9/20/2017

A pena de Tálio (Conto), de Rebelo da Silva


A pena de Tálio (Romance Histórico)

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

---

Mais uma novela sai a tentar a fortuna.

Que sorte a espera em caminhos tão perigosos?

Como outras mais dignas de acolhimento, recebida pela indiferença, irá jazer no silêncio, ou ditosa, sem prendas, descansará nos braços dessa hospitalidade benévola, que em uma hora paga meses e anos de vigílias?

Deus o sabe!

São estas as criações do aceso imaginar, de que falavam os trovadores, e por mais que se queira disfarçar, o coração do autor, verdadeiro coração de pai, é inseparável delas, seguindo-as ansioso pela beira ao precipício, e acompanhando-as de cuidados até alcançarem o suspirado termo da jornada.

Será orgulho só, e cobiça de glória?

Não! É que as filhas da inteligência também são filhas queridas, e levantando-se para entrar no mundo, levam-nos consigo a alma e o amor! Nasceram de nós, e vimo-las balbuciar e crescer, e nas longas noites, em que o pensamento percorre as ruínas do passado, e os espaços infinitos, que a imaginação povoa, conversaram com o nosso espírito, e fizeram seu enlevo.

De que modo brotam, e quem dá o ser a estes entes e ideais que a chama do engenho torna mais duráveis muitas vezes do que a própria realidade? Um raio de luz, um sorriso da fantasia, um acaso basta!

Entre mil confusas sombras, que se agitam, a mente escolhe, e infunde-se em algumas. Então o quadro surge sem podermos dizer como; a tela anima-se pouco a pouco, e as figuras, já com as cores da vida, começam a existir, umas para não morrerem como as de Romeu, de Hamlet, e de Beppo, outras para brilharem um só momento, e logo se apagarem no tropel das outras que vêm chegando.

A forma o que faz depois é pintar ou cinzelar seguindo a visão interior; mas a imagem está dentro da alma; só ela a vê e a sente, e nem tinta, nem palavras a revelam como nos apareceu, com metade da viveza com que nós a conhecemos.

Este romance nasceu assim, e do mesmo modo nasceram e hão de nascer outros.

A leitura de alguns capítulos do segundo volume da História de Portugal do meu amigo Alexandre Herculano suscitou o assunto. Disposta a imaginação, um dia acordou de repente aquilo que um escritor alemão denomina o nosso sexto sentido, e boa ou má, feliz ou deplorável, estava traçada a abria como havia de ficar, e como hoje se oferece, porque a reflexão e a lima podem polir as grossuras e os defeitos superficiais, mas na essência não tocam, sob pena de sair um monstro, ou talvez pior, uma estátua regelada.

Depois de feito o livro era fácil ligá-lo a remontadas cogitações, e administrar-lhe o batismo filosófico; mas tendo a desgraça, ou a ventura, de acreditar pouco na missão política da arte, deixei as teorias sociais e os problemas grandiosos no lugar que lhes pertence. Sempre entendi que se invadiam assim, mas talando-as, duas províncias independentes; e que a preconizada conquista de uma pela outra seria vitória efêmera, e pouco digna de louvor se em verdade é lícito dizer-se que seja vitória!

Interpretar fielmente a natureza, expressar os grandes rasgos, de que se compõe a fisionomia de uma época, e não desvairar muito na análise do coração humano, decifrando por ele o mistério da existência, pareceu-me sempre não ser a menor dificuldade do gênero; e como raros a têm atravessado incólumes, acho que os Cooper, os Walter Scott, e tantos imaginadores da mesma escola, ocupam de direito o posto, que o triunfo lhes granjeou.

Se eles, que foram os mestres, temeram passar além, e se os seus monumentos nem por isso deixam de ser vistos de toda a parte, enquanto desabam em ruínas, dias depois, as construções ambiciosas dos inovadores, creio que não merecerá censura o ater-se qualquer tão obscuro como eu aos bons modelos, e de longe, na mesma distância, a que se reputa deles, fazer por agradar sem se atrever a mais.

De Cervantes a sir Walter Scott e a Goethe, desde o imortal romance do Quixote até à soberba epopeia em prosa de Ivanhoé, e à sombria e esplêndida manifestação de Fausto, a forma tem adiantado muito.

Não sei se resta ainda que inovar, ou se a reforma deverá parar por aí, por maior prudência. É delicada e espinhosa a questão!

Entretanto não duvido acrescentar que a verdadeira originalidade reside para mim na ideia, na propriedade com que se retrata, na expressão e na cor dos costumes, que se avivam.

A travessura, que se jacta de infringir deliberadamente as regras, e que se chama arrojo e novidade ao misto híbrido da anarquia, nunca me deslumbrou. Vive apenas curiosidade vulgar, e como esta se desvanece com a mesma rapidez com que se excita, o que torna o livro durável e aceito, a estima e a correção, hão de faltar eternamente, e nada o poderá suster na sua queda.

Imaginando um romance, e colocando a fábula nos fins do segundo quartel do século 13, procurei desenhar as feições das diversas classes com a possível exatidão, explicando ao mesmo tempo o viver e crer da época, os interesses e ideias que a animaram, na prolongada luta, que acabou por fim arrancando a coroa ao desditoso Sancho II.

A cena histórica de si grandiosa e variada encerra elementos que a fantasia mesmo nem sempre ousaria conceber.

Interpretados por uma consciência austera, e por uma crítica elevada, os monumentos revelam-nos a maior parte do segredo tenebroso; e os dois vultos principais de Sancho Capelo, e do astucioso conde de Bolonha, seu irmão, levantam-se do sepulcro, e quebram com a lousa as mentirosas inscrições, que a lisonja ao vencedor, e a calúnia contra o vencido tinham lavrado no mármore, sem pejo de profanar a paz dos mortos, ultrajando a justiça de Deus!

Quem ler a narração, direi antes escultura de relevo em que Alexandre Herculano estampou a imagem deste período, não menos fértil em perfídias e infâmias, que fecundo em rasgos de nobre lealdade, apenas voltar as primeiras páginas, logo sente ativas e enérgicas em torno de si as paixões ardentes da meia-idade, vendo passar os homens, como a época os formara, e o ódio das parcialidades os caracterizou.

Que mais é preciso para o romancista delinear o painel, distribuir as figuras, e adaptar o colorido à cena?

Desenhando por modelos tão perfeitos que mais se desejará ainda para fundir o ideal em tipos vigorosos e naturais? Não acha ali conglobados e em um só tantos dramas de ação e de sentimento? Não sacodem os sudários à nossa vista interrompendo o pesado sono de sete séculos, esses guerreiros, cujo peito foi de ferro como as armas, esses prelados orgulhosos, cuja voz envenenou a luta, e, embora fossem poucos, esses corações de ouro, firmes no dever, que abraçados ao infortúnio, preferiram o caminho do desterro com o príncipe desditoso à versatilidade afrontosa de ornar o triunfo da ambição?

A tradição, lembrando-se mais do que a história, simbolizou em um só nome toda a poesia destes exemplos raros, mas admiráveis. Martim de Freitas recusando entregar as chaves de Coimbra, enquanto não se levantasse desobrigado do preito pelo testemunho dos seus olhos, é a personificação dos cavaleiros, que não dobraram a fé a dádivas e ameaças.

Como Egas Moniz, o velho lidador, exprime em toda a formosura viril do tipo os brios da antiga honra portuguesa, e a generosa abnegação do sacrifício! Depois dele encontraremos ainda nas vésperas de d. João I o alcaide de Faria.

Não se imagine, porém, que, apontando o severo desenho da história, o aceitemos para nós como juízo ou queiramos impô-lo como regra absoluta, e limite desta qualidade de novelas. Longe disso! Eira fazer de duas coisas ótimas uma péssima.

A verdade da poesia não é a verdade austera da ciência. A invenção e o estilo sempre desfaleceram em ferros, e não os há mais duros, que a cega obediência, que semelhante sistema exige.

Como as fadas dos contos populares, o romancista goza de altos privilégios. Basta um aceno da sua varinha de condão, também, para as distâncias desaparecerem, para os segredos escondidos se descobrirem, e, em casos urgentes e extremos, para até falarem vivos e sadios personagens, que anos antes tinham deixado o mundo e as suas vaidades.
Nem sempre, nem nunca é a sua divisa.

Guardadas ais leis da verossimilhança, pode lavrar como entender a moldura da sua fábula. A história será como um espelho onde ela se reflita.

Uma vez que sejam humanas e possíveis as figuras, e que por obras e palavras não desmintam as crenças e os costumes, há plena liberdade de sair e entrar, de mandar falar os mudos, e de ressuscitar os mortos.

As normas prescritas pelo gosto e pela arte só lhe proíbem o absurdo, a incoerência, e a deformidade; porque os monstros em toda a parte são horrorosos.

No mais interpretação livre e independente.

Nunca me pareceu grande mola dramática o belo-horrendo.

Sem excluir de todos os Quasímodos e Haudibras, acho muita graça à redonda e galhofeira pessoa do nosso amigo Sancho Pança, e ao empinado ventre e jovial presença do honrado sir John Falstaff, o Sancho inglês, que Shakespeare nos deixou como protesto contra o spleen do sua nevoenta e enfumada Albion. Se a família dos Adônis e Narcisos não é extensa, nem espirituosa, a nova raça dos abortos físicos e dos aleijões morais, não vejo que possa e deva suprir as vagaturas com bom êxito.

Felizmente os pesadelos literários envelheceram depressa; e hoje não é vulgar o perigo de encontrarmos o cemitério no prólogo, o purgatório no segundo ato, a dança das caveiras no terceiro, e o inferno, com seus demônios e diabruras, no epílogo.

Deus é grande!

Nunca senti mais viva e sincera comoção do que ouvindo representar a admirável tragédia de Frei Luís de Sousa.

Nunca tanto se me comprimiu o peito, nem me saltaram assim as lágrimas, como assistindo àquele espantoso sacrifício de duas almas inocentes e amantes, condenadas a sobreviver à própria ternura e felicidade, sepultando o coração a arder ainda na fria mortalha do claustro

Que drama, que paixão, e que imenso e profundo terror!

O diálogo contudo parece que todos o podiam dizer facilmente; aquelas cenas e aquelas pessoas julgar-se-ia que foram da nossa intimidade, e que chorando e magoando-se estavam conosco há pouco ainda, e a nós se queixavam.

Sem exagerações, sem antíteses forçadas, sem imagens estrondosas, a ação chega às últimas raias da trágica, e a prosa, subindo insensivelmente, voa onde raras vezes se remontou o verso!

Tudo ali é natural e verdadeiro: e entretanto o ideal, na sua mais elevada e grandiosa expressão, domina tudo!

Assim é que devo crer a arte. A originalidade consiste naqueles toques finos, naquela voz e sentir tão nossos, tão portugueses, que nem um momento nos deixam perceber que assistimos a uma ficção.

Que venham os abortos e os monstros depois e as suas visagens e arremessos: e em vez de terror causarão riso.

Farão o mesmo efeito, que a formosura ingênua e simples ao pé da velha casquilha e rebocada.

Deve, porém, notar-se que o século 16 não é o século 13, e que a interpretação, que naquele exprimia a verdade da vida, neste seria falsa e incompleta.

De Felipe II a Afonso III, e mesmo a d. Manuel, a jornada pode dizer-se longa, e a todos os respeitos bem diversa.

Nos quadros da meia-idade o maior perigo consiste em se lhes errar a expressão, atribuindo às paixões e sentimentos linguagem e caráter, que lhes foram desconhecidos, e que transportam a ação para anos muito posteriores.

Há um certo verniz moderno, que é mortal para as cenas antigas, porque as retinge, desfeia, e desmente a cada momento.

Em uma carta do Sr. Prosper Merimée, escrita acerca de um dos meus ensaios de novela com excessiva benevolência, o autor de Colomba e de Cármem censura o personagem de Gomes Lourenço, e observa que o acha demasiado sensível e delicado para a época remota em que figura. Estou certo de que será assim; mas por mais que o desejemos não é sempre fácil, sobretudo em rasgos apaixonados, respirar exclusivamente na atmosfera de um século extinto, traduzindo as ideias, e os vocábulos de tal modo, que as entendam todos, e que o verdadeiro cunho se não apague.

Naquelas eras de rudes cavaleiros, e de pouco menos rudes prelados, os atos e as palavras concordavam com os costumes; mas os crimes e os vícios, se não eram em menor escala, levavam aos de hoje a vantagem única de não se agravarem com a hediondez da hipocrisia.

A força, manifestada em tudo, zombava das leis, atropelava os direitos, e nem sempre se detinha respeitosa às portas do templo, e diante das aras consagradas; porém no seu ímpeto brutal julgaria rebaixar-se, recorrendo a pretextos e sofismas para se escudar.

Encostado à lança, ou com a mão no punho da espada, o rico-homem falava como senhor, e oprimia como tirano, se olhando em roda, e contando os seus, podia supor que ficava impune. Mosteiro, conselho, terras do rei, ou bens de burguês, nada escapava à sua cobiça, uma vez que julgasse fácil a presa, e seguro o lanço. As suas armas, como as garras da águia, caíam sobre quanto lhe podia despertar o apetite.

Mais brandas, mas traindo a aspereza do seu tempo mesmo por entre a suavidade do sexo, as mulheres no desdiziam da feição geral do século. A sua ternura à mais leve injúria sabia fazer-se cruel e desapiedada. A febre do ciúme, ou o ressentimento do orgulho, descompondo-lhes a beleza, e mudando num instante o coração, depressa o convertiam de mavioso e bom em implacável e quase ferino.

Não são raros, nem difíceis de colher os exemplos disso!

Há mais sedutor e fascinante olhar, que o da donzela árabe, quando a pupila negra e aveludada num relâmpago fugaz denuncia o júbilo quase selvagem do amor, que lhe agita os seios, e alegra os lábios de um riso tão sedutor? Que se veja iludida ou afrontada, e os mesmos olhos tão meigos antes que pareciam destilar em torrentes todas as doçuras do afeto, acesos subitamente em sinistra chama, logo hão de revelar que fugiu o anjo, porque daí em diante mora naquele peito, cujas dores são fundas e silenciosas, o pensamento da vingança e a impaciência do ultraje!

A gazela transforma-se em tigre, e se esconde as garras por momento é só para levantar o salto com mais certeza. Na existência ignorada e agreste do aduar, nas espaçosas campinas, que se estendem a beijar as orlas do vasto mar de areias chamado Saara, quantos dramas semelhantes se têm desenlaçado, afogando a morte repentinamente o amante crédulo, quando cuidava reclinar-se nos braços da ternura?!

Eis o que procurei não perder de vista no esboço dos caracteres, e na descrição das cenas.

Abstive-me, porém, de remendar o diálogo de palavras obsoletas. Onde não chegam as dos nossos dias preferi estender a frase para melhor aclarar o sentido.

Um romance que fosse necessário verter da língua velha para a nossa com o Elucidário de um lado, e o Glossário de Ducange do outro, seria talvez uma obra-prima como testemunho de erudição, mas duvido que à sexta página deixasse de vencer a insônia mais teimosa.

Prezando a linguagem vernácula e o estilo correto, não levo a paixão tão longe, que busque de propósito o extremoso oposto, mascavando de arcaísmos, joeirados a esmo, períodos escritos para serem entendidos por todas as classes.

Estrangeirar a dicção por moda é prova de ignorância; carregá-la de termos desenterrados dos entulhos dos bacamartões, é sinal de se dar mais apreço à forma do que ao pensamento, sacrificando à ufania de alardear riquezas, que nem sempre o são, e que mesmo sendo-o devem introduzir com escolha e discrição.

Foi o grande erro de d. Filinto Elísio, e pagou-o desviando a leitura das suas obras duas partes dos admiradores que elas teriam se alatinasse menos, e medisse com mais escassa mão os ornamentos quinhentistas com que as enfeitava.

Para mim a pureza difere tanto da impertinência dos vocábulos esmerilhados, quanto a virtude risonha e sinceramente cristã se afasta dos biocos e reverências da falsa devoção.

A língua é um instrumento para a expressão das ideias, e por isso deve acompanhar todos os progressos da sua época, e traduzi-los com clareza. Fazê-la voltar dois séculos atrás a pretexto de a purificar, forçando-a a locuções desusadas e a termos carunchosos (perdoe-se a frase) equivale a vestir um rapaz gentil com o venerando trajo de nossos bisavós. Ninguém decerto lhe invejaria a figura, nem o garbo!

Outra culpa vou confessar aqui já que nesta larga conversação estou dando conta de quanto se pode inquirir a respeito desta mui verídica narração, que um noveleiro do século 16 intitularia sem remorso Dos Claros Amores de El-rei d. Sancho e das Manhas da Rainha d. Mécia.

O meu pecado ou foi muito grande, ou é muito pequeno, segundo a severidade dos que o julgarem.

Meti em cena, embora achacado e velho, o bispo de Coimbra d. Pedro, que tinha falecido doido anos antes de 1246, data em que abro o meu romance. Roubei assim a mitra por longos meses ao reverendo mestre Tibúrcio, valido do conde de Bolonha, e, pelo que dizem as informações, homem pouco talhado para sofrer semelhantes graças.

Vale-me felizmente não poder sua reverência excomungar-me da sepultura, como excomungava os cavaleiros do bando de el-rei d. Sancho... senão era obrigado a enviar o pobre demente para a sua cova, perdendo a pintura de um dos aspectos mais curiosos deste século inquieto.

A paz seja com todos! Mas em boa-fé uma novela rigorosamente cronológica deve de ser bem insípida e emperrada coisa! Deus a arrede das nossas horas de melancolia!

Tendo falado de quase tudo, seria falta de cortesia deixar de dizer um pouco dos heróis desta veracíssima e autêntica história.

Quando ela se compôs, houve decerto a intenção de traçar mais do que cenas avulsas, ou de levantar os vultos sobre si. O pensamento que se liga, e que procura dar ao quadro alguma forria de merecimento e de unidade, talvez não perca por ser elucidado concisamente. Preso por um, preso por dez mil, reza o adágio! Já agora ainda abusarei da paciência dos leitores, pedindo vênia para lhes apresentar quase à inglesa os meus personagens mais ilustres, acompanhando-os de breves notas. Direi o que se quis tentar e ver-se-á melhor assim o que se conseguiu.

Compondo a Pena de Talião, desejei abranger em uma só ficção complemento moral de outro romance já publicado, Ódio velho não cansa, e ao mesmo tempo retocar uma novela inserida na Revista Universal Lisbonense com o título de Rausso por Homízio.

Ambas imperfeitas como saíram da rápida composição que requer uma folha semanal, tiveram a inocência (devida aos poucos anos!) de se atreverem ao estudo de épocas espinhosas de interpretar, e ainda mais difíceis de escrever; e embora sejam imensos os erros, e nenhumas as belezas, certa inclinação que não se explica, mas que todos sentem pelas primeiras tentativas, decidiu o autor a não as largar da mão, limando em uma as maiores asperezas antes de a oferecer de novo às colunas do Panorama, e desatando hoje o enredo, e alargando o acanhado círculo da outra, que neste romance aparece ainda, mas reduzida só às proporções de simules episódio.

No Ódio velho expôs-se a paixão no seu ímpeto, e a vingança inexorável, que provocou, autorizada pelos costumes e pelas leis.

O caráter indômito de d. Maria Pais Ribeiro, e o amor desgraçado de Gomes Lourenço formam o nó da ação, e encerram os elementos dramáticos, que ela envolve. As duas famílias rivais dos Viegas e dos cavaleiros de Lanhoso, separadas por um rio de sangue, agravam com o último crime as longas discórdias que as dividiam.

A morte de Martim Pais e os remorsos da orgulhosa dama sua irmã assim começam a expiação; mas dos lábios do mancebo traído saiu uma imprecação tremenda, a mesma que foi lançada sobre Caim diante de Abel assassinado. O ódio das duas raças inimigas não expira com os primeiros que arderam nele. Os filhos recebem inteira a sua herança de lágrimas, e das cinzas quase frias dos pais ainda se ateia chama igual para os queimar a eles.

A Pena de Talião representa este reverso do painel.

Na idade grave aqueles que depois de avisados desprezaram a voz do céu, sentem a espada do castigo sobre a cabeça, e nem mesmo encostando-o ao sepulcro podem descansar. De dentro dela voa o grito do remorso, e o fatal pregão de que a culpa será remida à custa da ventura de seus filhos.

D. Maria Pais na extrema velhice, e frei Soeiro em idade cansada são como dois espectros que o passado evoca. Afonso e Branca no verdor da mocidade, e na pureza do mais extremoso afeto, pisam descuidados as primeiras flores da vida, e caminham, inocentes de tudo, e sem saber, para o sacrifício que há de congraçar pelo amor das antigas rixas, apagando os vestígios do sangue.

A par destas figuras, filhas da imaginação, movem-se as que viveram e choraram sobre a terra.

Sancho II, d. Mécia de Haro, Martim Gil de Savorosa, Reimão Viegas de Porto Carrero, Mestre Vicente, e outros, pertencem à história, e foram desenhados pelos modelos que ela oferece.

Talvez pareça favorecido o retrato do infeliz monarca, e carregado o da mulher, que ajudando a precipitá-lo fingindo ternura que não sentia, cravou o derradeiro punhal naquele ulcerado coração, cujas mágoas só ela podia consolar.

O que a história aponta por conjeturas, o romance tem o direito de o figurar como realidade.

Vendido por quase todos, e atraiçoado pela esposa da sua escolha, o príncipe, na terra do desterro, alongou os olhos para a pátria; e ditando as últimas vontades não soltou uma saudade ou uma alusão que revele a maior paixão que lhe abrasou a alma.

Este silêncio do infortúnio sobre ela é a sentença de d. Mécia.

Fiel e sensível, o seu lugar era ao lado do pobre foragido, que já inclinava os passos para o sepulcro. Ausente e livre, como a vemos logo depois do rapto de Coimbra, o desprezo com que seu esposo nem lhe quer pronunciar o nome diz-nos quanto Sancho padeceu, denunciando ao mesmo tempo quanto ela ousou.

Pouco mais temos a acrescentar,

É provável que alguns austeros levantem as mãos ao céu com horror, lendo alguns episódios a que não duvidamos dar a cor do século. Saibam, se os molestam, que os monges e veneráveis prelados daquele tempo, com exceções, eram piores ainda do que os pintamos.

Quem o estranhar sem grande trabalho pode desenganar-se. Percorra a narração das proezas de d. João Peculiar em Coimbra, de Martim Rodrigues no Porto, e de Diogo Gelmires em Compostela; e se os atos de violência, os desacatos e as torpezas e cobiças destes virtuosos varões não o espantarem, concedemos-lhe que nos acuse por caluniadores, e nos condene como ímpios.

Nas cenas populares seguimos também os monumentos; colocando os cavaleiros vilãos e os peões de Coimbra defronte dos burgueses de Leiria, e em presença do cabido sublevado, não fizemos senão esboçar uma das perspectivas da grande luta civil e religiosa, que principiada nos dias de Afonso II entre o rei, o clero e a nobreza, veio a terminar-se pela queda de Sancho, e pela astuta e pérfida política de seu irmão, o conde de Bolonha. Nesses anos de inquietação e ansiedade o povo pagou o seu tributo de sangue e de discórdias, a par das poderosas classes, que enriquecia com o suor das fadigas, ajudando-as com o auxílio do seu braço.

Tudo está dito. Agora a obra que responda! Fica entregue a bons padrinhos.

O resto pertence à fortuna, embora, segundo afirmam os dramaturgos pateados e os romancistas sem leitores, ela seja a deusa mais volúvel e mais cega que se conhece. Cada qual conta da festa como lhe vai nela.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...