Os dois presos, de Guy Maupassant
Publicado
originalmente na revista "Fon-Fon", em sua edição de 21 de março de
1925. A Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
O alcaide ia já sentar-se à mesa para o almoço, quando lhe disseram que um guarda rural o esperava com dois presos.
Ao chegar à
sua sala de despacho, viu um guarda que acompanhava, com ar severo, um homem e
uma mulher, ambos já de idade avançada.
A autoridade
municipal perguntou a seu subordinado:
— Que
ocorreu, Hochedur?
O guarda
prestou a sua declaração.
Tinha saído
pela manhã a fim de inspecionar as cercanias do bosque Champioux até a
fronteira de Argenteuil.
E nada
particular havia notado no campo, quando um menino lhe gritou:
— Corra, vá
depressa até a direita, que lá encontrará a afagar-se publicamente um casal de
namorados, cuja idade, somada, naturalmente dará mais de cento e vinte anos.
O guarda
tomou a direção indicada, e, ao penetrar no bosque, surpreendeu os detidos
precisamente no momento em que se beijavam e se abraçavam com desmedida
ternura.
O alcaide
contemplou com surpresa os culpados, e começou o seu interrogatório pelo homem,
cuja idade passava dos sessenta anos.
— Seu nome?
— Nícolas
Beurian.
— Sua
profissão?
—
Comerciante; rua dos Mártires, Paris.
— E o que
fazia o senhor no bosque?
— Senhor...
— Nega
senhor o que disse o guarda?
— De modo
algum.
— O que tem
a alegar em sua defesa?
— Nada,
senhor.
— Onde
encontrou a sua cúmplice?
— Ela é
minha mulher.
— Sua
mulher?!
— Sim,
senhor.
— Estão
divorciados, então?
— Pelo contrário,
vivemos juntos e nos queremos entranhadamente.
— Neste
caso, terá, porventura, enlouquecido? Com certeza.
Nícolas
Beurian desatou a chorar como um menino. E, dirigindo-se a sua mulher,
exclamou:
— Estás
vendo as consequências de tua maldita poesia?! Teremos, agora, que suportar o
escândalo e nos veremos obrigados a fechar as portas do nosso estabelecimento
comercial.
Madame
Beurian levantou-se e, sem olhar o seu marido, disse, cem decisão:
— Já sei,
senhor alcaide, que estamos em ridícula situação. Porém, se o senhor estiver
disposto a ouvir-me com resignação, acabará se convencendo da nossa real
inocência.
Quando eu
era jovem ainda, conheci Nícolas Beurian, neste país, um domingo, durante uma
partida de campo a que, em companhia de várias amiguinhas, fora assistir.
Ao cabo de
um mês, nos casamos e nos dedicamos, desde então, a trabalhar, como condenados
em nosso estabelecimento, na rua dos Mártires.
Empenhados
exclusivamente a fazer prosperar o nosso negócio, tivemos que renunciar ao
prazer de ir, pelos domingos, ao campo, a ponto de chegarmos a perder o costume
de sair de Paris, sob qualquer pretexto. No comércio, a gente pensa mais no
caixa do que nas flores e nos bosques.
Assim, fomos
envelhecendo, pouco a pouco, sem notá-lo, como criaturas indiferentes que
deixassem de pensar em seus antigos amores.
Depois,
mudaram as coisas, e prosperaram de tal maneira os nossos negócios, que
chegamos a realizar, em breve tempo, fortuna bem razoável.
Nossa
situação nos permitia certos luxos, e revivi primitivas afeições ao campo, às
árvores e às flores.
O odor das
violetas me perseguia com insistência e me fazia bater o coração de um modo
extraordinário.
Tudo isto me
parecia estúpido para uma pessoa de minha idade. Porém, que quer o senhor, seu
alcaide? Quando uma pessoa trabalhou durante toda a sua vida, chega a um
momento em que sente a necessidade de modificar, em certos aspectos, a
existência sufocante, e eis que lhe voltam os bons tempos da mocidade
longínqua. Imagine, senhor alcaide, que durante vinte e cinco anos estivemos
permanentemente em Paris, sem sair um só dia da grande capital.
A princípio,
não me atrevia a falar das minhas aspirações ao meu marido, certa como estava
eu de que ele havia de caçoar de mim e de rir-se dos meus poéticos planos.
Mas, afinal,
me decidi e lhe propus uma excursão ao campo, ao lugar precisamente onde
havíamos tido a sorte de outrora nos conhecer.
Com grande
surpresa da minha parte, o esposo amado aceitou a proposta, e aqui nos tem o
senhor, seu alcaide, nesta comarca, aonde chegamos pelas nove horas da manhã de
hoje.
O coração da
mulher não envelhece nunca, e por isso eu me senti assaltada pela recordação de
meus primeiros amores.
Não via meu
marido tal como ele é na atualidade, sim como o via em outros tempos. Juro-lhe,
senhor alcaide, que estou falando a verdade.
Dei-lhe um
beijo e o estreitei-o nos meus braços, o que lhe causou tanta surpresa, que a
expressão do seu rosto era a de um individuo cuja vida alguém tentasse
extinguir, assassinando-o.
"Terás,
por acaso, enlouquecido?!" — dizia-me Beurian. "Que tens,
mulher?"
Eu não fazia
caso das suas palavras, e só escutava a ternura do meu coração.
Sentamo-nos,
os dois, em uma pedra, e lá, quando estávamos unidos em estreito abraço, nos
surpreendeu o guarda.
Eis aí tudo
quanto ocorreu, senhor alcaide. Nada mais.
Juro-lhe que
esta é toda a verdade.
O alcaide,
que era um homem prático e conhecedor do mundo, levantou-se, sorriu
benevolamente e disse:
— Pode ir
com Deus, senhora. Mas, procure, daqui em diante, moderar os seus impulsos
poéticos, sobretudo durante as suas excursões pelo campo.
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