Publicado originalmente na revista "Eu Sei Tudo", edição de
novembro de 1917. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba
Mendes (2016)
A morte da bela miss Eva
Garnier ou pelo menos as circunstâncias dessa morte, tais como foram conhecidas
pelo público; e o fato de ter o assassino, capitão John Fowler, recusado toda e
qualquer defesa durante o inquérito policial, suscitara emoção intensa e a
fermentação dos espíritos atingira ao auge quando o irmão do criminoso
declarara que essa defesa viria ao seu tempo, esmagadora e indiscutível. Enfim
curiosidade do público ainda mais se exacerbou quando se soube que o capitão
Fowler dispensara a assistência judiciária, reservando-se o direito de fazer
sua própria defesa.
No dia do julgamento o
processo, habilmente apresentado pelo promotor, parecia encaminhar-se apara uma
condenação, quando o acusado teve a palavra.
Era um homem cujo aspecto não
poderia passar ignorado em uma multidão; tez bronzeada, olhos enérgicos e
estatura de atleta. Sem hesitar, com segurança que mal disfarçava uma profunda
melancolia, ele disse:
“«Começo por agradecer a
generosidade dos senhores advogados, que me ofereceram seus serviços; se os
recusei não foi por que confie mais em minha eloquência, mas, ao contrário,
porque julgo que é meu dever trazer a este tribunal unicamente uma exposição de
fatos, simples e clara, sem ornamentações de retórica nem efeitos de orador.
Assim os doutores juízes terão diante de si a humilde verdade, a humilde e
dolorosa verdade e poderão formular a sentença perfeita.
Sou um soldado; nunca fui
outra coisa; toda a minha vida tem sido dedicada ao serviço do meu país e à
honra de sua bandeira; alistei-me aos quinze anos e obtive minhas primeiras
divisas na guerra sul-africana. Por isso, quando começou a guerra com a
Alemanha, destacaram-me de meu regimento para me colocarem como instrutor no
primeiro regimento de escoceses então organizado em Radchurch, no Essex.
Foi aí que conheci miss Eva
Garnier e confesso que nunca imaginara beleza mais perfeita. Eu sempre
acreditara que a expressão “apaixonar-se à primeira vista” fosse uma fantasia
de romancistas, mas desde o momento em que conheci miss Garnier, não tive mais
senão uma ideia, um desejo, uma ambição: — fazê-la minha esposa; fui tomado de
uma paixão frenética, irresistível como um instinto e todo o mundo, com tudo quanto
contém, seria para mim sem importância se eu não pudesse obter o amor daquela
criatura. Um só sentimento sobrenadava em meu delírio: — minha honra de
soldado.
Notei porém que miss Eva
Garnier não era insensível a minhas atenções; tive ocasião de vê-la muitas
vezes em casa do sr. Murreyfield, escudeiro local, onde era professora, havia
já um ano, tratada carinhosamente como pessoa da família. Parecia-me natural
sua simpatia, não por minhas qualidades mas pelo prestígio de meu uniforme,
porque Eva manifestava a cada instante o mais ardente patriotismo; sua voz
vibrava de cólera ao falar nas atrocidades cometidas na Bélgica. Eu desejava
desposá-la imediatamente; ela porém exigiu que só após o término da guerra
fosse efetuada a cerimônia.
Tive, portanto, muito tempo
para observar-lhe gênio e as originalidades, que me pareciam encantadoras. Seu
esporte favorito era o da motocicleta, que manobrava a primor fazendo longos
passeios, sozinha pelos campos. Caprichosa, zombeteira, exaltava minha paixão
sujeitando-me a provações sem conta. Eu tudo suportava. Aquele despotismo
inútil parecia-me natural em uma mulher moça, que se sabe muito amada. Uma
dessas provações "para me pôr de castigo" — como dizia — era
proibir-me de acompanhá-la em seus passeios de motocicleta. No inquérito
falou-se muito em meu ciúme... Como poderia eu deixar de o ter, apaixonado como
estava, diante dos caprichos inexplicáveis de Eva? Verifiquei pouco a pouco que
ela conhecia muitos oficiais das guarnições de Chelmsford e Colchester. E a motocicleta
levava-a durante horas inteiras só Deus sabe onde...
Por vezes o raciocínio
demonstrava-me que era uma loucura jogar assim minha existência e minha alma
por uma criatura que mal conhecia. Porém Eva sorria — não havia raciocínio que
resistisse a seu sorriso.
Um dia encontrei sobre a mesa
de Eva uma fotografia de homem, tendo nas costas um nome, Huberto Vardin; e o
que mais me impressionou foi que o cartão parecia usado como o dos retratos de
namorado, que algumas moças trazem ocultamente consigo durante meses... Quando
lhe perguntei de quem era aquele retrato Eva perturbou-se; mas logo, recobrando
o domínio de seus nervos, afirmou contra toda a verossimilhança que não sabia,
e que o cartão aparecera sobre sua mesa sem que lhe pertencesse. Tivemos uma
discussão, porém ela era tão loucamente sedutora que em pouco eu lhe pedia
perdão de minhas suspeitas.
Na semana seguinte fui chamado
para servir no ministério da Guerra; meu lugar embora subalterno envolvia
grande responsabilidade. Tive que ir morar em Londres e meu serviço absorveu-me
até os domingos. Somente um mês depois pude obter alguns dias de licença...
malditos dias que consumaram a minha desgraça.
Parti para Radchurch; a
estação da estrada de ferro fica a cinco milhas da vila e Eva veio a meu
encontro. Era nossa primeira entrevista a sós depois que eu lhe dera toda a
minha alma, e no enlevo de meu amor eu confiei-lhe um segredo que não me
pertencia, segredo da maior importância... Vou expor-lhes concisamente esse
fato pelo qual me considero mais criminoso do que pelo assassinato daquela
criatura. Revelei-lhe um segredo de que dependia o êxito de uma batalha e a
vida de milhares de homens.
Ela impacientava-se com as
delongas da guerra, lamentava-se, chorava quase, por ver nosso exército detido
tantos meses diante das linhas alemãs. Procurei demonstrar-lhe que de fato eram
nossas linhas que detinham o inimigo.
— Mas então nada poderemos
fazer para libertar a França e a Bélgica? —exclamava ela. — Ficamos eternamente
inertes em nossas trincheiras? Oh! Não; dize-me alguma coisa que alimente minha
esperança. Há momentos em que parece que meu coração vai estalar...
— Descansa — disse-lhe
sorrindo. — Dentro em pouco terás boas notícias.
— Sim? — disse ela segurando-me pelos ombros
com entusiasmo quase delirante. — Oh! meu querido!... Conta-me tudo. Quando
será isso?
— Breve.
— Ora! Com a calma do estado
maior, “breve” bem pode significar "para o ano".
— Não. Muito menos.
— Um mês? Ah! meu Deus! Eu não
tenho paciência para esperar tanto!...
— Talvez não tenhas que
esperar nem uma semana...
Ela apertou-me as mãos com
alegria febril.
— Que felicidade! E quem vai
atacar... Nós ou os franceses?
— Nós e eles.
— Ah! compreendo: a ofensiva vai partir do
ponto em que os dois exércitos se juntam.
— Não; aí não.
— Como não? Não se trata de
uma ação conjunta?
— Tolinha disse-lhe eu, ingenuamente. — Supõe
que os ingleses avançam no setor de Ypres e os franceses no de Verdun... Embora
centenas de léguas os separem, a ação não deixa de ser combinada...
— Ah! compreendo! — exclamou
ela com grande alegria. — Avançam nas duas extremidades da linha, ao mesmo
tempo, para que os boches não saibam para que lado enviar reforços...
— Exatamente... avanço
simulado em Ypres e verdadeiro diante de Verdun...
Nesse momento compreendi que
falara demais e detive-me com tal expressão de susto que ela tratou de me
tranquilizar.
— Oh! querido... será mais fácil arrancar-me a
língua do que obrigar-me a repetir uma palavra do que me disseste.
Que razão tinha eu para
duvidar de sua sinceridade? Foi quase tranquilo que montei a cavalo para ir ao
campo de Pedley - Woodrow levar ao coronel Worsal uma carta do ministério. Não
cheguei até lá; em caminho encontrei o ordenança do coronel, entreguei-lhe a
carta e voltei a procura de Eva com a sofreguidão de um apaixonado.
Entrando em casa do sr.
Murreyfield a criada informou-me de que ela subira para seu quarto; fora
vestir-se, depois de ter mandado preparar a motocicleta. Pareceu-me estranho
que ela fosse dar um passeio durante minha visita, que devia ser tão curta.
Sentei-me na sala a sua espera e olhando distraído para o mata-borrão, que
estava sobre a secretária, pasmei. Havia sobre o papel vermelho um nome que,
embora aparecesse às avessas, saltou-me logo aos olhos, o nome de Huberto
Vardin, escrito com a letra resoluta de Eva. Evidentemente ela escrevera seu
endereço, porque após o nome havia as iniciais S. W., que designam uma
circunscrição postal de Londres.
Senti todo o sangue gelar-me
nas veias... Ela escrevia àquele homem que afirmava não conhecer...
Senhores, não tento explicar
minha conduta. Num ímpeto de furor, meti mãos à secretária e arrombei-a. A
carta ali estava, fechada... não tive escrúpulos em rasgar o envelope...ação
ilegal, irregular bem o sei; mas num acesso de ciúme desatinado eu não
refletia. Queria ler aquela carta.
As primeiras palavras
fizeram-me tremer de alegria. “Meu caro sr. Vardin”...
Não era uma carta de amor; foi
o fique mais me interessou, tanto que já ia fechá-la arrependido de minha
violência quando uma palavra quase no fim da página feriu-me o olhar:
feriu-me... é bem o termo — como o dardo de uma víbora.
Essa palavra era “Verdun”.
Só então notei que a carta era
escrita em alemão. Cambaleando, lívido de surpresa e de horror, li-a toda. Era
uma narração completa do que eu lhe dissera, acompanhada por outras informações
sobre o movimento de tropas nos arredores. Terminava assim:
"Espero obter de meu
informante a data exata mas julgo prudente aproveitar o correio holandês de
hoje para dar a von Starner estas informações, porque se trata de uma batalha
de grande importância. Vou em pessoa levar esta carta a Colchester.
Como sempre sua serva fiel
Sophia Heffner".
Minha primeira impressão foi a
de um aniquilamento total... Aquela mulher que adorava, minha noiva, era uma
alemã, uma espiã... Mas logo todo o meu pensamento voltou-se para o perigo
criado por minha imprudência... Ouvi os passos da miserável na escada. Ao
ver-me diante da secretária partida tendo nas mãos a carta, ela fez um gesto
que poderia ser de susto... ou de cólera. Toda a sua fisionomia transtornou-se
e, sem uma palavra, num ímpeto de fera, atirou-se a mim tentando arrancar-me o
papel; repeli-a com força, atirei-a sobre o canapé e toquei a campainha. O sr.
Murreyfield acudiu logo e ficou apavorado ao conhecer a situação. E disse-me
com ansiedade:
— Creio que o senhor não
hesitará em entregá-la às autoridades.
— Nem um minuto — respondi. O
que lhe peço é que não a deixe fugir enquanto eu vou prevenir o coronel Worsal
e pedir-lhe uma escolta para levá-la ao acampamento.
—Vou fechá-la no seu quarto.
— Não é preciso disse ela, que
parecia ter recobrado toda a calma. — Comprometo a não arredar pé daqui. Nenhum
perigo me ameaça. Este belo capitão não me pode denunciar sem confessar ao
mesmo tempo que traiu um segredo confiado a sua honra; terá sua carreira
cortada... portanto.
Eu interrompi rispidamente,
dizendo ao sr. Murreyfield.
— Faça-me o favor de levá-la
ao seu quarto.
Eva foi a primeira a
encaminhar-se para o corredor; mas chegando à porta deu um salto para a porta
da rua, correu à calçada e alcançou a motocicleta, que ali estava.
Precipitamo-nos também e, antes que ela pusesse o motor em movimento,
seguramo-la pelos braços. Como uma fera a alemã voltou-se mordeu o sr.
Murreyfield num pulso. Não conseguimos dominá-la a sem grandes esforços; foi
preciso arrastá-la até a escada, espumando, com os olhos faiscantes. Quando a
fechamos afinal, ela começou a soltar verdadeiros uivos de furor.
— A porta é sólida — disse o sr. Murreyfield,
detendo com o lenço o sangue que lhe corria do ferimento. — Em todo o caso,
ficarei aqui, no corredor até que o senhor volte... ficarei com um revólver.
Corri a Pedley; o coronel
partira para inspecionar os postos do litoral. Isso causou-me um primeiro
atraso; depois todas as formalidades a preencher... assinatura do juiz na ordem
de prisão, designação da escolta...
Alucinado pela impaciência
meti o cavalo a galope e voltei sozinho distanciando-me de todos. Era já noite
fechada; a estrada de Pedley a Woodrow corta a de Colchester a meia milha de
Radchurch.
Apenas ultrapassei essa
encruzilhada, ouvi o teuf-teuf de uma
motocicleta lançada a toda a força. Detive-me e observei o caminho atento. O veículo
vinha sem lanternas e com velocidade louca. Mas, quando passou diante de mim
como um relâmpago, vi nitidamente a pessoa que ia pilotando. Essa mulher que eu
amara, sem chapéu, com os cabelos ao vento, os olhos fitos e toda a face
contraída num ricto de alegria satânica parecia uma das Valquírias de sua terra
natal... Ia já longe na estrada de Colchester, quando imaginei as consequências
de sua fuga. Se ela conseguisse alcançar o cúmplice, a vitória de nossos
aliados seria impossível e milhares de soldados seriam sacrificados
inutilmente. Empunhei o revólver e disparei-o por duas vezes sobre a silhueta
que se destacava nitidamente no horizonte enluarado... Ouvi um grito, o ruído
da queda da motocicleta; depois... o silêncio.
Sabem o resto. Encontrei Sophia
Heffner caída de um lado da estrada, morta; uma das balas de meu revólver a
alcançara na nuca. Quando Murreyfield chegou, correndo, arquejante, contou-me
que ela fugira pela janela, descendo com audácia incrível por um cano das águas
pluviais e somente o ruído da motocicleta, partindo, denunciara sua fuga.
Enquanto eu ouvia confusamente sua narração, chegaram os soldados, que vinham
prender aquela mulher. E foi a mim que prenderam. Eu nada podia dizer sem
exibir a carta e só agora posso fazê-lo, agora que a ofensiva já se realizou
com pleno êxito.”
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