9/12/2017

A partilha (Conto), de Coelho Neto


A partilha

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Cantava, e as lágrimas rolavam-lhe em dois fios ao longo da face magra e pálida. Sofria, mas, como era preciso que o pequenino adormecesse, cantava, indo e vindo, devagar, embalando nos braços a criança. O mais velho — três anos — olhava-a risonho e, de quando em quando, cantarolava: “Estou com fome, mamãe! Estou com fome...”

E o pequenito, insone, muito esperto, a boquinha colada ao peito, sugava. “Estou com fome, mamãe...”: cantarolava o outro.
Ia alta a manhã; mas, se o sol alegrava o quintalejo, que tristeza em casa! Viúva, tísica, desfigurada pela moléstia e pela fome, tímida demais para pedir esmolas, que havia de fazer a desgraçada: “Estou com fome, mamãe”: cantarolava o mais velho.
— Espera, filho! Espera!
Como o pequenino adormecesse, a mãe foi pé ante pé, e deitou-o sobre um fofo colchão de panos, a um canto da casa: e o mais velho, seguindo-a, cantarolava sempre:
“Estou com fome, mamãe...”
— Não faças bulha, filho: espera. E, acenando-lhe, passou à cozinha. Mas que havia de fazer?
Ardia a derradeira acha: e a mãe, os olhos rasos d’água, pôs-se a soprar a lenha para atear o lume, enquanto o filho, que se lhe agarrava às saias, cantarolava: “Minha mãezinha... estou com fome”— mas já contente, vendo que a chaleirinha fumegava. À mesa, porém, quando a mãe lhe apresentou a tigela e o pedacinho de pão da véspera, o pequeno fitou-a com espanto:
— Só café, mamãe?
— Só, meu filho...
O pequeno, levando a colher à boca, foi repelindo a tigela, com um beicinho, prestes a chorar.
— Não chores: olha que vais a acordar o maninho! Espera!
E, desabotoando o corpinho, tirou o seio farto, pojado de leite e espremeu-o, trincando os lábios descorados por onde as lágrimas corriam fio a fio, e, entregando a tigela ao filho:
— Toma, e não faças bulha!
E o pequeno, arregalando os olhos, satisfeito: “Agora sim!” pôs-se a cantarolar.
Baixinho, então, a mãe lhe disse: — E não peças mais, ouviste? o outro é para o maninho. — E foi, pé ante pé, espiar o filho que dormia.

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