“Relíquias de Casa Velha”, pelo Sr. Machado de Assis
Escrito por Nunes Vidal e publicado em 1906. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
Escrito por Nunes Vidal e publicado em 1906. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
Não há autor brasileiro contemporâneo que mais do que o Sr. Machado de Assis goze da estima e do apreço gerais dos nossos homens de letras. Junta-se hoje a esses sentimentos o da veneração que se lhe deve pelos honestos e trabalhados anos que já lhe pesam aos ombros.
Esse
prestígio vem de longe. Desde o começo de sua carreira literária que o Sr.
Machado de Assis sempre foi dos mais bem aceitos; seu nome, uma vez lançado,
ainda não sofreu nem mesmo um eclipse.
De certo
tempo por diante, ele ganhou a autoridade de um companheiro mais velho entre
aqueles que já o encontraram trabalhando, vindo de outra geração, em que a
morte e as vicissitudes foram abrindo claros de fazer calafrio a outro que não
tivesse a sua constância, pertinácia e calma. “Companheiro mais velho” seria
ele quem dissesse; os outros entenderam reconhecê-lo como mestre, como chefe.
Desde aí que
o Sr. Machado se fixou nessa situação, ganha naturalmente, sem artifício ou
violência alguma, e essa a razão pela qual ninguém, dentre o círculo predileto,
que tem sido sempre a gente mais bem colocada nas letras e no jornalismo
lembrou-se em qualquer tempo de dissentir dos outros neste particular.
É preciso
conhecê-lo um pouco de perto, ver como ele é antes de tudo carinhoso e cheio de
interesse para com os seus amigos, como tem desenvolvidos os sentimentos de
afeto e de apreço, para achar as razões sentimentais dessas coisas, que nunca
são conquistadas exclusivamente por superioridade intelectual. Ser superior
nunca foi razão bastante para um homem se fazer amar.
De qualquer
modo, o que é evidente é o fato da conformidade desse sentimento geral de
estima e de apreço, em que vai tanto de admiração pelo mestre no mundo das
letras. Não há quem lhe negue valor hoje em dia e a muitos esse valor parece
grande e raro: uns o sentem, outros vão nessa fé.
Entre estes
últimos, já não se encontram literatos somente: está com eles uma boa parte do
nosso público.
Felizmente
já passou a ser de bom tom, hoje em dia, ler ou dizer ter lido alguns dos
nossos autores; abrem-se os seus volumes mesmo no bonde. Se é um livro que
acaba de ser posto à venda, cujas primeiras páginas se vão cortando para
satisfazer a anciã da curiosidade, ainda mais chic.
No número
desses bem aceitos e em primeira plana, figura o Sr. Machado de Assis. Ninguém
mais vai dizer que não gosta dele como escritor. Note-se, principalmente dele,
tanto mais quanto se esteja em rodas reputadas as mais finas do ponto de vista
intelectual.
Na minha
opinião, foi um resultado feliz esse a que se chegou relativamente ao nosso
infatigável e digno patrício. Ele merece de todo ponto a distinção alcançada.
Mas, por
outro lado, o certo é que não é grande a parte do público que saiba
perfeitamente porque assim o distingue. São poucos os que sentem a obra dele de
um modo integral.
Culpa do
público ou defeito do autor? Uma coisa e outra, no meu entender.
O Sr.
Machado de Assis é um psicólogo antes do mais; é como estudo da alma humana que
a sua obra não tem par entre nós, principalmente por ser a mais considerável.
No conto e no romance, um ou outro notável talento desse gênero tem-se
estreado; ficaram, porém, na estreia, ou pouco mais, até aqui.
Mas o
psicólogo não pôde evitar impunemente certos tropeços. Pertença a que raça ou a
que sociedade pertencer, nem sempre encontrará na palheta cores felizes para
dar conta honestamente de certos aspectos dessa sociedade ou dessa raça; ao
contrário, os seus quadros não hão de ter sombra.
Mais do que
isso. Nos estudos que empreenda, ele não pôde evitar que lhe escape uma
impressão ou outra muito flagrante de caracteres contemporâneos, principalmente
daqueles que lhe foi dado conhecer por convivência reiterada.
Daí, a
impossibilidade de atravessar a vida sem qualquer choque mais ou menos rude
entre ele e o seu meio, de modo geral e mesmo particularmente com um ou outro
indivíduo.
Por
conseguinte, se ele projeta fazer uma obra claramente e patentemente fiel e que
desperte vivo e constante interesse até ao entusiasmo, — como aconteceu ao Eça,
para falar de um autor conhecido por todos, — precisa dispor de certa bravura.
Ora, é o que
não acontece com o Sr. Machado de Assis, pelo menos de certo ponto de vista.
Páginas há na sua obra que para serem encontradas pedem uma intrepidez bem
pouco comum de alma; elas só se proporcionam aqueles que sobem a uma certa
altura na dor; demandam o que se chama heroicidade intelectual.
Esta, porém,
passa geralmente despercebida aos olhos do mundo. A outra, mais
caracteristicamente moral, de mais efeito, e isso talvez porque importe em
riscos mais imediatos, como eu digo, não está nas cordas do nosso ilustre
escritor. Ele sempre fugiu a essas lutas de corpo a corpo.
Talvez
devido a isso é que nos tenha dado uma obra. O meio era que agimos, como já o
disse o Sr. José Veríssimo, fazendo justamente, em outros termos, estas
observações, é ainda hoje muito limitado; o escritor se acha aqui, por
enquanto, num grande desamparo, para arriscar caminho por tão ásperos trilhos.
Não é culpa
do sábio realizar apenas o possível. Para isso, aí está a história dos
lamentáveis naufrágios de uns quantos que pretenderam passar além do Adamastor
que a época lhes antepunha. Se há culpa, pois, ela deve ser antes atribuída à
atmosfera em que temos fatalmente de nos desenvolver.
A obra do
Sr. Machado de Assis, de Brás Cubas
para cá, é em boa parte uma série de curiosas alegorias. Este gênero permite
trabalho mais desafogado, embora exigindo maior força de imaginação. Mas é de
se anuviado e instável. Facilmente escapa ao alcance comum; há coisas que nem
mesmo os mais argutos podem estar certos de haver bem interpretado.
Além disso,
a par da discreta concepção que o Sr. Machado de Assis adotou, foi se
desenvolvendo nele, de modo muito lógico, aliás, um gosto crescente pela
discrição e aristocracia da fôrma. Os fáceis recursos emocionais de que se
utiliza o comum dos autores de obras de ficção, vieram lhe merecendo de cada
vez mais decidido desdém.
A princípio,
foi francamente no humour inglês que ele procurou envolver os motivos
sentimentais de suas criações. Mas desse contraste, representado por um sorriso
que chora ou por um pranto que sorri, que é o próprio da maneira dos Swifts,
dos Thackerays, resulta um certo efeito ainda um pouco estardalhante, que as naturezas
delicadas acabam também, às vezes, por achar de mau gosto.
No seu
último romance, Esaú e Jacó e agora
em alguns contos das Relíquias de Casa
Velha, livro que me fez escrever estas linhas, o Sr. Machado nem mais
humour propriamente ostenta.
Naquele primeiro
livro, ele compõe um drama inteiro sem chorar, sem quase sorrir. Põe toda a
força no motivo de dor que nos dá; mas, feito isto, fala-nos, já não guardando
apenas compostura, mas como se nos quisesse poupar até por completo, se possível,
ao forte choque que sentiríamos inevitavelmente contadas as coisas sem nenhuma
contemplação.
Dir-se-ia um
processo antes nipônico, pelo que nos conta o Sr. Oliveira Lima dessa admirável
gente japona que chega ao absurdo de nos comunicar com o sorriso nos lábios uma
desgraça fatal ou se referir com que hilaridade à doença de um amigo para não
melindrar a corrente ou disposição dos consentimentos alheios.”
Não fosse o
tom geral em que construído o livro, tom de que se flete sempre uma leve
ironia, ora fundo amarga, cruel, ora inofensiva, continuando a ser ironia
apenas por uma questão de hábito, de feitio; não fosse isso e bem poucos viriam
suficientemente prevenidos para não sofrerem uma decepção final e deixarem de
acreditar que o autor não fizera mais do que estragar um bom assunto.
Das
superioridades que se encontram na obra do Sr. Machado de Assis, o que se torna
geralmente mais sensível é a boa língua, a que todos se apega para justificar a
admiração em que dizem que o têm.
Ainda nesse
particular, seria curioso estudá-lo; ao menos indicar a interessante alquimia
da sua forma. Ela não é propriamente velha; propriamente nova também não é; não
tem dúvida que é boa, mas nem sempre o que se pode chamar rigorosamente correto
do ponto de vista lusitano, vindo como vem cheia de modismos brasileiros,
registrando melindrosamente os nosso quês, refletindo, maleável, a nossa
blandícia tropical.
Mas o que eu
tenho principalmente a dizer é que a boa língua nunca sal vou, por si só, um
escritor. Apontai exclusivamente esse atributo come característica de um homem
de letras, é implicitamente negá-lo ou desconhecê-lo.
Seja como
for, o Sr. Machado de Assis, com os elementos que os tempos lhe vieram
proporcionando pôde fazer uma obra, de que este último volume, as Relíquias de Casa Velha, representa uma
boa confirmação.
Há nele
trabalhos de primeira ordem. A minha predileção é por estes três contos: Pai contra mãe, Maria Cora, A anedota do
cabriolé, todos feitos à maneira de Esaú
e Jacó.
Principalmente
Maria Cora. É um largo e formoso
trabalho, de uma arguta e uma boa psicologia, muito humano, e, no fundo, muito
simpático, muito emocional.
Além destes
e de outros contos, há no volume alguns ensaios críticos de que me agradou
bastante aquele sobre as cenas da vida Amazônica, do Sr. José Veríssimo.
Fecha o
livro com duas comédias, Não consultes
médico, Lição de Botânica, que
parecem terem sido feitas principalmente para salão e com o fim de agradar mais
as moças, acabando uma e outra em casamento.
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