeus, sem se atreverem a gritar-lhe, porque os intimidava a presença dos seus
pais sérios, circunspectos... Iam-se. E ele continuava na sacada, sem que a sua
mamãe, já pronta, lhe dissesse: Vamos, Juanito! e sem que o seu padrinho
viesse... Que havia sucedido? Ficaria ainda em casa, naquele domingo? E
Juanito, sem ânimo de interrogá-la, olhava timidamente a mamãe, que ia e vinha
nervosa diante do espelho.
De
repente ouviu gritos indignados e aflitos no interior da casa. A mamãe,
dirigindo-se à criada, exclamava:
— Também
hoje, não pode vir, não é? Está claro: tem que levar os outros...
E,
magoada e colérica, deixou-se cair sobre uma cadeira, e começou a arrancar
todos os seus enfeites, com gestos furiosos, desmanchando aquela figura de
mulher feliz que com tanta paciência compusera ao espelho para honrar o
domingo... E o espelho parecia absorver todas aquelas graças, devorando-as no
seu seio profundo. E ficava apenas uma mulher triste, mal vestida e
desgrenhada...
Juanito,
timidamente, deixou a janela e aproximou-se dela, rápido. Pressentia vagamente
um mistério de dor e de vergonha. Quis beijá-la, a fim de a consolar, mas
faltou-lhe a coragem. Eram tão duros, naquele momento os olhos maternos, tão
doces em outras ocasiões! Perguntou-lhe, medrosamente:
— Mamãe,
não saímos mais? O sol está desaparecendo...
Era
verdade. A luz do sol afastava-se, dissolvia-se sobre as estátuas de mármore
que fora, no ângulo da rua, sustinham a fachada de um edifício público.
A mãe,
furiosa, respondeu-lhe:
— Não,
não podemos sair. O padrinho não vem mais!
O padrinho!
Juanito ficou pensativo. Adivinhava vagamente.
— Mas
porque não saímos sós?
—
Deixa-me em paz, menino! Não vês que a tarde está feia?
O pequeno
olhou-a assombrado. Tarde feia?! Pois não brilhava ainda o sol?
Mas não
se animou a replicar. A tarde do domingo aparecia-lhe já desfeita como os
adornos que a mamãe atirara ao chão, como sombras prematuras. Os últimos
companheiros partiam.
— Não vem,
Juanito? gritaram-lhe.
Ele
respondeu-lhes:
— Não! A
tarde ficou feia.
E
tristemente viu-os afastarem-se. Iam cem os pais e as mães para o imenso parque
tentador. Juanito pensou: "É isso. Eles têm pai, eu só tenho um padrinho!"
E pela primeira vez atormentou-o o enigma daquele homem que só ia à casa de
visita, a que o haviam ensinado a chamar padrinho e que no entanto às vezes o
beijava com tanta ternura...
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