Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
Ainda
hoje existe, junto à confluência de dois rios, um formoso castanheiro, a cuja
sombra eu me sento, sempre que por ali passo, haja ou não haja calor, e isto
pela razão muito natural de que, sendo eu criança, costumávamos sentar-nos,
minha mãe e eu, à sombra daquela mesma árvore, quando íamos a uma aldeiazinha,
que ficava perto da nossa. A pequena Distância do castanheiro veem-se ainda as
ruínas de um moinho, tais quais eram nos tempos saudosos da minha infância; e a
lembrança de minha mãe, do castanheiro e das ruínas, faz-me recordar de um
conto, que ela me contou, em uma tarde de verão, ao pé da árvore frondosa,
a cuja sombra, graças a Deus! ainda posso sentar-me.
O
último moleiro, que habitou o moinho, era conhecido naquelas redondezas pelo
apelido de Sêneca; e vejam lá, não vão mudar para o primeiro o acento que pus
sobre o segundo “e” deste apelido, pois que o moleiro de quem estou
falando, e que minha mãe conheceu e tratou, era tão modesto, que ainda hoje no
céu se veria muito aflito e contrariado, se o confundissem com o filósofo cordovês.
Não
tinha Sêneca pretensões a filósofo, mas era-o até sem querer, e a isto devia
ele indubitavelmente o seu apelido, em cuja aplicação não podemos deixar de
reconhecer uma filosofia muito profunda; se não, reparem os leitores, e
digam-me se não é bem admirável a do povo, que, com a mudança de um simples
acento, marca o abismo, que separa o filósofo da natureza do filósofo do
estudo! Tinha eu que fazer, se quisesse referir os muitos rasgos de engenho e
sã filosofia com que Sêneca ilustrou a sua trabalhosa e
modesta vida, e portanto limitar-me-ei a referir um dos que mais Cativaram
minha pobre mãe, de quem herdei o gosto que tenho pelas recordações da
infância.
Sêneca
não tinha outra família senão um filho de dez anos, nem outras cavalarias senão
um burro de vinte. Morreu-lhe a mulher, que era quem ficava no moinho, curando
das moagens, enquanto ele andava com o burro, levando e trazendo foles por
aldeias e casais, e o pobre Sêneca viu-se então em graves embaraços, porque os
seus ganhos lhe não permitiam tomar uma criada, que substituísse sua mulher no
moinho, nem um criado, que o substituísse a ele no transporte dos foles.
— E como te hás de tu arranjar agora? lhe
perguntavam os vizinhos, quando o viram viúvo, e sem outro auxílio mais que o
do pequeno.
— Não me dá isso cuidado, respondia Sêneca,
não faltará quem me ajude.
—
Isso é bom de dizer; mas quem te há de ajudar?
— Quem?... A Necessidade.
Os
vizinhos punham-se a rir do bom humor de Sêneca, porém sem compreender o que
ele queria dizer na sua.
Uma
certa manhã aparelhou Sêneca o burrico, pôs-lhe em cima um saco,
que continha quatro alqueires de farinha, e chamando o pequeno, disse-lhe:
— Rapaz, toma o burro pela arreata, e leva-me
esta carga à padaria de Somorrostro.
O
pequeno desatou a chorar.
— Que é lá isso, homem? perguntou-lhe o pai.
— Que há de ser de mim pelo caminho, se o
burro cair, ou se espojar no chão! exclamou o rapazito, sem cessar de chorar.
— Não te dê isso cuidado, disse Sêneca; se tal
acontecer, não faltará quem te ajude a levantar o burro.
— E quem é que me há de ajudar nessas devesas
tão solitárias, que não se encontra por elas viva alma?!
— Quem? A Necessidade. Se o burro cair,
ou se deitar no chão e se não poder erguer, chama pela Necessidade, e verás
como logo acode em teu auxílio.
— Está bem, disse o pequeno, limpando as
lágrimas com a manga da jaqueta; e pegando na corda do burro, tomou pela margem
do rio, caminho de Somorrostro, que distava uma légua do moinho.
— Ora, ora, ora! Sempre este Sêneca tem coisas!...
diziam os vizinhos, ao verem o rapazito com o burro atrás de si. Com que então
a Necessidade, com cujo auxílio contava Sêneca, para levar e trazer os foles,
era essa pobre criança?!... E o pequeno, quem é que o há de ajudar?
Seguia
o filho de Sêneca com o seu burro à arreata ao longo dos carvalhais, que
assombram as margens do rio, que corre pelo vale profundo, que separa
Somorrostro de Galdamez e Sopuerta, quando, ao chegar a um pequeno areal muito
suave, fez o burro esta reflexão:
—
Ai! que bela cama para eu descansar um pouco!... e então, se eu pudesse soltar
esta maldita carga, que me vai amolando as costelas!
E
de repente, antes que o pequeno olhasse para traz, estirou-se ao comprido no
meio do chão.
— Ai! minha mãe!... exclamou o rapazinho
aterrado; — porque convém saber que em Espanha, e com especialidade na Biscaia,
não só aos pequenos como também aos grandes, o primeiro auxílio que lhes ocorre
invocar nas maiores aflições, é sempre o de sua mãe, ainda mesmo que já a
tenham no céu.
E
pegando numa vergasta começou a zurzir o burro sem dor nem piedade; porém o
animal, por mais esforços que fazia para se levantar, não o podia conseguir.
Estava
já o pequeno quase a chorar, quando se lembrou do conselho, que o pai lhe havia
dado, e, em vez de dar largas ao pranto, começou a gritar:
— Necessidade! Necessidade! faz-me o favor de
vir aqui ajudar-me a erguer este burro?!
O
pequeno bem olhava para todos os lados, a ver se aparecia a Necessidade, mas
não via ninguém. Já cansado de chamar e de esperar pela Necessidade, desatou o
arrocho, que prendia o saco ao aparelho do burro, e aliviou-o da carga; em
seguida deu-lhe uma vergastada e o animal ergueu-se de um salto. Então o
pequeno tomou o burro pelo cabresto, levou-o para junto de uma ribanceira, e rolando
o saco até lá, pôde, a muito custo, colocá-lo em cima do animal; apertou-o bem
com o arrocho, montou-se sobre a carga, atirou uma pancada ao burro, e
prosseguiu no seu caminho, mais alegre que umas páscoas.
Passada
uma hora chegava o rapaz ao moinho, cantando e fazendo trotar o seu ginete.
— Olá, pequeno, disse-lhe o pai, apenas o
avistou, como te foi pela tua viagem?
— Muito mal, meu pai.
— Então o que te aconteceu, homem?
— Deitou-se o burro no caminho, e, por mais
pancadas que lhe dei, não foi capaz de se levantar.
— E então o que fizeste?
—
Desprendi a carga, levei o burro para o pé de uma ribanceira, fui rolando o
saco até lá...
— Bem, bem, já percebo. Quer isso dizer que
chamaste pela Necessidade, não é assim?
— Chamei, chamei; fartei-me até de chamar; mas
não apareceu...
— Rapaz, disse Sêneca, vê como tu te enganas;
— quem te levantou e carregou o burro não foi senão a Necessidade.
Tinha
razão Sêneca, e também eu a tenho para dizer aqui que a necessidade presta
tanto auxílio e tamanhos benefícios ao homem, que não sei como ainda lhe não
deram a cruz de beneficência.
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