9/27/2017

A barricada (Conto), de Pedro Rebelo


A barricada

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Passos soaram, não muitos; poucos e mal distintos. Quem era deteve-se, talvez, à porta; mas, se que se deteve, cobrou ânimo e subiu. Dava meia-noite; noite sem luar, escura e úmida. Nasceu daí, porventura, a indecisão de quem vinha. A escada íngreme. Quem quer que fosse, parou ao alto, olhou em roda, bateu palmas, medrosas e tímidas. Ouvia-se-lhe a respiração. O ruído acordou uma voz, dentro:

— Há alguém aí?

— Mandou saber se está melhor, se precisa alguma coisa...

— De onde é?

Dali defronte, do sobrado...

— Ah! Diga que está assim mesmo... Por ora não precisa coisa nenhuma. Diga que fica muito obrigado, ouviu?

Passos soaram de novo, não tímidos, nem medrosos; rápidos, como os de quem tem pressa de sair. Quem era desceu, parou à porta, colheu as saias, atravessou a rua, correndo, e sumiu-se.

Olhos que me ledes, detende-vos; parece-me que por aí anda uma incorreção. O ruído não foi acordar nenhuma voz dentro. Essa que se levantou lá ao fundo, na sala, mudou talvez de assunto; mas nem se calara, nem dormia há três noites. Calou-se agora; outra surdiu, mais baixa, voz conselheira e amiga.

— Eu em seu lugar, d. Adelaide, tratava de procurar bem... A boca do mundo fala muito, mas não fala sem razão. Se seu mano morresse, já a senhora não ficava atirada por aí, sujeita aos outros, precisando morar de favor...

— Se ele tivesse alguma coisa, já tinha dito.

— Podia não dizer. Não é por falar mal, mas a senhora mesmo sabe; ele sempre foi muito apertado. Gastava pouco e ganhava muito. Eu não via, mas meu marido contava. E não era só meu marido, eram os vizinhos todos. Só aquela causa do Mauá quanto não lhe deu? Pra mais de seis contos de réis. E o resto? Dinheiro não se some; quando a gente não gasta, ele fica.

— E há quanto tempo foi isso? Contos de réis também não duram sempre; às vezes, não duram um ano, quanto mais quatro ou cinco. Se maninho tivesse dinheiro ele trazia. Não tem nada, creia. Ontem, antes da senhora chegar, ele me chamou. Eu fui. Estava muito amarelo, com os olhos cheios d’água. Olhou para mim, encarou bastante, depois disse assim: — “Adelaide, seu mano vai embora... eu desatei a chorar; ele pegou-me na mão: — “Você sabe que seu mano não tem nem um vintém para lhe deixar, não é, maninha?” Eu disse que sabia, com a cabeça. Ele tirou-me as mãos dos olhos, puxou-me o rosto para bem perto: “Diga se sabe, Adelaide; eu não tenho nem um vintém, não é?” Os olhos dele estavam espetados nos meus. Ficou olhando, olhando... Eu disse que sabia. E vim embora. Se ele tivesse dinheiro, não fazia isto.

— A vista às vezes engana...

— Na hora da morte, D. Lúcia!

— A senhora é muito moça, não conhece o mundo; eu conheço...

— Por amor de Deus!

— Conheço; a senhora é que não conhece. Há de ver...

Escute.

Havia um rumor, pouco pronunciado, contínuo, não muito longe. Calaram-se ambas. Escutavam. O ruído vinha do quarto, ao fundo. Era como um resfolegar de doente. Gemidos acaso; acaso palavras soltas, sem nexo. O quer que fosse, mal se entendia, através das paredes, das portas cerradas, do longo corredor escuro. Mana Adelaide curvou-se para o lado da sala, pôs a mão em côncavo, bem junto do ouvido. E ficaram caladas, imóveis.

— Parece que está chamando...

— É o vento.

— Vento assim, D. Lúcia!

— Há de ser. Às vezes...

— Olhe.

Gemidos ou palavras soltas, percebia-se que alguma coisa era. Mana Adelaide levantou-se:

— Eu vou ver.

D. Lúcia pôs-se de pé, arredou a cadeira:

— Espere; eu também vou.

A outra sorriu.

Não é por medo, não. A mim não me metem medo os vivos, quanto mais os que estão para morrer. É que eu não gosto. Assim até é melhor; nem eu fico sozinha, nem a senhora vai sozinha também.

Foram. O corredor era longo, longo e escuro.

D. Lúcia levava uma vela. Alçava-a bem, para alumiar o caminho. O vento apagava-a quase. Pararam junto ao quarto. Mana Adelaide abriu a porta, entrou, chamou baixinho:
— Mano Malveiros...

Gemidos ou palavras soltas, o que era calou-se de súbito. D. Lúcia levantou a vela, para alumiar melhor. A luz bateu primeiro na cômoda, por sobre a lamparina; passou ao lavatório, parou na cama de ferro. Os lençóis agitaram-se; quem lá estava moveu-se, agarrou-se a eles, virou-se para a parede.

— Maninho está chamando?

D. Lúcia curvou-se para a cama, levantou mais a vela:

— Está chamando, dr. Malveiros?

Malveiros descobriu o rosto, magro, escaveirado, amarelo. Os olhos brilhavam-lhe, muito vivos, muito trêmulos. Ficou olhando, entre desconfiado e severo.

— Não conhece, maninho? É D. Lúcia, a vizinha aqui do canto...

O olhar de Malveiros buscava o de D. Lúcia; o dela é que o não buscava, nem reparara nele. Procurava outra coisa; e daí, bem pode ser que não buscasse coisa nenhuma. Andava da cômoda para a cama de ferro; mergulhava nos lençóis; ia da cama de ferro para as gavetas da cômoda. Traspassou-as, acaso, agudo e fixo que era. Mas, se a alguma coisa buscava, certo é que não a encontrou; voltou da cômoda com uma expressão de desânimo; subiu ao teto, desceu as tábuas do soalho, mirou-se no espelho do lavatório. O espelho disse-lhe porventura que se traía. D. Lúcia compôs o rosto, amorteceu os olhos. Quando Malveiros os encontrou, ressumbravam piedade pelo doente. Mana Adelaide ainda os achou piedosos e amigos.

— Está acabado, não é, D. Lúcia? Quem o viu, há dois meses! Lembra-se daquele jantar dos meus anos? Riu, brincou, dançou... Nem parecia velho! Para hoje estar atirado numa cama.

— Não acho que esteja muito mal, não... Agora, ficar assim no escuro é que lhe não há de fazer bem. Por que não deixa a vela em cima da cômoda?

— Luz forte no quarto! É porque a senhora ainda não viu o que ele faz. Não suporta nem a lamparina; é preciso botar uma coisa adiante, pra não deixar a claridade toda.

— Mas estar assim no escuro não é bom, não.

— É o que ele quer; diz que a luz lhe dói nos olhos...

— Talvez seja por outra coisa.

— Não é por outra coisa; deve doer mesmo. Não viu quando a senhora entrou com a vela, como ele se virou para a parede?

— Enfim, isso ainda pode ser... Mas por que é que não deixa mudar a roupa da cama? Doente nenhum faz isto. E então roupa úmida, como a dele está...

— A senhora sabe; ele quase que não se pode levantar. Já vê que andar de um lado para o outro, para deixar limpar a cama, incomoda. E depois, quando se fica assim, não é um lençol lavado que dá vida.

— Mas não precisava tirar a cama toda, agora parede. Quer ver então que ele está encostado à como é...

D. Lúcia ainda não concluíra, e já o lençol lhe estava seguro na mão; seguro por uma ponta. Puxou-o de um gesto rápido, da cabeceira para os pés. Talvez quisesse deslocar as almofadas; se é o que pretendeu, conseguiu-o. Os olhos mergulharam-lhe abaixo delas; regressaram em breve, deslumbrados, acaso satisfeitos. O lençol é que não veio, nem a mão de D. Lúcia. Malveiros agarrou-a, cravou nela os dedos hirtos. O relâmpago que lhe passou pelos olhos não foi tão rápido que ele o não surpreendesse. E segurava o lençol, com a mão livre, com o peso do corpo. Tremia todo, de raiva ou de frio. D. Lúcia teve medo, abrandou os olhos, deixou o lençol livre. Malveiros trouxe-lhe a mão, presa, até a beira da cama; empurrou-a para fora, para longe. Ela curvou-se ainda para a cama, tranquila a fala, os olhos resignados:

— Não quer, paciência. Mas ao menos é bom tomar alguma coisa quente. Por que não toma um caldo?

O olhar de Malveiros traspassava-a, desconfiado, ríspido. Cravou-se no dela; talvez lhe buscasse ler na alma, que não mente. Os olhos mentiam. D. Lúcia insistiu pelo caldo:

— Tome, que lhe faz bem. Nós vamos aprontá-lo, quer?

Nem esperou pela resposta. O que ela queria, era porventura ver-se fora dali. Tomou da vela, pôs-lhe a mão por diante, para abrandar a luz. Voltou-se para mana Adelaide:

— Não é, D. Adelaide? Vamos preparar um caldinho para ele...

Abriu a porta, saíram. Malveiros ficou só. Os passos de D. Lúcia iam-se calando, diminuindo. Ele ergueu-se na cama, não muito; pouco, com dificuldade. Apoiou-se às almofadas, aplicou o ouvido. Já nem se distinguiam os passos de D. Lúcia. Os olhos e o rosto iam-lhe tomando uma expressão de tranquilidade Não digo que se transfigurassem. A, mudança era lenta, como se ainda lhe sobrassem cuidados alerta. Aplicou mais o ouvido. Não vinha ninguém. Sentou-se na cama; as pernas caíram-lhe para fora do chambre, fluas, muito magras, sem cor. Dentro, na sala, havia um rumor de colheres.

Malveiros olhou em roda, voltou-se para a cabeceira, curvou-se um pouco, estendeu o braço. A mão dele mergulhou na almofada; foi lá ao fundo, voltou contraída e trêmula, menos trêmula do que contraída. Não afirmo o que trouxe, porque já se não conhecia bem. Eram papéis, num maço; oleosos, encorpados e úmidos. A alguns, mal se lhes distinguia um rosto de homem. Talvez nem fosse de homem. Números se que tinham, diversos, pequenos e grandes. Letras também; palavras até, em arabescos, em círculo, mais escuras num canto, mais claras noutro.

O rosto de Malveiros dilatava-se. Súbito, guardou o maço; aplicou o ouvido. Não vinha ninguém. Virou-o de novo, desenrolou-o, pô-lo sobre o joelho. Alisava os papéis; descolou-os depois, com vagar, com trabalho. Ia-os separando, um por um; não em silêncio, alguma coisa se lhe ouvia. Era como se cada papel daqueles lhe arrancasse um gemido. Gemidos ou palavras soltas. Talvez palavras; dir-se-ia que ele contava baixinho, a meia, voz. Talvez estivesse rezando. Mas o que era, acabou. Malveiros leve um suspiro de alívio, de desafogo. Teve-o e ficou sentado, olhando em roda, corno quem procura uma ideia.

Se é que a procurava, a ideia não veio; se é que veio, foi repelida. Os olhos dele iam tomando uma expressão de desânimo, de desespero, de dor. Fitava-os na cômoda, no soalho, no teto; passeava-os vagarosos, pelo chão. Por vezes, aplicava o ouvido. Não vinha ninguém. Ensaiou uns passos; vergavam-lhe as pernas. Meteu os papéis no seio; sentou-se, curvou a cabeça. Dentro, na sala, a voz de mana Adelaide ergueu-se, alta, surpresa:

— A senhora viu, D. Lúcia!

— Se eu vi?! Vi com estes que a terra há de comer...

Malveiros alçou a cabeça. Alguma coisa o reanimou, por certo. Prestou ouvidos; a voz de D. Lúcia calava-se, diminuía... Brilharam-lhe os olhos, lúcidos, vivos. Não eram os olhos de há pouco, feitos de desânimo, de agonia; eram olhos enérgicos, plenos de força, cheios de vontade. Levantou-se, trêmulo; firmou-se nas pernas, deu uns passos. Andava. Andou um pouco; os passos eram-lhe mais seguros. Foi até à porta... A porta estava aberta, cerrada apenas. Ele fechou-a a chave, com duas voltas. E veio direito à cama; parou, apoiado à cabeceira.

Olhava em roda. Dir-se-ia que lhe voltava a ideia de há pouco; se é que voltava, ficou; aceita, não repelida. Foi até a cômoda. Pisava melhor, mais firme. Parou, curvou-se, agarrou-a pelos cantos, de um lado. A cômoda era pesada, forte; ele puxou-a a custo. Puxou-a mais, arredou-a um pouco; arredou-a, moveu-a para fora. Passou para o outro lado, arrastou-a, moveu-a daí. O esforço cansava-o; suava de um suor frio. E arrastava a cômoda. Deu-lhe uma volta, pô-la ao longo do soalho; empurrou-a mais, levou-a até a porta, pô-la por trás dela, bem junto. Deixou-a ficar aí, tapando a entrada e voltou.

Agora não hesitava mais; andava como quem tem uma ideia fixa. Foi à cama, arrancou-lhe as almofadas, tirou as cobertas, as colchas. Dobrou o colchão, foi pô-lo sobre a cômoda. Agia rápido com delírio, com febre. Tirou as tábuas, foi encostá-las à porta. Voltou, curvou-se junto à cama; correu-lhe os dedos, trêmulos, rápidos, pela cabeceira. Buscava alguma coisa; achou um ferro, tirou-o. A cama dobrou-se, aberta. Abriu-a do outro lado, fê-la bater no chão, arrastou-a até à porta; deixou-a aí, de pé, ao lado da cômoda, de encontro às tábuas, apoiada ao colchão. Por cima de tudo, as colchas, as almofadas, os lençóis.

Voltava, mas parou em caminho. A vontade dele pretendia por certo ir mais longe; as pernas não foram, dobraram-se-lhe, desfalecidas, quase mortas. Caiu de bruços. A vista ia-lhe ficando trêmula, escura; ergueu-se nos braços, pôs-se de joelhos. Talvez se levantasse; não pôde. Arrastou-se, foi de rastros até o lavatório, pequeno, de ferro; agarrou-o por um pé, trouxe-o assim, arrastado, até a porta. Batiam-lhe os dentes; tinha as mãos geladas, gelados os pés. Um frio de morte, hórrido e lúgubre, apossava-se-lhe do corpo, subia-lhe à cabeça. Arrastou-se mais, aos poucos, para o meio do quarto; mirou a barricada, viu-a pequena e fraca; olhou em roda, à procura, pelas paredes nuas, pelo quarto vazio. Os olhos vagavam-lhe à toa; correram-lhe duas lágrimas. E foi através delas que ele lobrigou alguma coisa luzindo, num canto.

Os olhos trêmulos, a vista escura, não lhe reconheceram aquela escarradeira pequenina, de metal branco; o que ele via ia crescendo, crescendo...

Devia ser de prata, pesada e forte. Malveiros tentou mover um braço. Não pôde; o braço pendia-lhe gelado, morto. Moveu o outro, arrastou-se mais, para perto. O que era crescia, crescia... Ele já não via bem; ia-se-lhe cerrando um véu pelos olhos. Estendeu o braço livre, procurou, não via nada. Os pés inteiriçaram-se-lhe. O olhar dele mergulhou numa noite profunda e espessa. Ficou de bruços, imóvel. Vinha rompendo o dia. O sol entrou, do alto, pelas janelas; bateu sobre Malveiros, banhou-lhe o rosto amarelo, os olhos vidrados; estendeu-se, alagou todo o quarto de ouro fluido. Lá dentro a voz de D. Lúcia falava, conselheira e amiga:

— Deixe ficar o caldo; já não lhe pode fazer bem. O que a senhora precisa, é arrecadar tudo, logo que ele morra. As vezes aparecem parentes de fora...

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