5/25/2017

Antônio Sardinha, poeta do lusitanismo


Antônio Sardinha, poeta do lusitanismo

Texto escrito por Carlos Lobo de Oliveira, em 1923. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)

A moderna literatura portuguesa é quase desconhecida no Brasil. No entanto, certos nomes dos novos são hoje familiares ao grande público.
Em Portugal desenha-se um forte renascimento nas letras, um inquieto fermento de espírito leveda nas almas, alvoroça-se uma primavera de ritmos, de imagens, de emoções.
As altas qualidades do sentir que timbram desde as remotas eras a literatura portuguesa, florescem a nossa atual sensibilidade das graças quiméricas do coração, graças decorativas como cravos do povo ou lírios fidalgos.
Antônio Sardinha destaca-se entre os novos. Poeta que sabe evocar na curva rítmica do verso os longes do seu maravilhoso mundo interior — poeta de janelas abertas para as intimidades — ganhou a simbólica flor de lis nos Jogos Florais de Salamanca, onde se disputou a primazia da Gaia Ciência, e que foram presididos por Mestre Eu gênio de Castro, Pastor de rimas e Príncipe coroado de imagens, no dizer gracioso da dedicatória do autor do "Quando as Nascentes despertam...”
Anos depois, Antônio Sardinha que tinha guardado um silêncio fecundo, em cujo húmus místico brotava a semente dum magnífico lirismo, surgiu no torneio das letras, com um livro de versos "Epopeia da Planície", onde se sentia renovação de temas, numa nobre simplicidade de linhas e ritmos.
A "Epopeia da Planície” é uma espécie de Geórgicas Alentejanas, canta o louvor da terra, a sua província de sol forte, o chão escaldante da interminável estepe, onde o ouro do trigal ondula a filigrana das espigas buliçosas e finas.
Na "Epopeia da Planície" perpassa um encantamento virgiliano, uma plácida alegria de trabalho rústico na toada cristã dos versos.
A poesia das pequeninas coisas íntimas, humildadas no círculo afetivo da nossa sensibilidade, Antônio Sardinha no-la dá na graça pitoresca e primitiva da redondilha saltitante, saborosa como selvagem amora, crescendo na beirada dos caminhos.
O seu novo livro "Quando as Nascentes despertam...” é dum ecletismo adorável de emoção e temas.
Prende-me particular estima a este belo livro de poemas que eu conheci quase todo antes de ser dado ao prelo, onde vem uma poesia que me foi dedicada "Os livros velhos", tão verdadeira e tão sentida:
Os livros velhos! que doçura estranha
não saboreia n gente, ao entre abri-los!
É como um ar de Igreja o ar que os banha,
na estante arrumadinhos e tranquilos!
Não deixa mais de ouvir-vos quem a voz vai
[ouça.
primeiras edições de inicial acesa,
iluminadas letras, incunábulos!
Oh, livros velhos, que beleza a vossa!
Sois p'ra a palavra carta da nobreza,
onde se aprende em língua ainda moça
toda a inocência antiga dos vocábulos!
O poeta evoca os livros velhos que são
uma lição a meditar.
E no papel encarquilhado expira
toda a escusada ânsia de escrever.
 Amor da glória! Mas que vã mentira!
Quem é que está p'ra nos sentir e ler?!
Vaidade das vaidades! Nesta lida,
que nada satisfaz, nem nada acalma,
mas p’ra que serve a agitação suicida,
em que desperdiçamos sangue e alma?!
Irmãos que somos em Flaubert, amigos,
parta-se a pena à voz do Eclesiastes!
Antes cavar a terra e debulhar os trigos,
que andar queimando os nervos
no vivo Inferno da beleza escrita...
Ó folhas ressequidas, enrugadas,
Lembrais-me um pó que se imagina oiro!
Almas-penadas,
que o cérebro espalhais em tinta no papel,
vede nos livros velhos, Camaradas,
a sorte que teremos, bem cruel!

***
O poeta subtitulou o seu livro de Poemas da Turbação e da Boa-Estrela. Uma doce volúpia borbulha na água cantante e clara do seu lirismo, certa perturbação de vida moça surge nos seus versos como primeiro perfume de flor de primavera, como seiva em alvoroço. Ora sintam o encanto penetrante da Epifania dos lilases.
Florescem os lilases brandamente,
— florescem os lilases com brandura.
E o seu perfume tépido, envolvente,
de tentações povoa a noite escura
De tentações povoa a noite lenta,
o aroma dos lilases em segredo.
Há no silêncio um bafo que adormenta,
— um bafo perturbante de bruxedo.
Flutua, errante, um hálito de incenso,
como o respiro dum serralho impuro.
E a noite evoca-me um jardim suspenso,
Com os lilases a florir no escuro.
O aroma dos lilases anda em cima,
— ainda em carícia a espalhar insônias.
Acordam no silêncio que se anima
não sei que dissolutas Babilônias!
E o poeta continua num ritmo lento e estranho,
quebrado numa indolência sensual.
Na Écloga da cidade pinta a buliçosa luz
da sua campina alentejana.
Atrás do sol, entrou cantando agora
não sei que abelha cor de mel e brasa.
Veio estonteada com a luz de fora
encher de primavera a minha casa.
Veio estonteada...
As suas asas de oiro
São gemas preciosas a voar.
Onde elas passam, cheira a trigo loiro,
— fica um perfume de écloga no ar!

Aos olhos do poeta rasga-se a janela do encantamento, onde passam as paisagens rurais, embaladas de bucólica música, a quimera dos longes, o perfume do escampado.
Antônio Sardinha é um estilista de monotonias musicais expressivas. A paisagem alentejana, a esmorzar-se aos olhos, num longe vago, influencia fortemente a sensibilidade Aguda do poeta, duma vibratibilidade estranha. Antônio Sardinha conhece o milagre de planicizar o ritmo, a perder-se na alma, como um verso cigano ao vento dos caminhos...
Gostaria de vos falar demoradamente deste poeta que, fechado nas fronteiras da Terra e do Passado e aceitando gostosamente uma disciplina,
— porque os limites doces que me imponho,
dão consistência às asas do meu sonho
e ajudam-me a subir ainda mais!
sabe abraçar um mundo de emoções e imagens,
mundo humaníssimo e quente, onde
ressa o coração da vida.

Antes de fechar este artigo, vou transcrever
um delicioso soneto "Sedas velhas"
que tem a graça duma pintura de tempos idos:
Nas rugas do brocado inda adivinho
dos corpos senhoris o antigo traço.
Eu amo as sedas velhas com carinho,
— não sei o que me diz o seu cansaço!
São gorgotões, damascos cor de vinho
com vozes lassas no recorte lasso.
Abraçam-se o veludo mais o arminho,
como quem vem dum serenim no Paço.
Eis que se anima o tafetá vermelho!
Como dum fundo aquático de espelho,
curvadas, passam as gentis Avós...
Oh, sedas velhas, que prazer eu sinto,
quando num sonho trêmulo, indistinto,
passeio as minhas mãos por sobre vós!

Os jornais portugueses anunciam a saída breve dum livro de versos de Antônio Sardinha, "Na Corte da Saudade", sonetos de Toledo.
Quantas vezes, em Madrid, no passeio de la Castellana ou no Retiro, à sombra das árvores e cercados de lindos bebês rosados — Os melhores brinquedos dos meus olhos infantis, dos meus olhos modernistas — Antônio Sardinha recortava-me no desenho de papel dum soneto a alma a Toledo, eterna quermesse da alma peninsular que se reflete, num encantamento bailado, nos olhos — espelhos côncavos de Grego, nos olhos genialmente deformadores de Grego...
"Na Corte da Saudade" está insepulto o corpo do duque de Orgaz, está insepulta a alma do duque de Orgaz...
Rio, Janeiro de 1923.

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