Publicado
originalmente no jornal "Diário Nacional", em sua edição de
09/06/1929. Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica de Iba Mendes
(2017)
— Prisioneiro,
seu nome?
— Vou
perdê-lo amanhã de madrugada, não vale a pena escondê-lo. Sou Parker Adderson.
— Seu
posto?
— Um
tanto modesto; os oficiais superiores são demais importantes para se arriscarem
missão perigosa de espião... Sou sargento.
— De que
regimento?
— Queira
desculpar-me. Minha resposta poderia dar uma ideia das forças que se acham na
sua frente. Vim até suas fileiras para obter e não divulgar informações desta natureza.
— O sr. é muito sagaz.
— Se o
general tiver paciência de esperar até amanhã, verá que não sou tal.
— Como
sabe que vai morrer amanhã?
— É uma
das solenidades tocantes da profissão.
O general
pôs de lado essa dignidade própria de oficial superior e de renome, até o ponto de sorrir. Mas ninguém em seu poder ou fora de suas boas graças, teria aceito como
feliz augúrio este sinal de aprovação. Não era benévolo nem contagioso. Não
comunicava às pessoas que favorecia; nem ao espião capturado que o tinha
provocado, nem ao guarda armado que acompanha o espião até a tenda, e que ficou um
pouco de lado vigiando o seu prisioneiro à luz amarela da vela. Sorrir não
fazia parte do dever deste guerreiro. Estava destacado por outro motivo. A
conversa prosseguiu; era em rigor um julgamento fácil de adivinhar: pena
capital.
—
Confessa então que é espião... que entrou no meu acampamento disfarçado como
está, na farda de soldado da Confederação, para obter informações,
secretamente, sobre número e a disposição das minhas tropas?
—
Principalmente acerca do número. A disposição delas eu já sabia e é bem triste.
O general
sorriu mais uma vez. O guarda, com uma noção mais severa da sua
responsabilidade, acentuou a austeridade no rosto, e ficou um pouco mais reto
do que estava. O espião, girando o chapéu cinzento sobre o dedo polegar,
examinava o ambiente lentamente. Era muito simples. A tenda era dessas comuns,
de formato retangular, medindo oito pés por dez, iluminada pela luz de uma
única vela de sebo, enfiada no cabo de uma baioneta, pregada numa mesa do pinho
à qual se sentava o general, agora ocupado em escrever, aparentemente esquecido
da visita involuntária. Um velho tapete esfarrapado cobria a terra. Uma velha
mala de couro, uma cadeira e um rolo de cobertores era tudo quanto a tenda
continha, porque, sob o comando do general Clavering, a simplicidade da
Confederação tinha atingido alto desenvolvimento. Pendurado num prego enorme no
mastro da tenda, havia um sabre comprido, uma pistola e cinto e — o que parecia
absurdo — um facão. Era costume do general referir a esta arma pouco militar
como sendo uma lembrança dos tempos pacíficos, quando paisano.
Era uma
noite tempestuosa. A chuva torrencial caía em cascatas sobre a lona da tenda,
fazendo efeito de um tambor surdo. Diante da forte ventania, a estrutura frágil
se sacudia, abalava-se e esforçava-se para escapar das estacas que a prendiam.
O general
acabou de escrever, dobrou a meia folha de papel e falou com o soldado que
vigiava Adderson.
— Pronto
Tassman... leva isto ao ajudante de ordens; depois volta aqui.
— E o
prisioneiro, general? disse o soldado, fazendo continência com olhar
interrogativo em direção do infeliz.
— Faça o
que mando! — respondeu o oficial secamente.
O
soldado, tomando a nota, inclinou-se e saiu da tenda.
General
Clavering tornou o seu rosto para o espião, contemplou-o fixamente, talvez com
piedade, e disse:
— É uma
noite horrível, homem.
— Para
mim é, general.
— Advinha
o que escrevi?
— Uma
coisa que vale a pena ler, com certeza. Talvez seja vaidade minha, mas
atrevo-me a supor que meu nome está ali mencionado.
— Sim; a
nota para uma ordem que vai ser lida às tropas sobra sua execução. Também uma
instruções para guiar o comissário no arranjo dos pormenores desse ato.
— Espero,
general, que o espetáculo será inteligentemente preparado, porque vou
assisti-lo pessoalmente.
— O sr.
não tem qualquer último pedido a fazer? Quer que chame um capelão, por exemplo?
— Não
vejo como posso obter um descanso mais longo, privando dele os demais.
— Meu
Deus, quer dizer que vai morrer só com pilherias nos lábios? Não sabe que a
morte é coisa séria, homem?
— Como
saber disso, se nunca morri na minha vida? Tenho ouvido falar que a morte é
coisa séria mas nunca de quem já a experimentou...
O general
ficou calado um momento. Este homem interessava-o, divertia-o até... um tipo
jamais por ele observado.
— A
morte, — disse ele — é ao menos, uma perda desta felicidade que temos, e de
oportunidades para mais.
— Uma perda da
qual nunca seremos conscientes pode ser suportada com calma, e portanto
esperada sem pressentimento. O general deve ter observado, entre todos os
mortos (que pelo seu caminho é hábito semear), que nenhum mostra sinais do
arrependimento.
— Mas se
a condição dos mortos não é pesarosa, em se ficando assim, o ato de morrer parece
bastante desagradável para quem ainda não perdeu a faculdade de sentir.
— A dor é
desagradável, não há dúvida. Nunca a sofro sem certo desconforto, mas quem vive
mais tempo, mais se expõe a estas inconveniências. O que se chama morrer é
simplesmente a última dor... Não existe realmente tal coisa "morrer".
Suponhamos, por exemplo, que eu tentasse fugir. O general ergue o revólver tão
prudentemente escondido sobre os joelhos, e...
O general
corou que nem uma moça honesta, depois riu suavemente, revelando dentes muito
brancos. Fez um leve aceno da cabeça e nada disse.
O espião
continuou:
O general
atira, e tenho dentro do estômago o que não engoli. Caio, mas não estou morto.
Depois de meia hora de agonia, então sim. Mas a qualquer dado momento dessa
meia hora, eu estaria ou vivo ou morto. Não há período transitório.
— Quando
for fuzilado amanhã cedo, será a mesma coisa. Enquanto consciente, estarei
vivo, quando morto, inconsciente. O destino parece ter arranjado o caso
perfeitamente nos meus interesses — à maneira por que eu mesmo lhe teria
ordenado. É tão simples, acrescentou ele sorrindo, que quase não vale a pena ser fuzilado...
Terminadas
estas observações, houve um longo silêncio. O general sentado, impassível,
olhava o rosto do espião, mas, na aparência, desatentamente. Era como se os
seus olhos montassem guarda sobre o prisioneiro, enquanto o pensamento ocupava
de outras coisas.
Em pouco,
soltou um largo suspiro, e exclamou quase imperceptível:
— A morte
deve ser horrível...
Assim
falou este homem da morte.
— Era
horrível aos nossos antepassados, disse o espião, gravemente, porque não tinham
inteligência suficiente para separar a ideia do consciente da ideia das formas
físicas por que é manifestado. Como uma ordem inferior de inteligência, a do
macaco, por exemplo, que seria incapaz de imaginar uma casa sem moradores, e
vendo uma cabana arruinada, imagina um habitante sofrendo. Para nós, é horrível
porque herdamos a tendência de pensar assim, explicando a noção pelas teorias
mais extravagantes e fantásticas de um outro mundo — da mesma maneira que os
nomes de lugares dão origem às lendas, explicando-os. O comportamento
desarrazoado se justifica por filosofias. O general pode enforcar-me, mas ali o
seu poder termina... não me pode condenar ao céu.
O general
parecia não ter ouvido. A conversa do espião tinha simplesmente levado seus
pensamentos a uma direção diferente daquela em que chegavam as conclusões, independentes de sua vontade.
A
tempestade tinha passado, e alguma coisa do espírito solene da noite
infiltrou-se em suas reflexões, dando-lhe uma cor sombria de temor sobrenatural
com talvez um elemento de presciência.
— Eu é
que não queria morrer, disse ele, ao menos numa noite destas.
Foi
interrompido pela entrada dum oficial do seu estado maior, capitão Hasterlinck,
preboste-marechal. Voltou a si; o olhar distraído desapareceu de sua
fisionomia.
—
Capitão, disse ele, respondendo à continência do oficial, — este homem é o
espião que foi capturado dentro das nossas fileiras com documentos
comprometedores. Ele já confessou. Como está o tempo?
— A
tempestade já passou e a lua está resplandecente.
— Bem. Leva
uma fila de homens e conduze o prisioneiro ao campo para ser fuzilado...
Um grito
de angústia escapou dos lábios do espião...
Atirou-se
para a frente, esticou o pescoço, abriu bem os olhos, e crispou as mãos.
— Meu
Deus! gritou roucamente, quase inarticuladamente. — O general enganou-se por
certo: esquece de que não devo morrer até amanhã.
— Não
falei nada de amanhã, respondeu o general friamente. Isso era presunção sua.
Vai morrer agora.
— Mas
general... peço... imploro que se lembre de uma coisa; — devo ser enforcado.
Levará algum tempo para erigir o cadafalso... duas... uma hora. Todo espião é
enforcado. Tenho direito sob a lei militar. Pelo amor dos seus, general,
considere como é pouco...
—
Capitão, cumpra com as minhas ordens.
O oficial
puxou da espada e com os olhos cravados no prisioneiro, apontou silenciosamente
para a abertura da tenda. O prisioneiro hesitava. O oficial, então, agarrou-o
pelo colarinho e empurrou-o delicadamente para diante. Ao aproximar-se do
mastro da tenda, o homem, frenético, deu um pulo e com agilidade felina, pegou
no cabo do facão, arrancou-o da bainha, jogou o capitão de lado, e com a fúria
de louco, pulou sobre o general, atirando-o ao chão, e caindo-lhe em cima. A
mesa tinha virado, a vela apagou-se e os dois lutavam cegamente na escuridão. O
preboste-marechal precipitou-se em auxílio do seu superior e lançou-se sobre as
formas que se debatiam.
Blasfêmias
e gritos inarticulados de dor saíram daquela charfurdia de membros e corpos; a
tenda caiu sobre eles e, debaixo das dobras embaraçosas, a luta continuava.
Cabo Tassman, voltando do seu recado e vagamente conjecturando a situação,
jogou no chão a carabina e pegou na lona movediça, ao acaso, numa tentativa
baldada de descobrir os homens embaixo, e o sentinela descarregou a carabina.
O tiro
alarmou o acampamento. Os tambores rufavam e as cornetas tocaram,
trazendo enxames de homens semivestidos ao luar, outros, vestindo-se e
correndo, entravam em linha ao comando dos oficias.
Estava
bem isso; assim os homens estavam organizados. Ficaram em posição de sentido,
enquanto o estado maior do general e os homens da sua escolta, estabeleceram
ordem na confusão. Ergueram a tenda caída e separaram os protagonistas
esfalfados e sangrentos daquela estranha contenda.
Esfalfado,
deveras, foi um — o capitão, que estava morto. O cabo do facão projetara-se-lhe
na goela, e tinha sido tio fortemente empurrado que a sua extremidade ficou
encravada debaixo do queixo, e a mão que desferira esse golpe, não conseguira
remover a arma. Na mão do morto estava sua espada, agarrada com firmeza tal que
desafiava a força dos vivos para soltá-las. A lâmina estava raiada de sangue
até o cabo.
Posto em
pé, o general caiu para traz sobre o chão, gemendo e ali desmaiou. Além de
pisaduras, tinha dois golpes de espada — um na coxa, outro no ombro.
Quem
sofreu menor dano foi o espião. Embora tivesse o braço quebrado, as feridas
eram o que poderia ter resultado de um combate com armas naturais.
Estava
tonto e mal compreendia o que tinha acontecido.
Encolheu-se
aos que o atendiam; agachou-se no chão e articulava protestos incoerentes.
Apesar do
rosto estar inchado pelos golpes e manchado pelas gotas de sangue, mostrava-se,
sob os cabelos em desalinho, tão branco, como cadáver.
— Este
homem não é louco, disse o cirurgião que preparava faixas, em resposta a uma
pergunta, está sofrendo do susto. Quem é e donde vem?
O cabo
Tassman começou explicar. Era a maior oportunidade de sua vida. Nada foi
omitido que pudesse realçar o seu papel nos acontecimentos da noite. Quando
acabou de contar, estava pronto a começar outra vez, ninguém lhe prestava mais
atenção.
O general
tinha já recuperado os sentidos. Ergueu-se sobre um ombro, olhou em redor e
vendo o espião agachado ao lado do fogo do acampamento, escoltado, disse
simplesmente:
— Levem
este homem para o campo para fuzilado.
— O
general delira, disse um oficial perto.
— Ele não
delira, disse o ajudante de ordens. Tenho uma nota que me deu sobre o caso.
Tinha dado a mesma ordem ao Hasterlinck — apontando para o preboste morto, e
por Deus, essa ordem será cumprida.
Dez
minutos mais tarde, sargento Parker Adderson do exército federal, filósofo e
espirituoso, ajoelhando-se ao luar e implorando incoerentemente pela vida, foi
fuzilado por vinte homens.
Enquanto
a selva ecoava no ambiente frio de meia noite, o general Clavering, prostrado,
branco e quieto, no ardor do fogo vermelho do acampamento, abria os grandes
olhos azuis e, contemplando com agrado os que estavam em redor, dizia:
— Como
tudo é silencioso!
O
cirurgião olhou para o ajudante de ordens. Era um olhar grave e significante.
Os olhos do paciente fechavam-se vagarosamente, e assim ficava durante uns
minutos. Então, com um sorriso de infinita doçura nos lábios, disse fracamente:
— Suponho
que isto deve ser a Morte.
E passou
ao Além...
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