9/30/2016

A defesa do capitão (Conto), de Conan Doyle



A defesa do capitão, de Conan Doyle

Publicado originalmente na revista "Eu Sei Tudo", edição de novembro de 1917. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)


A morte da bela miss Eva Garnier ou pelo menos as circunstâncias dessa morte, tais como foram conhecidas pelo público; e o fato de ter o assassino, capitão John Fowler, recusado toda e qualquer defesa durante o inquérito policial, suscitara emoção intensa e a fermentação dos espíritos atingira ao auge quando o irmão do criminoso declarara que essa defesa viria ao seu tempo, esmagadora e indiscutível. Enfim curiosidade do público ainda mais se exacerbou quando se soube que o capitão Fowler dispensara a assistência judiciária, reservando-se o direito de fazer sua própria defesa.

No dia do julgamento o processo, habilmente apresentado pelo promotor, parecia encaminhar-se apara uma condenação, quando o acusado teve a palavra.

Era um homem cujo aspecto não poderia passar ignorado em uma multidão; tez bronzeada, olhos enérgicos e estatura de atleta. Sem hesitar, com segurança que mal disfarçava uma profunda melancolia, ele disse:

“«Começo por agradecer a generosidade dos senhores advogados, que me ofereceram seus serviços; se os recusei não foi por que confie mais em minha eloquência, mas, ao contrário, porque julgo que é meu dever trazer a este tribunal unicamente uma exposição de fatos, simples e clara, sem ornamentações de retórica nem efeitos de orador. Assim os doutores juízes terão diante de si a humilde verdade, a humilde e dolorosa verdade e poderão formular a sentença perfeita.

Sou um soldado; nunca fui outra coisa; toda a minha vida tem sido dedicada ao serviço do meu país e à honra de sua bandeira; alistei-me aos quinze anos e obtive minhas primeiras divisas na guerra sul-africana. Por isso, quando começou a guerra com a Alemanha, destacaram-me de meu regimento para me colocarem como instrutor no primeiro regimento de escoceses então organizado em Radchurch, no Essex.

Foi aí que conheci miss Eva Garnier e confesso que nunca imaginara beleza mais perfeita. Eu sempre acreditara que a expressão “apaixonar-se à primeira vista” fosse uma fantasia de romancistas, mas desde o momento em que conheci miss Garnier, não tive mais senão uma ideia, um desejo, uma ambição: — fazê-la minha esposa; fui tomado de uma paixão frenética, irresistível como um instinto e todo o mundo, com tudo quanto contém, seria para mim sem importância se eu não pudesse obter o amor daquela criatura. Um só sentimento sobrenadava em meu delírio: — minha honra de soldado.

Notei porém que miss Eva Garnier não era insensível a minhas atenções; tive ocasião de vê-la muitas vezes em casa do sr. Murreyfield, escudeiro local, onde era professora, havia já um ano, tratada carinhosamente como pessoa da família. Parecia-me natural sua simpatia, não por minhas qualidades mas pelo prestígio de meu uniforme, porque Eva manifestava a cada instante o mais ardente patriotismo; sua voz vibrava de cólera ao falar nas atrocidades cometidas na Bélgica. Eu desejava desposá-la imediatamente; ela porém exigiu que só após o término da guerra fosse efetuada a cerimônia.

Tive, portanto, muito tempo para observar-lhe gênio e as originalidades, que me pareciam encantadoras. Seu esporte favorito era o da motocicleta, que manobrava a primor fazendo longos passeios, sozinha pelos campos. Caprichosa, zombeteira, exaltava minha paixão sujeitando-me a provações sem conta. Eu tudo suportava. Aquele despotismo inútil parecia-me natural em uma mulher moça, que se sabe muito amada. Uma dessas provações "para me pôr de castigo" — como dizia — era proibir-me de acompanhá-la em seus passeios de motocicleta. No inquérito falou-se muito em meu ciúme... Como poderia eu deixar de o ter, apaixonado como estava, diante dos caprichos inexplicáveis de Eva? Verifiquei pouco a pouco que ela conhecia muitos oficiais das guarnições de Chelmsford e Colchester. E a motocicleta levava-a durante horas inteiras só Deus sabe onde...

Por vezes o raciocínio demonstrava-me que era uma loucura jogar assim minha existência e minha alma por uma criatura que mal conhecia. Porém Eva sorria — não havia raciocínio que resistisse a seu sorriso.

Um dia encontrei sobre a mesa de Eva uma fotografia de homem, tendo nas costas um nome, Huberto Vardin; e o que mais me impressionou foi que o cartão parecia usado como o dos retratos de namorado, que algumas moças trazem ocultamente consigo durante meses... Quando lhe perguntei de quem era aquele retrato Eva perturbou-se; mas logo, recobrando o domínio de seus nervos, afirmou contra toda a verossimilhança que não sabia, e que o cartão aparecera sobre sua mesa sem que lhe pertencesse. Tivemos uma discussão, porém ela era tão loucamente sedutora que em pouco eu lhe pedia perdão de minhas suspeitas.

Na semana seguinte fui chamado para servir no ministério da Guerra; meu lugar embora subalterno envolvia grande responsabilidade. Tive que ir morar em Londres e meu serviço absorveu-me até os domingos. Somente um mês depois pude obter alguns dias de licença... malditos dias que consumaram a minha desgraça.

Parti para Radchurch; a estação da estrada de ferro fica a cinco milhas da vila e Eva veio a meu encontro. Era nossa primeira entrevista a sós depois que eu lhe dera toda a minha alma, e no enlevo de meu amor eu confiei-lhe um segredo que não me pertencia, segredo da maior importância... Vou expor-lhes concisamente esse fato pelo qual me considero mais criminoso do que pelo assassinato daquela criatura. Revelei-lhe um segredo de que dependia o êxito de uma batalha e a vida de milhares de homens.

Ela impacientava-se com as delongas da guerra, lamentava-se, chorava quase, por ver nosso exército detido tantos meses diante das linhas alemãs. Procurei demonstrar-lhe que de fato eram nossas linhas que detinham o inimigo.

— Mas então nada poderemos fazer para libertar a França e a Bélgica? —exclamava ela. — Ficamos eternamente inertes em nossas trincheiras? Oh! Não; dize-me alguma coisa que alimente minha esperança. Há momentos em que parece que meu coração vai estalar...

— Descansa — disse-lhe sorrindo. — Dentro em pouco terás boas notícias.

 — Sim? — disse ela segurando-me pelos ombros com entusiasmo quase delirante. — Oh! meu querido!... Conta-me tudo. Quando será isso?

— Breve.

— Ora! Com a calma do estado maior, “breve” bem pode significar "para o ano".

— Não. Muito menos.

— Um mês? Ah! meu Deus! Eu não tenho paciência para esperar tanto!...

— Talvez não tenhas que esperar nem uma semana...

Ela apertou-me as mãos com alegria febril.

— Que felicidade! E quem vai atacar... Nós ou os franceses?

— Nós e eles.

 — Ah! compreendo: a ofensiva vai partir do ponto em que os dois exércitos se juntam.

— Não; aí não.

— Como não? Não se trata de uma ação conjunta?

 — Tolinha disse-lhe eu, ingenuamente. — Supõe que os ingleses avançam no setor de Ypres e os franceses no de Verdun... Embora centenas de léguas os separem, a ação não deixa de ser combinada...

— Ah! compreendo! — exclamou ela com grande alegria. — Avançam nas duas extremidades da linha, ao mesmo tempo, para que os boches não saibam para que lado enviar reforços...

— Exatamente... avanço simulado em Ypres e verdadeiro diante de Verdun...

Nesse momento compreendi que falara demais e detive-me com tal expressão de susto que ela tratou de me tranquilizar.

 — Oh! querido... será mais fácil arrancar-me a língua do que obrigar-me a repetir uma palavra do que me disseste.

Que razão tinha eu para duvidar de sua sinceridade? Foi quase tranquilo que montei a cavalo para ir ao campo de Pedley - Woodrow levar ao coronel Worsal uma carta do ministério. Não cheguei até lá; em caminho encontrei o ordenança do coronel, entreguei-lhe a carta e voltei a procura de Eva com a sofreguidão de um apaixonado.

Entrando em casa do sr. Murreyfield a criada informou-me de que ela subira para seu quarto; fora vestir-se, depois de ter mandado preparar a motocicleta. Pareceu-me estranho que ela fosse dar um passeio durante minha visita, que devia ser tão curta. Sentei-me na sala a sua espera e olhando distraído para o mata-borrão, que estava sobre a secretária, pasmei. Havia sobre o papel vermelho um nome que, embora aparecesse às avessas, saltou-me logo aos olhos, o nome de Huberto Vardin, escrito com a letra resoluta de Eva. Evidentemente ela escrevera seu endereço, porque após o nome havia as iniciais S. W., que designam uma circunscrição postal de Londres.

Senti todo o sangue gelar-me nas veias... Ela escrevia àquele homem que afirmava não conhecer...

Senhores, não tento explicar minha conduta. Num ímpeto de furor, meti mãos à secretária e arrombei-a. A carta ali estava, fechada... não tive escrúpulos em rasgar o envelope...ação ilegal, irregular bem o sei; mas num acesso de ciúme desatinado eu não refletia. Queria ler aquela carta.

As primeiras palavras fizeram-me tremer de alegria. “Meu caro sr. Vardin”...

Não era uma carta de amor; foi o fique mais me interessou, tanto que já ia fechá-la arrependido de minha violência quando uma palavra quase no fim da página feriu-me o olhar: feriu-me... é bem o termo — como o dardo de uma víbora.

Essa palavra era “Verdun”.

Só então notei que a carta era escrita em alemão. Cambaleando, lívido de surpresa e de horror, li-a toda. Era uma narração completa do que eu lhe dissera, acompanhada por outras informações sobre o movimento de tropas nos arredores. Terminava assim:

"Espero obter de meu informante a data exata mas julgo prudente aproveitar o correio holandês de hoje para dar a von Starner estas informações, porque se trata de uma batalha de grande importância. Vou em pessoa levar esta carta a Colchester.
Como sempre sua serva fiel Sophia Heffner".

Minha primeira impressão foi a de um aniquilamento total... Aquela mulher que adorava, minha noiva, era uma alemã, uma espiã... Mas logo todo o meu pensamento voltou-se para o perigo criado por minha imprudência... Ouvi os passos da miserável na escada. Ao ver-me diante da secretária partida tendo nas mãos a carta, ela fez um gesto que poderia ser de susto... ou de cólera. Toda a sua fisionomia transtornou-se e, sem uma palavra, num ímpeto de fera, atirou-se a mim tentando arrancar-me o papel; repeli-a com força, atirei-a sobre o canapé e toquei a campainha. O sr. Murreyfield acudiu logo e ficou apavorado ao conhecer a situação. E disse-me com ansiedade:

— Creio que o senhor não hesitará em entregá-la às autoridades.

— Nem um minuto — respondi. O que lhe peço é que não a deixe fugir enquanto eu vou prevenir o coronel Worsal e pedir-lhe uma escolta para levá-la ao acampamento.

—Vou fechá-la no seu quarto.

— Não é preciso disse ela, que parecia ter recobrado toda a calma. — Comprometo a não arredar pé daqui. Nenhum perigo me ameaça. Este belo capitão não me pode denunciar sem confessar ao mesmo tempo que traiu um segredo confiado a sua honra; terá sua carreira cortada... portanto.

Eu interrompi rispidamente, dizendo ao sr. Murreyfield.

— Faça-me o favor de levá-la ao seu quarto.


Eva foi a primeira a encaminhar-se para o corredor; mas chegando à porta deu um salto para a porta da rua, correu à calçada e alcançou a motocicleta, que ali estava. Precipitamo-nos também e, antes que ela pusesse o motor em movimento, seguramo-la pelos braços. Como uma fera a alemã voltou-se mordeu o sr. Murreyfield num pulso. Não conseguimos dominá-la a sem grandes esforços; foi preciso arrastá-la até a escada, espumando, com os olhos faiscantes. Quando a fechamos afinal, ela começou a soltar verdadeiros uivos de furor.

— A porta é sólida — disse o sr. Murreyfield, detendo com o lenço o sangue que lhe corria do ferimento. — Em todo o caso, ficarei aqui, no corredor até que o senhor volte... ficarei com um revólver.

Corri a Pedley; o coronel partira para inspecionar os postos do litoral. Isso causou-me um primeiro atraso; depois todas as formalidades a preencher... assinatura do juiz na ordem de prisão, designação da escolta...

Alucinado pela impaciência meti o cavalo a galope e voltei sozinho distanciando-me de todos. Era já noite fechada; a estrada de Pedley a Woodrow corta a de Colchester a meia milha de Radchurch.

Apenas ultrapassei essa encruzilhada, ouvi o teuf-teuf de uma motocicleta lançada a toda a força. Detive-me e observei o caminho atento. O veículo vinha sem lanternas e com velocidade louca. Mas, quando passou diante de mim como um relâmpago, vi nitidamente a pessoa que ia pilotando. Essa mulher que eu amara, sem chapéu, com os cabelos ao vento, os olhos fitos e toda a face contraída num ricto de alegria satânica parecia uma das Valquírias de sua terra natal... Ia já longe na estrada de Colchester, quando imaginei as consequências de sua fuga. Se ela conseguisse alcançar o cúmplice, a vitória de nossos aliados seria impossível e milhares de soldados seriam sacrificados inutilmente. Empunhei o revólver e disparei-o por duas vezes sobre a silhueta que se destacava nitidamente no horizonte enluarado... Ouvi um grito, o ruído da queda da motocicleta; depois... o silêncio.

Sabem o resto. Encontrei Sophia Heffner caída de um lado da estrada, morta; uma das balas de meu revólver a alcançara na nuca. Quando Murreyfield chegou, correndo, arquejante, contou-me que ela fugira pela janela, descendo com audácia incrível por um cano das águas pluviais e somente o ruído da motocicleta, partindo, denunciara sua fuga. Enquanto eu ouvia confusamente sua narração, chegaram os soldados, que vinham prender aquela mulher. E foi a mim que prenderam. Eu nada podia dizer sem exibir a carta e só agora posso fazê-lo, agora que a ofensiva já se realizou com pleno êxito.”

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