Hiptálmica , de Horacio Quiroga.
Publicado originalmente no "Jornal das
Moças", em sua edição de 8 de abril de 1926. A pesquisa, transcrição e
adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
Levantei também
a vista e olhei. No havia nada. A parede estava lisa, fria e totalmente branca.
Só em
cima, perto do teto, estava obscurecida pela ausência de luz.
Outro,
por sua vez, ergueu os olhos e os manteve por um momento imóveis e bem abertos,
como quando se deseja dizer alguma coisa que não se sabe exprimir.
— Pa...
parede?... — perguntou depois.
Era uma
indicação estapafúrdia.
Isso sim,
torpeza e sonambulismo das ideias, quanto era possível.
— Não é
nada respondi — é a mancha hiptálmica.
— Mancha?...
— ...hiptálmica.
A mancha hiptálmica.
Este é o
meu quarto. Minha mulher dormia naquele lado... Que dor de cabeça!
Bem, estávamos
casados já há sete meses e anteontem ela morreu. Não é? É a mancha hiptálmica.
Uma noite minha mulher acordou sobressaltada.
— Que
tens? — perguntei-lhe inquieto.
— Que
sonho mais esquisito! — respondeu-me ainda angustiada.
— Que
era?
— Não
sei... Sei que era um drama, um assunto dramático... uma coisa obscura e profunda...
Horrível!
— Procura
lembrar-te por Deus! — instei com ela, vivamente interessado.
Os senhores
me conhecem como homem de teatro...
Minha
mulher fez um esforço.
— Não posso... Não me lembro de mais nada, a
não ser do título: A mancha tele... hita... hiptálmica! E tinha o rosto
amarrado com lenço branco.
—Que?!
— Um
lenço branco no rosto. A mancha hyptálmica.
— Esquisito!
— murmurei sem deter-me um segundo mais a pensar naquilo.
Mas dias
depois, minha mulher saiu do quarto com o rosto sombrio. Apenas a vi,
recordei-me imediatamente e percebi em seus olhos que ela também se recordara.
Ambos
soltamos gargalhadas.
— Ah! Ah!
— ria se ela. — Logo que coloquei o lenço, recordei-me...
— Um
duende?
— Não
sei, creio que sim...
Durante o
dia, gracejamos ainda com aquilo e à noite, enquanto minha mulher se despia, gritei-lhe
de repente da sala de jantar:
— Olha aí!
— Sim, a
mancha hiptálmica — respondeu-me rindo. Por minha vez, pus me a rir e, durante
quinze dias, vivemos em plena loucura de amor.
Depois
desse lapso de atordoamento, sobreveio um período de morosa inquietação, o surdo
e mútuo receio de um desgosto que não chegava e que se afogou, por fim, em explosões
de radiante e furioso amor.
Uma
tarde, três ou quatro horas depois de almoçar, minha mulher não me encontrando,
entrou em seu quarto e ficou surpresa ao ver os postigos fechados. Viu-me na
cama estendido como um morto.
— Frederico?
— gritou correndo para mim.
Não
respondi uma palavra nem me movi. E era ela, minha mulher, entendem?
— Deixa-me!
— desvencilhei-me com raiva, virando me para a parede.
Por um
instante não ouvi nada.
Depois,
sim: os soluços de minha mulher sob o lenço, mergulhado até o meio da boca.
Nessa
noite jantamos em silêncio. Não trocamos uma palavra, até que, às dez, minha mulher
me surpreendeu de cuecas, diante do guarda-roupa, dobrando com extremo cuidado,
prega por prega, um lenço branco.
— Mas
desgraçado! — exclamou desesperada, erguendo-me a cabeça. — Que fazes?
Era ela
minha mulher! Devolvi-lhe o abraço em plena boca.
— Que
fazia? — perguntei-lhe. — Procurava uma explicação justa para o que nos está acontecendo.
— Frederico...
meu amor — murmurou ela.
E a torrente
de loucura envolveu-nos novamente.
Da sala
de jantar, ouvi que ela, aqui mesmo, se despia. Com amor, perguntei:
— Aconteceu
alguma coisa?...
— Hiptálmica!
Hiptálmica! — respondeu rindo desnudando-se a toda pressa.
Quando
entrei, surpreendeu-me o silêncio considerável deste quarto. Aproximei-me sem
fazer ruído e olhei. Minha mulher estava deitada, a face intumescida e branca.
Tinha o
rosto envolto num lenço.
Debrucei-me
na beirada da cama e enclavinhei as mãos atrás da nuca.
Não havia
aqui qualquer ruído de roupa e nenhum estremecimento longínquo. Nada. A chama da
vela acendia como que aspirada pelo imenso silêncio.
Passaram-se
horas e horas. As paredes brancas e frias obscureciam-se até o teto...
Que era
isso? não sei...
E ergui
de novo os olhos. Os outros fizeram o mesmo e os mantiveram por dois ou três
segundos. Por fim, senti-os pesadamente fixos em mim.
— O senhor
nunca esteve em um manicômio? — perguntaram-me.
— Não,
que eu saiba... respondi.
— E em presídio?
— Também
não, até agora...
— Pois
tenha cuidado, porque vai acabar em um ou em outro.
— É possível...
É perfeitamente possível — retruquei procurando dominar minha confusão de ideias.
Saíram.
Estou
certo de que me foram denunciar e acabo de estender-me sobre um divã.
Como a
dor de cabeça continuasse, amarrei o rosto com um lenço branco
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