O Príncipe Feliz, de Oscar Wilde
Tradução publicada no jornal "A
Noite", em sua edição de 11 de novembro de 1941. Pesquisa, transcrição
e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2017)
No lugar mais alto da cidade, no topo de uma coluna imensa, erigira-se a estátua do Príncipe Feliz. Recobrira-se o corpo do mais fino ouro, os olhos eram duas safiras e, na espada, brilhava um volumoso rubi vermelho.
Era muito
admirada. "É bela como um cata-vento", exclamava maravilhado o prefeito,
querendo frisar a sua reputação de artista, "apesar de não ser útil...” acrescentou,
temendo que o acreditassem desprovido de senso prático, o que ele possuía em dose
elevada.
— Por que
não há de você ser parecido com o Príncipe Feliz? — dizia a mãe enternecida ao
filhinho que chorava, pedindo a lua. — Ele nunca tem sonhos impossíveis.
—
Gostaria de saber se alguém no mundo é feliz... — murmurou desapontado um
homem, ao contemplar a estátua maravilhosa.
— Parece
um anjo — dizem as crianças ao sair da catedral, nos seus mantos vermelhos e
impecáveis aventais brancos.
— Como
sabem? — indagou o professor de matemática —vocês nunca viram um anjo...
— Já
vimos, sim, em sonhos, responderam as crianças.
O professor assumiu um ar severo.
Não gostava de ver a fantasia entretendo a mente dos discípulos.
Uma noite
um passarinho voou pela cidade.
Havia
seis semanas seus companheiros tinham voado para o Egito, mas ele ficara, pois
se via enamorado de uma belíssima haste de "Reed" (planta delicada,
parente do bambu, que cresce nos países nórdicos, à beira dos rios).
Encontrara-a, na primavera, ao perseguir uma mariposa amarela e tão fascinado
ficara pela sua esbelta silhueta, que parara para falar-lhe.
— Posso namorá-la
— dissera, pois não gostava de perder tempo.
A maviosa "Reed" fizera-lhe então
uma linda reverência. Então ele voou à sua roda, a tocar a água com as asas,
provocando ondulações prateadas. Assim a cortejou durante todo o verão.
— É um
amor grotesco — comentaram os demais pássaros. — Ela não tem posses e o rio
está cheio delas.
E, com a chegada do outono, todos se foram.
Depois
que todos partiram, o nosso passarinho sentiu-se muito só e fatigava-se da
namorada.
— Ela não sabe conversar e é muito frívola. Está sempre namorando o
vento.
Realmente, toda a vez que o vento passava, a bela "Reed" fazia-lhe as
mais graciosas reverências.
—
...Reconheço que é boa dona de casa, continuou o passarinho, mas gosto de
viajar e minha mulher deveria acompanhar-me...
— Quer vir
comigo? — propôs finalmente à haste, mas esta recusou. Estava demasiado presa à
sua casa. — Você divertiu-se à minha custa — gritou indignado. — Vou partir para
as Pirâmides. Adeus!
Voou
durante toda a noite e afinal chegou à cidade.
— Onde poderei descansar? monologou. — Espero que alguém esteja preparado para receber-me.
Viu então
a estátua no alto da coluna.
— Ficarei
por aqui... É um belo lugar.... Posso respirar fundo.
E acomodou-se aos pés
do Príncipe Feliz.
— Tenho
um quarto todo de ouro — murmurou, preparando-se para dormir.
Quando ia meter a
cabacinha debaixo da asa, uma gota de água caiu-lhe em cima.
— Que coisa
esquisita! não há nuvens no céu, as estrelas fulgem e contudo está chovendo...
O clima no norte da Europa é diferente e horrível. A formosa "Reed" gostava da
chuva, parece-me que só por egoísmo.
Então,
outra gota caiu.
— Que
utilidade tem uma estátua, se nem me pode preservar da chuva? Preciso procurar
uma chaminé.
E resolveu ir-se embora.
— Quem é
você? — perguntou.
— Sou o
Príncipe Feliz.
— Por
que, então, está chorando? Quase me inundou...
— Quando
eu vivia e tinha um coração humano, respondeu a estátua, nunca soube o que fossem
lágrimas, porque morava no palácio Sans-Souci, onde a tristeza não tem licença
de entrar. Durante o dia jogava com os companheiros e à noite conduzia as danças.
Contornando o palácio havia um grande muro, mas nunca procurei saber o que
havia, o que poderia existir por detrás dele. Tudo o que me rodeava era belo e agradável.
Meus cortesões chamavam-me o Príncipe Feliz e eu o era, de fato, se é que o prazer
faz a felicidade. Assim vivi, assim morri. Agora, que estou morto, colocaram-me
tão alto que não posso enxergar a miséria do meu povo. Meu coração é de chumbo,
entretanto não faço mais que chorar.
— "Então ele
não é feito de ouro puro!" — pensou o passarinho, mas nada comentou, por ser bem
educado.
— Longe
daqui — continuou a estátua em voz cantante — numa pequena rua, há uma casinha
miserável. Nela trabalha uma pobre costureira. Muito pálida e exangue, está a
bordar flores no vestido de cetim, que a mais bela das damas de honra da rainha
deve usar no baile da corte. Seu filhinho está à morte e ela nada tem para
curá-lo. Passarinho, quer ser gentil e levar-lhe o rubi de minha espada? Estou
preso a este pedestal e não posso mover-me.
—
Esperam-me no Egito — respondeu o passarinho; meus companheiros já estão nessa
terra de maravilhas, preciso partir quanto antes.
—
Passarinho — disse o Príncipe — só uma noite e nada mais. Quer ser o meu mensageiro? O menino está doente e a mãe, coitadinha, tão cansada!...
— Não
aprecio crianças — respondeu o passarinho — costumam atirar-me pedras. Verdade é
que não me alcançam, pois sei voar muito alto. Mas, mesmo assim, é falta de
respeito.
O
Príncipe Feliz, entretanto, parecia tão triste, que o pássaro se comoveu.
— Faz
muito frio — disse — mas resolvi ficar e ser o seu mensageiro.
— Muito
obrigado, passarinho.
— Então a
avezinha, arrancando o rubi da espada, voou através da cidade. Observou muita
coisa no caminho e, finalmente, chegou à morada da costureira. A mulher trabalhava
e o menino doente gemia no leito. Deixou o rubi em cima da mesa, refrescou a
criança com o abanar das asas e partiu.
Voou ao
encontro do Príncipe Feliz e contou-lhe o que fizera.
— É curioso — acrescentou — como sinto calor agora.
— É porque
praticou uma boa ação — explicou-lhe o Príncipe.
Quando
amanheceu, o passarinho foi tomar banho no rio. Visitou os monumentos públicos
durante o dia e, à noite, resolveu partir. Quando a lua surgiu, voou para a
estátua do Príncipe Feliz.
— Tem
algum recado para o Egito? — perguntou. — Vou partir.
—
Passarinho — disse o Príncipe — podia ficar aqui mais uma noite?
—
Esperam-me no Egito! Lá estão as maravilhas; verei coisas extraordinárias.
—
Passarinho — insistiu o Príncipe — muito longe daqui, vejo um jovem trabalhando
num sótão. A mesa está coberta de papéis. Num copo, um ramalhete de violetas murchas.
Ele tenta terminar uma peça para o diretor do teatro. Mas a sua mão gelada
recusa-se a escrever. Não há fogo na lareira e ele quase morre de fome.
—
Esperarei mais uma noite — disse o generoso passarinho. — Devo levar-lhe outro
rubi?
—
Infelizmente já não possuo rubis, gemeu o Príncipe. Meus olhos são todo o meu
tesouro. São de preciosas safiras da Índia, trazidas há milhares de anos.
Tire-me uma delas e leve-a ao rapaz. Quando vendê-la, ele poderá aquecer-se e
terminar a peça.
— Meu
caro Príncipe, não posso fazer isso — disse o passarinho, começando a chorar.
—
Passarinho — disse-lhe o Príncipe — faça o que lhe digo.
Então o
passarinho tirou a safira e voou para a casa do estudante. Entrou facilmente,
por um buraco no telhado. O jovem não lhe ouviu o rumor de asas. Tinha as mãos
nos ouvidos. Ao erguer a cabeça, deu com a belíssima pedra entre as violetas
murchas.
— Começo
a ser apreciado — murmurou — isto, com certeza foi-me enviado por alguma admiradora.
Agora terminarei a minha peça.
Parecia
imensamente feliz.
Então o
passarinho decidiu-se partir definitivamente.
—
Passarinho — retrucou o Príncipe — quer estar comigo só mais uma noite?
— O
inverno aproxima-se e a neve não tardará. No Egito faz calor e um lindo sol
está à minha espera. Querido Príncipe, sou forçado a deixá-lo, mas nunca o
esquecerei. Na Primavera trarei joias maravilhosas para substituir as que
perdeu. O rubi será mais rubro que uma rosa vermelha e a safira mais azul que o
oceano.
— Vejo
daqui — disse o Príncipe — uma pequena vendedora de fósforos. Deixou-os cair na
rua e estragou-os todos. O pai, muito zangado, com certeza ralhará se ela não
levar algum dinheiro para casa. A coitadinha chora, em desespero. Tire-me a
outra safira dos olhos e leve-a para à pobre menina.
— Ficarei
contigo mais uma noite, mas não tirarei à outra safira. Não quero vê-lo cego.
—
Avezinha — suplicou o Príncipe — faça como lhe digo.
O
passarinho obedeceu; tirou a última safira dos olhos do Príncipe e colocou-a nas
mãos da vendedora de fósforos.
— Que lindo
vidro! — exclamou a menina encantada, encaminhando-se para casa.
O
passarinho regressou para junto do Príncipe e disse-lhe:
— Agora que está cego não quero deixá-lo mais.
— Não,
passarinho — replicou o Príncipe cego — você precisa é partir para o Egito.
—
Permanecerei a seu lado para sempre.
E dormiu a seus pés.
No dia
seguinte posou-lhe ao ombro e narrou-lhe lindas histórias de países estranhos.
Falou das aves do Nilo, da Esfinge que mora no deserto e sabe todas as coisas,
dos pigmeus que navegam em grandes folhas e guerreiam com as borboletas.
— Meu
querido passarinho, você contou-me coisas interessantes, mas há na vida algo de
muito mais sério: o sofrimento humano. Não há mistério maior do que a dor. Avezinha,
por favor, voe pela cidade e volte para dizer-me o que viu.
Então o
passarinho voou pela cidade e contemplou os ricos, felizes em suas lindas
vivendas, enquanto os mendigos imploravam esmolas pelas ruas. Viu crianças maltrapilhas
e esfomeadas. Entre elas, dois meninos tiritantes, sob o arco de uma ponte,
procurando se agasalhar; mas um guarda mandou-os embora e eles partiram sob a
chuva impiedosa.
O
passarinho, entristecido, voltou e descreveu tudo ao Príncipe.
— Sou
todo coberto de ouro, disse-lhe este. Quero que você reparta pedaço por pedaço
dele ao meu povo. Os homens julgam que o ouro pode torná-los felizes.
Pedaço
por pedaço, o ouro do Príncipe Feliz foi entregue ao povo. E as crianças
passaram a brincar, alegres e descuidadas.
Enquanto
isso, o Príncipe ia-se tornado escuro e cada vez mais feio.
E veio a
neve. E as ruas brilharam como se fossem de prata. E finas agulhas de cristal
adornaram as casas.
A pobre
avezinha estava quase gelada, mas não podia abandonar o Príncipe; amava-o demais.
Roubava migalhas aos padeiros e procurava aquecer-se, batendo as asas.
Finalmente,
sentindo que morria, pousou mais uma vez no ombro do amigo:
— Adeus, meu caro
Príncipe, posso beijar-lhe a mão?
— Alegra-me
saber que vai partir para o Egito — disse o Príncipe — mas beije-me os lábios, você
bem sabe que o quero muito.
— Não vou
para o Egito e sim para a morte. A morte é irmã do sono, não é verdade?
Assim
falando, beijou o Príncipe nos lábios e caiu morto a seus pés.
Nesse
momento ouviu-se um estranho ruído dentro da estátua. Como se alguma coisa
tivesse quebrado. E assim foi. O coração de chumbo partiu-se exatamente em dois
pedaços.
Na manhã
seguinte, o prefeito que passeava com os homens importantes da cidade, ao
passar pela estátua, exclamou:
— Meu Deus, como o Príncipe está feio!
— É mesmo! — concordaram os companheiros.
E subiram a ver a estátua de perto.
— O rubi
da espada desapareceu, os dois olhos de safira se foram e da coberta de ouro
nada mais resta — comentou o delegado. — Parece um mendigo...
— Parece
um mendigo... — observaram os outros em eco.
— Vejo um
Passarinho morto a seus pés — continuou o prefeito. — Precisamos baixar um
decreto proibindo que os pássaros morram em lugares assim.
E todos tomaram
nota da sugestão. E
resolveu-se derrubar a estátua do Príncipe Feliz.
— Se
perdeu a beleza, já não tem serventia — sentenciou o professor de arte da
Universidade.
Mandaram
derreter a estátua e convocaram uma assembleia para resolver o destino do
metal.
— Faremos
outra estátua — sugeriu o prefeito. — E por que não reproduzir a minha própria
imagem?
Mas os
outros protestaram, indignados. Todos se achavam dignos da mesma honra. E até
hoje estão brigando...
— Coisa
esquisita! — comentaram os operários na fundição. — Este coração de chumbo partido
ao meio, não derrete como o resto do metal. Só há um remédio, jogá-lo fora.
E
atiraram-no num monte de lixo, onde também jazia o cadáver do passarinho.
***
— Tragam-me
da terra duas coisas preciosas, disse o Todo-Poderoso aos seus anjos, no céu.
E estes
conduziram-lhe o coração de chumbo do Príncipe Feliz e o passarinho morto.
—
Escolheram bem — disse o Onipotente — pois o passarinho cantará eternamente nos
jardins do Paraíso e o Príncipe Feliz será aqui verdadeiramente feliz e abençoará
para sempre o meu nome, pelo que fez na terra.
Adoro esse conto. Lembro que na escola li um livro com essa e mais algumas histórias, mas não lembro o nome.
ResponderExcluirNáo lembrava o nome do conto...procurei estátua com olhos de pedras preciosas.Fiquei muito feliz em ter encontrado O Principe Feliz.Conto maravilhoso
ResponderExcluirEsse livro traz uma lembrança do meu falecido marido, lendo para nossos filhos dormi.
ResponderExcluirMuito linda essa história lembro da minha infância
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