Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
A
grande montanha de Colisa, que se ergue entre as Encartações de Biscaia, e
a demarcação jurídica de Castela, era na idade média uma espécie de Tebaida,
onde faziam vida penitente alguns anacoretas, aos quais se atribui a edificação
do santuário que a coroa.
Sendo
eu criança, e caminhando com minha piedosa mãe por uma montanha das
Encartações, paramos a descansar, ao descobrir o vale onde habitávamos.
Era
por uma tarde aprazível de verão. O sol escondia-se por detrás dos
montes, que recortavam o horizonte, e nas quebradas das serras ouviam-se
os chocalhos do gado, que descia ao vale; em baixo, na planície, saíam as
raparigas das herdades, e pondo à cabeça as suas bilhas, dirigiam-se, cantado,
à fonte do Castanhal, para que seus pais e irmãos achassem em casa
água fresca, quando, ao soar o toque da oração, lançando ao ombro as enxadas, e
rezando as Ave-Marias, se encaminhassem para o lugar.
Do
cimo do outeiro coberto de fragrantes margaridas, brancas de neve, onde minha
mãe e eu estávamos sentados, contemplando o nosso querido e formoso vale, em um
de cujos extremos avistávamos, meia oculta por frondoso arvoredo, a nossa
aldeia ainda mais querida e saudosa, descobria-se o santuário de Colisa.
Entramos
a falar daquela ermida, e minha mãe, que tinha uma fé santa e cega nas
tradições religiosas, que brotam e vivem à sombra dos santuários das montanhas,
sem que possam os séculos alterar-lhes o viço e a frescura, prendeu-me a
atenção, e comoveu-me deveras a alma contando-me o que, a meu turno, vou
contar-vos.
Vivia
nas solidões de Colisa um santo ancião, chamado Cosme, que passava uma terça
parte da sua existência entregue à adoração e glorificação de Deus, e o
restante guiando e socorrendo os viajantes, que atravessavam aquelas montanhas;
e isto pela razão de que, naquele tempo, como as guerras de partidos
ensanguentassem de contínuo os vales, fugiam deles os caminhantes, e
transitavam pelos montes mais desertos, e afastados do comércio dos homens.
Sempre
que Cosme socorria algum viandante extraviado, ou extenuado de fome e cansaço,
ao soar o toque de Trindades na igreja de Valmaseda, que se avistava lá em
baixo, no pé da montanha, aparecia-lhe um anjo, que lhe sorria amorosamente, e
que logo se remontava ao céu, deixando-o imerso em mística alegria.
Um
dia, de manhã, estando os montes cobertos de mui densa névoa, saiu Cosme da
miserável choça, onde vivia vida penitente, e pôs-se a divagar por aqueles
bosques espessos e fragosos, a ver se encontrava alguns caminhantes, que
neles se houvessem extraviado, e, de repente, deu de cara com uns poucos de
homens, que levavam outro manietado.
— Por que vai preso esse infeliz? lhes
perguntou ele.
— Porque é um grande criminoso, a quem a
justiça condenou à morte, lhe responderam.
— Quem as faz paga-as, disse o
anacoreta, dando tréguas à sua compaixão.
Os
executores da justiça de Valmaseda detiveram-se mais acima, numa encruzilhada,
pegaram num grande madeiro seco, que, havia muitos anos, estava estendido ao
lado do caminho, fixaram as extremidades desse madeiro seco nos primeiros
galhos de duas árvores paralelas, lançaram um laço ao pescoço do criminoso, e
suspenderam-no daquela forca improvisada, voltando a Valmaseda apenas se
certificaram de que ele tinha expirado.
Nesse
mesmo dia em que, por sentença do tribunal de Valmaseda, foi enforcado um
grande criminoso, no caminho de Colisa, salvou Cosme da morte muitos
viandantes, que, sem o seu auxílio, seriam devorados pelas feras, ou se teriam
despenhado nos precipícios daqueles temerosos desvios, então mais temerosos do
que nunca, por causa da espessura do nevoeiro.
Recolheu-se
à sua morada, agradecendo a Deus o haver-lhe dado forças para socorrer os seus
irmãos, e, apenas chegou, feriu-lhe o ouvido o toque da oração, que soou, lento
e solene, na longínqua torre da igreja de Valmaseda. — O anjo porém não lhe
apareceu naquela noite!
O
santo ermitão encheu-se de terror, com a lembrança de que teria ofendido a
Deus, visto que o anjo se furtava aos seus olhos; mas por mais que pesou as
palavras, que proferira, as suas obras e pensamentos de todo o dia, não
lhe foi possível atinar com o agastamento do Senhor.
Aquela
noite passou-a toda em contínua oração; chorou, macerou o corpo, pediu a Deus
perdão e misericórdia para as suas faltas, e logo que raiou a aurora, como a
montanha se conservasse coberta de espessa névoa, saiu em auxílio dos
caminhantes.
De
repente achou-se na encruzilhada, e ao ver diante de si a forca, da qual pendia
ainda o cadáver do criminoso, justiçado no dia antecedente, recuou cheio de
repugnância e movido de espanto; e levantando a vista acima do cadáver, que
estava preso da corda, viu o anjo pousado no madeiro da forca.
O
anjo, longe de lhe sorrir então amorosamente, como de costume, olhava-o com
semblante severo e carregado.
Cosme
parou; e com quanto ignorasse qual fosse a sua culpa, lançou-se de joelhos,
sobressaltado e cheio de terror, ergueu as mãos para o anjo, e implorou perdão
e misericórdia.
—
Cosme! disse-lhe então o anjo, incorreste no desagrado do Senhor e precisas
fazer grande penitência para recuperar a sua proteção. Ontem, em vez de
confortar e consolar o desgraçado, que está pendente desta forca,
escarneceste-o, e olhaste com indiferença para a sua tribulação. Desprende o seu
cadáver da forca, sepulta-o em sagrado, e lançando em seguida esse madeiro aos
ombros, leva-o pelo mundo, e seja ele o único travesseiro, em que descanses a
cabeça.
— E poderei eu ainda um dia obter o perdão da
minha culpa? exclamou Cosme lavado em pranto de arrependimento.
— Sim, lhe tornou o anjo. Quando desse madeiro
brotar um ramo verde, é que o Senhor te perdoou.
Dito
isto, subiu o anjo ao céu, cercado de músicas misteriosas e de brilhantes
resplendores.
Cosme
acercou-se animosamente do cadáver suspenso da forca, desprendeu-o e deu-lhe
sepultura; pegando em seguida no madeiro, cujos extremos se apoiavam nos
primeiros galhos de duas árvores fronteiras, foi com ele aos ombros pelo
mundo, segundo as indicações, que o anjo lhe havia dado.
Andava
Cosme pelo mundo com o madeiro da forca ao ombro, e toda a gente o escarnecia e
fugia dele horrorizada.
Uma
noite, tendo perdido a esperança de encontrar asilo entre os homens, penetrou
num bosque, esperando encontrá-lo no meio das feras, e vendo uma luzinha
através da espessura, encaminhou-se para ela, e deu consigo à porta de uma
cabana, onde uma velhinha dormitava, junto do lume.
— Santinha, disse ele à velha, com voz
suplicante, deixe-me, pelo amor de Deus, passar aqui esta noite.
— Não pode ser, lhe tornou a velha, porque
tenho dois filhos, que são bandidos, e que devem chegar dentro de uma
hora; se aqui o encontrassem, com certeza o matavam.
Cosme
confiava piamente na promessa, que o anjo lhe tinha feito de que o senhor lhe
perdoaria, e como visse que o madeiro da forca não tinha sinais, que indicassem
que estava para rebentar, de onde se depreendia que vinha ainda longe o momento
da sua morte, insistiu em pedir à velha que lhe desse pousada, no que ela, por
último, conveio, esperando conseguir dos filhos que o não assassinassem.
Estava
Cosme exausto de forças e, retirando-se para um canto da choupana, pousou no
chão o madeiro da forca, e deitou sobre ele a cabeça.
Condoída
a velha de o ver descansar em travesseiro tão duro, ofereceu-lhe um feixe de cheirosa
erva do monte, mas Cosme o recusou, dizendo: — ofendi o Senhor, dizendo a um
criminoso a quem levavam à forca: “quem as faz, paga-as”, e para que o
Senhor me perdoe, vou pelo mundo carregado com este madeiro, que deve ser o
único descanso da minha cabeça, até que dele brote um ramo verde, que será
o sinal de que o Senhor me perdoou.”
— Ai! exclamou a velha, rompendo num choro
inconsolável, se é tão difícil para quem se arrepende e unicamente pecou por
palavras o alcançar o perdão do Senhor, quanto o não será para esses infelizes,
que, como os meus filhos, pecam todos os dias por palavras e obras, e não têm
no coração um vislumbre sequer do arrependimento.
O
ancião adormeceu com a cabeça deitada no madeiro da forca.
Uma
hora depois, chegaram os bandidos, e ao verem-no, arrancaram dos punhais para o
assassinar.
A
mãe, porém, contou-lhes a história daquele ancião, e pediu-lhes de joelhos que,
longe de o matarem, se arrependessem, como ele, das suas enormes culpas.
— Pois bem, perdoe-se-lhe a vida, responderam
os bandidos, fazendo entrar os punhais na bainha, e acrescentaram, soltando uma
gargalhada de escárnio:
— Quanto ao arrependimento, havemos de o
ter quando brotar o tal ramo verde desse madeiro seco.
Principiaram
os bandidos a cear. Quando acabaram, dirigiram a vista para o canto da cabana
onde dormia o velho, e viram, com assombro, que do madeiro seco tinha brotado
um ramo verde e mimoso! Romperam então em amargo pranto, rogando a Deus que
lhes perdoasse as suas culpas.
Ao
som de tais vozes acordou Cosme, e ao ver que do madeiro seco tinha brotado uma
vergôntea verde e louçã, expirou de alegria; e o anjo baixou, sorrindo
amorosamente, a tomar conta da sua alma, e a levá-la consigo para o céu.
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