O destino do capitão Sharkey, de Conan Doyle
Publicado originalmente na revista "Eu Sei Tudo", edição de agosto de 1923. A Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
Publicado originalmente na revista "Eu Sei Tudo", edição de agosto de 1923. A Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
Sharkey, o temível Sharkey, que durante dois anos assolara o litoral do Caromandel, voltava a sua existência de feroz pirataria e andava agora ao largo da América Espanhola com um navio gótico, o “Feliz Liberdade”. Pescadores ou mercantes todos fugiam ao avistar o velame remendado do pirata no mar dos trópicos.
Alguns só se
arriscavam pelo oceano, costeando o litoral, prestes a buscar refúgio no porto
mais próximo e os mais corajosos davam graças a Deus quando punham seu
carregamento e seus passageiros sob a proteção de uma cidadela. E não era sem razão esse terror porque de todas as ilhas chegavam quase diariamente
notícias de naus incendiadas, corpos exangues, atirados às praias e clarões de
mau agouro no horizonte, indícios inequívocos de que Sharkey recomeçara suas façanhas.
Aquelas
águas tranquilas, aquelas ilhas de vegetação maravilhosa eram tradicionalmente
o refúgio dos corsários. A princípio esses saqueadores do mar eram fidalgos
aventureiros e bravos, que combatiam por patriotismo e só pilhavam os navios de
Espanha. Mas essas figuras heroicas desapareceram ao fim de um século e foram
substituídas pelos cucaneiros que eram simplesmente piratas em busca das
vítimas mais ricas sem indagar de sua nacionalidade.
No início do
século XVIII, o pirata era um inimigo de todos, um ladrão sem pátria nem fé,
que vencia pela ferocidade e só tinha um intuito: o saque para enriquecer
depressa.
E entre os
mais sanguinários dessa época a fama de Sharkey avultava numa auréola de
sangue.
Num dos
primeiros dias de maio do ano de 1720, o "Feliz Liberdade" estava a
cinco léguas a oeste da Passagem dos Ventos esperando uma presa fácil, uma rica
nau de comércio que os bons ventos deviam entregar-lhe sem resistência. Havia,
já três dias que ali estava, pequeno ponto negro sinistro na vastidão do oceano.
Sharkey irritou-se como tão longa espera e jurava a Ned Gallway, o piloto, que
faria pagar bem caro essa demora à tripulação do primeiro navio que capturasse.
O aposento
do Sharkey a bordo do "Feliz Liberdade" era de grande dimensão e
decorada com objetos de grande luxo mas com desatino que formava um singular
contraste de luxo e desordem. Quadros... tapetes... tudo com manchas de vinho e
pólvora.
O capitão e
Ned ali estavam jogando cartas. Barbado até os olhos, com uma cabeleira
emaranhada e músculos formidáveis, Ned tinha bem o aspecto do que era um
desclassificado de Nova Orleans, brutal, vestido com cores vivas que realçavam
suas atitudes de hércules sem lei nem escrúpulos. John Sharkey era bem
diferente. Seu rosto magro e zelosamente barbeado tinha uma palidez de cadáver;
era quase calvo; apenas umas vagas mechas de cabelo cor de estopa coroavam sua
fronte alta e estreita. Os olhos azuis sem brilho apertavam-se junto do nariz
seco; suas mãos ossudas e longas moviam-se constantemente como antenas de um
inseto. Seu vestuário era cinzento e muito discreto.
De súbito a
porta do aposento se abriu sob um violento impulso e dois homens de aspecto
grosseiro entraram rapidamente. Eram Israel Martin, o chefe da tripulação, e
Red Folley, o mestre canhoneiro. Sharkey erguera-se com uma pistola em cada mão
e um brilho cruel nos olhos.
— Que
significa isso, patifes? — exclamou ele. — Positivamente, se eu não abato um de
vez em quando, como um cão, vocês acabam por esquecer quem sou. Então entra-se
aqui como em uma taverna?
—Capitão —
disse Red com ar sombrio. —São essas atitudes que culminaram na situação a que
chegamos. E no sei por que havemos de arriscar nossa pele defendendo um capitão
como o senhor.
Sharkey
depôs as pistolas sobre a mesa e, encostando-se na cadeira, perguntou com voz
calma.
— Mas eu
estou assim tão necessitado de ser defendido?
— A
tribulação está reunida em conselho na proa... Suas intenções não são boas e
eles podem aparecer aqui de um momento para outro. Nós viemos preveni-lo e
somos recebidos como cães...
O capitão
ergueu-se e apanhou a espada, mas não teve tempo para proferir uma palavra. A
porta se abriu de novo e um marinheiro surgiu bradando:
— Um navio!...
A fisionomia
de Sharkey iluminou-se. De há muitos dias já ele notava a irritação e má
vontade dos marinheiros; sabia que de fato seus comandados tinham razões para
reclamar; mas sabia também que diante de uma vítima a perseguir, trucidar e
saquear, tudo desaparecia.
De fato os
homens corriam a seus postos e já no pensavam senão no morticínio e na orgia
que devia se seguir.
Sharkey
chegou ao convés e julgou por si a situação. Um grande navio com todas as velas
soltas venha lentamente e passava mesmo junto do pirata. Semelhante audácia
chegou a inquietar os marinheiros, que receavam a armadilha de uma nau de
guerra; mas não. O aspecto do imprudente era pacífico. Sharkey ordenou a manobra.
Em poucos minutos o navio desconhecido foi abordado, atravancado e como uma
horda de demônios, os piratas saltaram para ele. Meia dúzia de tripulantes em
serviço no convés morreu em seus postos. Sharkey rebentou a cabeça do
subcomandante, que estava na torre do comando e antes que os demais saíssem de
seus leitos o navio estava em seu poder.
Verificou-se
então que era o "Porto Bello" que vinha de Londres para a Jamaica com
carregamento de tecidos e grades de ferro. O carregamento não tinha importância
para os piratas mas o cofre de bordo trazia mil guinéus e havia entre os
passageiros ricos negociantes da Jamaica que traziam as bolsas bem guarnecidas.
Feito o saque amarraram os prisioneiros no convés e, um a um, sob o olhar frio
de Sharkey os atiraram ao mar... Por fim restou só, de pé, o capitão Hardy,
comandante do "Porto Bello". Vendo que chegara sua vez, Hardy ergueu
um braço e disse:
— Antes de
morrer quero confiar-lhe um segredo.
— Se é com a
esperança de nos enganar perde seu tempo — chasqueou o chefe dos piratas.
— Não tenho
essa esperança — retrucou o capitão com um sorriso singular. — Submeto-me à
fortuna do mar, mas como vejo que revistaram todo o navio sem descobrir o
melhor tesouro que ele trás...
— Um
tesouro! — bradou Sharkey — aproximando-se. — Se não me revelares seu
esconderijo...
— Para isso
comecei a falar — disse Hardy detendo-o com gesto altivo. Não se trata de
dinheiro mas de um tesouro bem mais precioso a meu ver: — uma mulher moça e
formosa. Chama-se Ignez Ramirez, tem 18 anos e é do mais nobre sangue espanhol.
Vinha a bordo com seu pai, porém, tendo disposto de seu coração sem
consentimento de D. Ramirez este ordenou-me que a prendesse em uma cabine
secreta por traz de meu aposento.
Disse isto e
sem esperar que o impelissem, desafiando Sharkey com o olhar, saltou para as
ondas.
***
Seu corpo
não tinha ainda alcançado o fundo de areias movediças e já os piratas
arrombavam a machado a porta da cabine indicada, arrancando dali e trazendo
arrastada uma mulher muito jovem ainda, de singular beleza e que urrava de
pavor.
Shakey
espalmou a mão suja de sangue sobre sua face e declarou com uma risada
sinistra.
— É assim
que se marcam as ovelhas entre nós. E voltando-se para seus comandados ordenou.
— Levem-na para meu aposento com o devido respeito.
Depois de
incendiar o navio aprisionado, os piratas voltaram a sua nau e festejaram a
vitória bebendo desregradamente. Dois homens faziam companhia ao capitão em seu
aposento: eram o quartel-mestre e Stable, o cirurgião de bordo, um médico que
fora forçado a partir de Charleston, de um dia para outro, por haver apressado
a morte de um parente de quem era o único herdeiro. Nessa noite Stable tinha,
como os outros, bebido em demasia e foi o primeiro a lembrar a Sharkey a linda
prisioneira. O capitão deu ordem ao criado negro que a trouxesse para ali.
Ignez
Ramirez veio com passo firme e tranquilo. Pelas palavras de seus guardas ela
conhecia agora toda a situação; sabia que seu pai fora massacrado e que sua
situação naquele local era mais horrenda do que a morte. Mas com o conhecimento
da realidade uma grande calma se fizera em sua alma: mais ainda — houve em seus
olhos um brilho cruel como se ela entrevisse desde já uma desforra implacável
contra seus algozes.
Entrou no
aposento do capitão com ar sereno, sorriu a Sharkey e sem hesitar foi se sentar
sobre seus joelhos.
— Perdão...
Perdão — bradou o médico cambaleando. — O artigo sexto de nosso contrato diz
que toda vítima de valor pertence a todos.
— Sim —
confirmou o quartel-mestre. — O artigo sexto assim o diz.
Mas o
capitão lisonjeado com a escolha da prisioneira que lhe enlaçava o pescoço e lhe
acariciava a cabeça sacou do cinto uma pistola, obsevando:
— Foi a mim
que ela preferiu, está se mostrando bem digna de ser a esposa de um pirata.
Meto uma bala no primeiro que pretender arrancá-la de meus braços.
Entretanto,
como Ignez continuasse a passar as mãos carinhosa e repetidamente pela cabeça,
as faces e o pescoço de Shakey o médico deteve-se com os olhos dilatados pela
atenção e logo recuou com um grito de horror indizível.
— Suas
mãos... suas mãos... — balbuciou ele afinal com voz entrecortada.
Sharkey olhou a mão que Ignez passava em seus
lábios. Era lívida, com os dedos ligados por uma espécie de pelica amarela e
luzente, coberta com um esbranquiçado.
Erguendo-se
num salto repeliu a espanhola. Ela, com um grito de triunfo, precipitou-se para
o médico que fugiu e se refugiou embaixo da mesa, com urros hediondos.
Foi preciso
metê-la num círculo de lança para conseguir que ela se recolhesse a uma cabine
resistente onde a fecharam.
Então o
médico explicou, com os dentes tilintando de medo:
— A lepra. O
capitão Hardy vingou-se como um "Pele Vermelha". Deixou-nos essa
desgraçada para nos transmitir a lepra!... Ainda bem que ela não me tocou...
— Nem a mim
— bradou o quartel-mestre... Mas o capitão...
— Diga-me
com franqueza — murmurou Sharkey mais pálido do que nunca e esfregando
furiosamente as faces com uma estopa. — julga que terei esperança de me
salvar?...
O cirurgião
fez um gesto negativo. — Mentir em caso tal seria uma infâmia. Quando as
escamas da lepra pousam sobre um homem nada mais pode purificar seu corpo.
O capitão
deixou-se cair sobre uma cadeira, sem uma palavra, sem um grito.
Só ergueu a
cabeça quando viu um grupo de marinheiros cercá-lo com ar resoluto.
— Que
querem? — bradou ele pondo-se de pé com uma pistola em cada mão. — Galloway,
Folley Martin! Venham ajudar-me a varrer esta canalha de meu caminho. Mas os
oficiais mantiveram-se à distância, imóveis, silenciosos.
— E inútil
resistir, capitão. — Nós não podemos conservá-lo a bordo. É coisa resolvida.
Sharkey
disparou uma pistola, um marinheiro caiu; mas a segunda pistola não chegou a
ser disparada. Agarrado por dez mãos robustas, o mísero foi atirado no fundo de
um bote.
A mulher ria
freneticamente, o capitão de pé com as mãos amarradas desafia-os com o olhar.
Fez-se a
manobra das velas e o "Feliz Liberdade" afastou-se deixando o pequeno
bote abandonado no mar imenso.
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