Belíssima
tradução de Justino Martins,
publicada originalmente na “Revista da Semana”, em sua edição de 24 de maio de
1947. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016).
O major, comandante prussiano, conde de Farlsberg, acabava de ler sua correspondência, recostado ao fundo de uma grande poltrona estofada e com as botas sobre o mármore elegante da lareira, onde as esporas, durante os três meses que ele ocupava o castelo de Uville, tinham traçado dois buracos profundos, cavados cada dia um pouco mais.
Uma taça
de café fumegava sobre uma jardineira de marchetaria manchada pelos licores,
queimada pelos charutos, entalhada pelo canivete do oficial conquistador que,
às vezes, detendo-se no apontar um lápis, traçava sobre o gracioso móvel monogramas
ou desenhos, ao capricho de sua imaginação indolente.
Quando
acabou de ler as cartas e percorreu os jornais alemães que seu ordenança lhe
trouxera, ergueu-se e, após lançar ao fogo três ou quatro enormes achas de lenha
verde, pois que seus homens abatiam aos poucos o parque para se aquecer,
aproximou-se da janela.
A chuva
caia em bátegas, uma chuva normanda que se diria lançada por uma mão furiosa,
uma chuva oblíqua, espessa como uma cortina que formava uma espécie de parede
de raias enviesadas, uma chuva que açoitava, que salpicava lama, que inundava
tudo, uma verdadeira chuva dos arredores de Ruão, esse vaso noturno da França.
O oficial
olhou por muito tempo os campos inundados, e, lá adiante, o Andelle intumescido
que transbordava; tamborilava contra a vidraça uma valsa do Reno, quando um ruído
o fez voltar-se: era o ajudante, o barão de Kelweingstein, que tinha um posto
equivalente ao de capitão.
O major
era um gigante, largo de espáduas, adornado por uma longa barba em leque, como
um guardanapo sobre o peito. E toda a sua grande figura dava a ideia de um
pavão militar, um pavão que levasse a cauda desfraldada no queixo. Tinha olhos
azuis, frios e suaves, uma cicatriz de cutilada na face, recebida na guerra da Áustria;
e diziam-no tão reto homem como bravo soldado.
O
capitão, um homenzinho corado e obeso, cinchado à força, usava quase à escovinha
o cabelo avermelhado, cujos fios de fogo davam a impressão, quando se encontravam
sob certos reflexos, de que seu crânio estivesse coberto de fósforo. Dois
dentes perdidos numa noite de farra, sem que ele se recordasse, ao certo, de
que modo, faziam-no cuspir palavras mal pronunciadas, nem sempre compreensíveis.
Era calvo apenas no alto do crânio, tonsurado como um frade, com um tosão de cabelinhos
anelados, dourados, dourados e brilhantes, em torno àquele círculo de carne nua.
O
comandante apertou-lhe a mão e sorveu de um trago a taça de café (a sexta desde
a manhã) ouvindo o relatório de seu subordinado sobre os incidentes ocorridos
no serviço; em seguida, ambos se aproximaram da janela, concordando que aquilo
não era divertido. O major, homem tranquilo, casado, se conformava com tudo;
mas o capitão, usufruidor da vida, frequentador de lupanares e furioso conquistador
irritava-se de estar encerrado havia três meses na castidade obrigatória daquela
posição perdida.
Como
arranhassem à porta, o comandante gritou que abrissem, e um homem, um dos seus
soldados autômatos, apareceu no vão, anunciando, apenas com sua presença, que o
almoço estava pronto.
Na sala,
encontraram os três oficiais de posto inferior: um tenente, Otto de Grossling;
dois subtenentes, Fritz Scheunauburg e o marquês Wilhelm d’Eyrick, um loirinho
orgulhoso e brutal para com os soldados, duro com os vencidos e violento como
uma arma de fogo.
Após sua
entrada na França, os colegas passaram a chamar-lhe Mademoiselle Fifi. Este apelido
lhe vinha do jeito requebrado, do talhe esbelto que parecia cingido num espartilho,
do rosto pálido no qual um incipiente bigode mal aparecia, e, também, do hábito
que ele tinha, para exprimir seu soberano desprezo dos seres e das coisas, de
empregar a todo instante a locução francesa — fi, fi, donc, que pronunciava com um leve sibilo.
A sala de
jantar do castelo de Uville era uma longa e suntuosa peça, cujos espelhos de
cristal antigo, estrelados por balas, e as pesadas tapeçarias de Flandres, retalhadas
a golpe de sabre e pendentes em certos lugares, denunciavam as ocupações de Mademoiselle
Fifi em suas horas de desfastio.
Nas
paredes, três retratos de família, um guerreiro de armadura, um cardeal e um
presidente fumavam longos cachimbos de porcelana, enquanto que, em sua moldura
desdourada pelos anos, uma nobre dama de colo espartilhado mostrava num ar
arrogante um enorme par de bigodes feito a carvão.
E o almoço
dos oficiais transcorreu quase em silêncio naquela peça mutilada, ensombrecida
pela chuva, com seu triste aspecto vencido, e onde o velho assoalho de carvalho
se tornara sólido como um chão de taberna.
À hora do
fumo, quando começaram a beber, tendo terminado a refeição, ficaram, como todos
os dias, a falar da monotonia em que viviam. As garrafas de conhaque e de licores
passavam de mão em mão; e, todos, derribados sobre as cadeiras, bebiam a
pequenos goles repetidos, conservando ao canto da boca o comprido canudo curvo
que terminava em ovo de faiança, sempre pintado como para seduzir hotentotes.
Quando o
copo esvaziava, tornavam a enchê-lo com um gesto de lassidão resignada. Mas Mademoiselle
Fifi quebrava o seu a todo instante, e um soldado logo lhe estendia outro.
Uma
cerração de fumo acre os afogava, e ele parecia engolfar-se numa borracheira
amodorrada e triste, nessa melancólica embriaguez dos que nada têm a fazer.
Mas o
barão, repentinamente, se aprumou. Uma revolta o sacudiu; ele protestou:
— Por Deus! Isto não pode continuar, é preciso
inventar alguma coisa, afinal de contas.
O tenente
Otto e o subtenente Fritz, dois oficiais de rudes e graves fisionomias,
marcadamente germânicas, responderam a um tempo:
—
Inventar o que, capitão?
Ele
refletiu alguns segundos, depois continuou:
— O quê?
Ah, bem, é preciso organizar uma festa, se o comandante o permitir.
O major
largou o cachimbo:
— Que
festa, capitão?
O barão
se aproximou:
— Eu me encarrego
de tudo, comandante. Enviarei o Dever a Ruão para nos trazer mulheres; sei onde
arranjá-las. Prepare-se aqui uma ceia; aliás, não falta coisa alguma, e, pelo
menos, passaremos uma boa noitada.
O conde
de Farlsberg alçou os ombros, sorrindo:
— Você
está louco, meu amigo.
Mas todos
os oficiais se haviam erguido, cercando o chefe e suplicando:
—
Permita, comandante, isto aqui é tão triste.
Afinal, o
major cedeu: “Está bem”, disse ele; e, em seguida, o barão mandou chamar o
Dever. Este era um velho suboficial que ninguém jamais tinha visto sorrir, mas
que cumpria fanaticamente todas as ordens de seus superiores, quaisquer que fossem.
Perfilado,
com o rosto impassível, recebeu as instruções do barão; em seguida saiu, e,
cinco minutos depois, um grande carro do trem militar, coberto por uma tolda de
lona estendida em cúpula, abalava sob a chuva furiosa, ao galope de quatro
cavalos.
Logo um
frêmito de alerta pareceu percorrer os espíritos. As posições de abandono se
corrigiram, os rostos se animaram e iniciou-se uma palestra.
Se bem
que a chuva continuasse com a mesma fúria, o major afirmou que estava menos
sombrio, e o tenente Otto anunciava, convicto, que o céu ia clarear. Nem mesmo Mademoiselle
Fifi parecia ter sossego. Erguia-se e tornava a sentar-se. Seu olhar claro e
agudo procurava algo para quebrar. De repente, fixando a dama dos bigodes, o
loirinho sacou do revólver. “Não assistirás a isso”, disse; e, sem abandonar a
poltrona, mirou. Duas balas furaram os olhos do retrato.
Em
seguida, exclamou:
— Façamos
a mina!
E,
repentinamente, a palestra foi interrompida, como se todos tivessem sido tomados
por um poderoso e novo interesse.
A mina
era um invento seu, sua maneira de destruir, seu divertimento preferido.
Ao
abandonar o castelo, o proprietário legítimo, o conde Fernand d’Amoys d’Uville,
não tivera tempo de levar nem de ocultar nada, salvo a prataria escondida no
buraco de uma parede. Ora, como ele fosse muito rico e suntuoso, o seu grande
salão, cuja porta abria para a sala de jantar, apresentava, antes da fuga
precipitada do dono, o aspecto de uma galeria de museu.
Das
paredes pendiam telas, desenhos e aquarelas de preço, enquanto que sobre os
móveis, os aparadores, e nos armários elegantes, mil bibelôs, vasos de porcelana,
estatuetas, figurinhas de Saxe e bonecos da China, marfins antigos e cristais
de Veneza, povoavam o vasto compartimento com sua multidão preciosa e extravagante.
Pouco
restava agora. Não que alguém houvesse roubado; o major, conde de Farlsberg,
absolutamente não o teria permitido; mas Mademoiselle Fifi, de vez em quando,
armava a mina. E, todos os oficiais, nesse dia, se divertiam, de fato, durante cinco
minutos.
O jovem
marquês foi buscar no salão o que precisava. Trouxe um pequenino bule da China,
cor de rosa, encheu-o com pólvora de canhão, e, pelo bico, introduziu delicadamente
um longo pedaço de estopim, acendeu-o e correu a colocar essa máquina infernal
no compartimento vizinho.
Depois,
voltou depressa, fechando a porta. Os alemães aguardavam, de pé, sorridentes,
com uma curiosidade infantil na fisionomia; e, logo que a explosão estremeceu o
castelo, eles se precipitaram juntos.
Mademoiselle
Fifi, que entrara na frente, batia palmas delirantemente diante de uma Vênus de
terracota cuja cabeça afinal saltara; e cada um deles juntava pedaços de porcelana,
maravilhando-se com os recortes estranhos dos cacos, examinando os novos
estragos, contestando alguns outros como produzidos pela explosão anterior. E o
major observava com ar paternal o vasto salão destruído por esse divertimento à
maneira de Nero, polvilhado de destroços de objetos artísticos. Retirou-se em
primeiro lugar, declarando com bonomia: “Esta, sim, foi boa”.
Mas tal
onda de fumaça invadira a sala de jantar, misturando-se com a do fumo, que não
se podia mais respirar. O comandante abriu a janela, e os oficiais, voltando
para beberem um último copo de conhaque, se aproximaram.
O ar úmido engolfou-se na peça, trazendo um
cheiro de inundação e espécie de poeira d’água que pulverizava as barbas. Eles
olhavam as grandes árvores vergadas sob a chuva, o amplo vale obscurecido por
aquele aluvião de nuvens sombrias e baixas, e, muito ao longe, o campanário da
igreja, ereto como uma ponta cinzenta na chuva torrencial.
Desde a
chegada deles que o sino da igreja não tocava. Era, afinal, a única resistência
que os invasores tinham encontrado nos arredores: o sino. O vigário absolutamente
não recusara a receber e a alimentar os soldados prussianos; diversas vezes,
até, aceitara beber uma garrafa de cerveja ou de Bordéus com o comandante
inimigo, que o utilizava seguidamente, como intermediário benévolo; mas era
inútil pedir-lhe um único tinido do seu sino; ele preferia ser fuzilado. Essa
era a sua maneira de protestar contra invasão, protesto pacífico, protesto do silêncio,
o único, dizia ele, que convinha ao padre, homem de doçura e não de sangue. E
todos, por dez léguas em derredor, exaltavam a firmeza, o heroísmo do padre Chantavoine,
que ousava afirmar o luto público e proclamá-lo pelo mutismo obstinado de sua
igreja.
A povoação
inteira, entusiasmada com tal resistência prontifica-se a apoiar até o fim o
seu pastor, a desafiar tudo, considerando esse protesto tácito como a
salvaguarda da honra nacional. Parecia aos camponeses que, dessa forma, melhor
faziam jus à gratidão da pátria do que Belfort e Strasbourg, e que davam um
exemplo equivalente, imortalizando o nome do lugarejo; exceto isso, nada mais
recusavam aos prussianos vencedores.
O
comandante e seus oficiais riam dessa coragem inofensiva; e, como toda a região
se mostrasse submissa e obediente, toleravam de bom grado aquele mudo patriotismo.
Só o
jovem marquês Wilhelm desejaria forçar o sino a bater. Desesperava-o a condescendência
política do seu superior para com o padre; e todos os dias suplicava ao
comandante que o deixasse fazer “Dim-dom-dom”, uma vez, uma única vezinha, para
apenas rir um pouco. E pedia isso com graças felinas, com requebros femininos,
com doçuras de voz de uma amante torturada por um desejo; mas o comandante não cedia
e Mademoiselle Fifi, para se consolar, fazia a “mina” no castelo d’Uville.
Os cinco
homens ficaram ali, juntos, alguns minutos, aspirando a umidade. O tenente
Fritz, finalmente, disse com um riso pastoso:
— Aquelas
senhorritas, tecitidamente, nom terron pom tempo para sua passeio.
Em
seguida se separaram, cada um para o seu serviço, e o capitão com muito que
fazer para os preparativos do jantar.
Quando se
encontraram de novo, ao cair da noite, puseram-se a rir ao ver-se tão
elegantes, perfumados e untados como nos dias de parada. Os cabelos do comandante
pareciam menos grisalhos que pela manhã; e o capitão se barbeara, conservando
apenas o bigode, como uma chama sob o nariz.
Apesar da
chuva, deixaram a janela aberta; e um deles, às vezes, ia escutar. Às seis
horas e dez minutos, o barão percebeu um rodar longínquo. Todos se precipitaram;
e, logo, o grande carro se aproximou com seus quatro cavalos sempre a galope,
enlameados até o lombo, esbaforidos e resfolegantes.
Cinco mulheres
desceram pela escada, cinco belas raparigas escolhidas cuidadosamente por um camarada
do capitão a quem o “Dever” levara um cartão dele.
Elas não
se tinham feito rogar, certas de ser bem pagas, conhecedoras que eram dos
prussianos, naqueles três meses que os vinham tenteando, no empenho de tirar
partido dos homens como das coisas. São “exigências do negócio”. Diziam consigo
em caminho, como resposta a alguma agulhada secreta de um resto de consciência.
E
imediatamente entraram na sala de jantar. Iluminada, parecia ainda mais lúgubre
na sua lastimável desordem; e mesa coberta de carnes, de baixela rica e da
prataria encontrada na parede onde a escondera o proprietário, dava a esse
lugar o aspecto de uma taverna de bandidos que ceassem após uma pilhagem. O
capitão, radiante, apossou-se das raparigas como de uma coisa familiar, abraçando-as,
apalpando-as, farejando-as, calculando-lhes o valor como vendedoras de prazer.
E, como três jovens quisessem ficar cada qual com uma, ele se opôs a isso com
autoridade, reservando-se o direito de fazer a partilha com toda a justiça, de acordo
com os postos, para não ferir a hierarquia.
Então, a fim
de evitar qualquer discussão, qualquer reclamação, ou suspeita de parcialidade,
alinhou-as por ordem de altura, e dirigindo-se à maior, disse, em tom de
comando
— Teu
nome?
Ela
respondeu, engrossando a voz:
— Pamela.
Então,
ele proclamou:
A número
um, a chamada Pamela, tocará ao comandante.
Beijando,
em seguida, Blondine, a segunda, em sinal de posse, ofereceu a gorda Amanda ao
tenente Otto, a Eva “Tomate” ao subtenente Fritz, e a menor de todas, Rachel,
uma morena muito jovem de olhos negros como borrões de tinta, uma judia cujo
nariz adunco confirmava a regra que caracteriza a sua raça, ao mais jovem dos
oficiais, ao frágil marquês Wilhelm d’Eyrik.
Todas,
aliás, eram bonitas e gordas, mais ou menos parecidas, assemelhando-se em tudo
pela prática quotidiana do amor e a promiscuidade das casas públicas.
Os três
rapazes pretendiam logo carregar suas mulheres, sob o pretexto de lhes oferecer
escovas e sabão para se lavarem; mas o capitão se opôs a isso prudentemente,
afirmando que elas estavam bastante limpas para sentar à mesa e que aqueles que
subissem quereriam trocar ou descer, perturbando os outros pares. Sua
experiência prevaleceu. Houve, então, apenas muitos beijos, beijos de
expectativa.
Súbito,
Rachel sufocou, tossindo até às lágrimas e expirando fumaça pelas narinas. O
marquês, sob o pretexto de beijá-la, acabava de soprar-lhe um jato de fumo na
boca. Ela não se zangou, não disse uma única palavra, mas fixou seu possuidor
com uma cólera acesa no fundo do olhar negro.
Sentaram.
O próprio comandante parecia encantado; colocou Pamela à sua direita, Blondine
à esquerda e declarou, desdobrando o guardanapo:
— Você
teve uma ideia encantadora, capitão.
Os
tenentes Otto e Fritz, polidos como se estivessem ao lado de senhoras, intimidavam
um pouco suas companheiras; mas o barão de Kelweingstein, entregando-se ao seu
prazer predileto, brilhava, dizia frases picantes, parecia incendiado com sua
coroa de cabelos vermelhos. Galanteava em francês do Reno; e suas cortesias de
taberna, expectoradas pelo buraco dos dois dentes quebrados, chegavam às
raparigas em meio de uma metralha de saliva.
Elas,
entretanto, não compreendiam coisa alguma; e sua inteligência só pareceu
despertar quando ele cuspiu palavras obscenas, expressões cruas, estropiadas
pelo sotaque. Então, todas ao mesmo tempo, começaram a rir como loucas, caindo
sobre o ventre dos companheiros, repetindo os termos que o barão começou a
deturpar propositadamente para fazê-las dizer torpezas. Elas as vomitavam à
vontade, embriagadas desde as primeiras garrafas de vinho: e, voltando ao que
eram, expandindo-se, beijavam os bigodes da direita e os da esquerda,
beliscavam os braços, lançavam gritos furiosos, bebiam em todos os copos,
cantavam coplas francesas e trechos de canções alemãs aprendidas nas suas relações
quotidianas com o inimigo.
Logo, os
próprios homens, embriagados por aquela carne de mulher exposta ante o seu
nariz e às suas mãos, exaltavam-se, berrando, quebrando a baixela, enquanto,
atrás deles, os soldados, impassíveis, os serviam.
Só o
comandante guardava compostura.
Mademoiselle
Fifi colocara Rachel sobre os joelhos e, animando-se a frio, ora beijava
loucamente os crespinhos de ébano do seu pescoço, aspirando o doce calor do corpo
e toda a fragrância de sua pessoa, pelo pequeno espaço entre a pele e o
vestido; ora através da roupa, beliscava-a furiosamente, fazendo-a gritar,
tomado de uma ferocidade raivosa, dominado pela sua necessidade de destruição.
Outras vezes, também, tomando-a nos braços, apertando-a como se quisesse confundi-la
consigo próprio, apoiava longamente os lábios sobre a boca fresca da judia e a beijava
até perder o fôlego. Mas, de repente, mordeu-a com tanta força que um filete de
sangue desceu sob o queixo dela e caiu no corpinho,
Ainda uma
vez a rapariga o encarou e, limpando o ferimento, murmurou:
— Isto se
paga.
El
começou a rir, um riso cruel. E disse:
— Eu
pagarei!
Chegava-se
à sobremesa; enchiam as taças do champanhe. O comandante ergueu-se e, no mesmo
tom em que saudaria a imperatriz Augusta, brindou:
— As
nossas damas!
E começou
uma série de brindes, brindes duma galanteria de soldados e de borrachos, de
mistura com gracejos obscenos, tornados mais estúpidos ainda pela ignorância do
idioma.
Erguiam-se
um após outro procurando espírito, esforçando-se por parecerem engraçados; e as
mulheres, cambaleantes, de olhos vagos, os lábios pastosos, aplaudiam freneticamente.
O capitão,
sem dúvida, querendo dar à orgia um ar galante, ergueu ainda uma vez o copo, e
disse:
— As
nossas vitórias sobre os corações!
Então, o
tenente Otto, espécie de urso da Floresta Negra, aprumou-se, inflamado,
saturado de bebidas. E, tomado repentinamente de um patriotismo alcoólico,
gritou:
— Às
nossas vitórias sobre a França!
Embora
embriagadas, às mulheres calaram-se; e Rachel, trêmula, voltou-se:
— Fica
sabendo que eu conheço franceses diante de quem não dirias isso.
Mas o marquesinho,
mantendo-a ainda nos joelhos, pôs-se a rir, muito alegrado com o champanhe:
— Ah! Ah!
Ah! Desses eu nunca vi. Sempre que aparecemos eles mandam pernas!
A
rapariga, exasperada, gritou-lhe no rosto:
— Estás
mentindo, sem vergonha!
Durante
um segundo, ele fixou nela seus olhos claros, como os fixava nos quadros quando
lhes furava a tela a tiros. Depois, desatou a rir:
— Ah! não
digas isso, beleza. Estaríamos aqui, se eles fossem valentes? — E, animando-se:
— Nós somos os donos! A nós a França.
Ela
saltou dos seus joelhos para a cadeira. Ele levantou-se, espichou o copo até o
centro da mesa e repetiu:
— A
França e os franceses, os bosques, os campos e as casas, tudo é nosso!
Os outros,
completamente embriagados, sacudidos de súbito por um entusiasmo militar, um
entusiasmo de brutos, agarraram os copos, vociferando: “Viva a Prússia!” e os
esvaziaram de um só trago.
As
mulheres, reduzidas ao silêncio e cheias de medo, não protestavam. A própria
Rachel se calava, impotente para responder.
Então, o
marquesinho colocou sobre a cabeça da judia a sua taça novamente cheia de
champanhe.
— A nós
também — gritou — todas as mulheres de França!
Ela se
ergueu tão depressa que o cristal, virando, despejou, como num batismo, o vinho
flavo nos seus cabelos negros, e espatifou-se no solo. De lábios trêmulos,
Rachel desafiava com os olhos o oficial que continuava a rir. E ela balbuciou,
numa voz estrangulada pela cólera:
— Não,
não, não, isso não é verdade; não terão as mulheres da França.
Ele sentou-se
para rir à vontade e, procurando o tom parisiense:
— Esta é
pem poa, pem poa; que vieste facer aqui, entom, menina?
Atônita,
Rachel calou-se a princípio, sem compreender bem na sua perturbação; mas logo
que percebeu o que ele dizia, lançou-lhe indignada e com veemência:
— Eu! Eu!
Eu não sou uma mulher, sou uma prostituta: e é só isso que merecem os
prussianos!
Rachel
ainda não terminara e já ele começara a esbofeteá-la violentamente, mas, como
erguesse ainda uma vez a mão, ela, desvairada de raiva, tomou de sobre a mesa
uma faquinha de prata para doces e, tão rapidamente que nada se viu de início,
cravou-lhe a faca no pescoço, justamente na concavidade onde começa o peito.
Uma
palavra que ele pronunciava lhe foi cortada na garganta; e ele ficou do boca-aberta,
com um olhar horrível.
Todos
lançaram um grito e se ergueram em tumulto. Mas, tendo jogado a sua cadeira nas
pernas do tenente Otto, que desabou de todo o comprimento, ela correu à janela,
abriu-a antes que alguém tivesse podido segurá-la, e lançou-se na escuridão da
noite, sob a chuva que continuava a cair.
Em dois
minutos, Mademoiselle Fifi morreu. Então, Fritz e Otto desembainharam as espadas
e quiseram massacrar as mulheres que se arrastavam aos seus joelhos.
O major,
não sem dificuldade, impediu esse morticínio e mandou encerrar num quarto, sob
a guarda de dois homens, as quatro mulheres aterrorizadas; em seguida, como se
estivesse dispondo seus soldados para um combate, organizou a perseguição da
fugitiva, certo de alcançá-la.
Cinquenta
homens, cobertos de amaças, foram lançados no parque. Duzentos outros
revistaram os bosques e todas as casas do vale.
A mesa,
desguarnecida num instante, servia, agora de leito mortuário, e os quatro
oficiais, rígidos, curados da bebedeira, com o rosto endurecido de homens de
guerra em atividade, permaneciam perfilados junto às janelas, sondando a noite.
A chuva
torrencial continuava. Enchia as trevas um marulho contínuo, um inquieto
murmúrio de água que cai e de água que corre, de água que goteja e de água que
salta.
Súbito,
um tiro ecoou, seguindo-se um outro ao longe; e, durante quatro horas, se
ouviram, de tempos em tempos, detonações próximas ou longínquas e gritos da
soldadesca, palavras estranhas lançadas, como apelos, por vozes guturais.
Ao
amanhecer, todos retornaram. Dois soldados tinham sido mortos, e três outros
feridos por seus colegas no ardor da caça e na fúria daquela perseguição noturna.
Ninguém
havia encontrado Rachel.
Então, os
habitantes foram aterrorizados, suas casas reviradas, toda a região percorrida,
batida, revolvida. A judia não parecia ter deixado um único vestígio de sua
passagem.
O
general, avisado, ordenou que se abafasse o caso, para não dar mau exemplo ao
exército, e castigou com uma pena disciplinar ao comandante, que não puniu seus
inferiores. O general dissera: “Ninguém faz guerra para se divertir e meter-se
com mulheres da vida”. E o conde do Falsberg, exasperado, resolveu vingar-se sobre
a região.
Como
necessitasse de um pretexto para agir sem constrangimento, mandou chamar o cura
e lhe ordenou bater o sino para o enterro do marquês d’Eyrik.
Contra toda
expectativa, o padre mostrou-se dócil, humilde, atencioso. E quando o corpo de Mademoiselle
Fifi, levado por soldados, precedido, cercado, seguido de soldados que
marchavam de fuzil carregado, deixou o castelo de Uville, dirigindo-se para o
cemitério, pela primeira vez o sino tocou seu dobre fúnebre num compasso
alegre, como se uma mão amiga o acariciasse.
Ele tocou
ainda à noite, e na manhã seguinte também, e todos os dias; carrilhonou tanto
quanto queriam. Às vezes, mesmo, durante a noite, começava a se agitar sozinho
e atirava docemente dois ou três sons na sombra, tomado de alegrias singulares,
despertado sem se saber por que. Todos os camponeses do local disseram-no então
enfeitiçado e ninguém mais, salvo o padre e o sacristão, se aproximava da
torre.
É que uma
pobre rapariga vivia lá em cima, na angústia e na solidão, alimentada às escondidas
por aqueles dois homens.
Ela
permaneceu ali até a partida das tropas alemãs. Depois, uma noite, o padre,
tendo pedido emprestada a carroça do padeiro, conduziu ele próprio sua prisioneira
até a porta de Ruão. Ali chegado, o padre abraçou-a; ela desceu e retomou, às pressas,
o caminho da pensão de mulheres, cuja proprietária a acreditava morta.
Dali foi
tirada algum tempo depois, por um patriota sem preconceitos que a amou por sua
bela ação; mais tarde, tendo gostado dela por si mesma, desposou-a, tornando-a
uma senhora tão boa como muitas outras.
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