O modelo de Anjo
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
Estava aberta a exposição.
O bonito frontispício da Academia de Belas-Artes arregalava as janelas, como grandes olhos satisfeitos, e, com fome pantagruélica, ia devorando a multidão que se lhe enfiava pelo pórtico. A fachada despia-se de sua melancolia de pedra, e parecia abrir-se num vasto sorriso. E as flâmulas e bandeiras fincadas nas cornijas, com que atiravam das suas dobras multicores punhados de alegria sobre os que entravam.
Na área semicircular que existe diante do edifício apertava-se o povo, arquejando aos calores da mais límpida soalheira. Ali suava a impaciência, debatendo-se aos empurrões.
Acabava de ser franqueado ao público o ingresso no edifício.
O imperador, que assistira à abertura da exposição acompanhado dos visitantes de convite especial, tinha já ido embora, feita a sua visita às salas de trabalhos. Chegara a vez de todos. Todos queriam entrar.
Um homem, entretanto, se conservava à distância, e estava parado junto de uma das paredes do conservatório, olhando para o povo.
Era notável pela alvura dos cabelos e das longas barbas, que um sol das três horas varava de cintilações de cascata. Trajava de preto, calça e sobrecasaca, numa correção excepcional. Apesar de encanecido, este homem tinha a pele fresca e pouco enrugada. Não podia ser muito velho. Era simpático e de uma elegância esquisita. A cabeleira ia-lhe aos ombros em duas ondulações reluzentes; as barbas caíam-lhe abandonadas artisticamente à natureza. Tinha uma das mãos no peito, em atitude napoleônica, e a outra segurando ao longo do corpo uma bengala de junco, castoada de prata. Semeava olhares por aquela multidão sufocando-se para entrar no templo das artes. Um sorriso vago passeava-lhe nos lábios:
— Que entusiasmo! murmurou, não me é possível entrar hoje...
Estas palavras, ditas distraidamente, foram ouvidas pelas pessoas mais próximas, que viram-no depois retirar-se andando compassadamente, e desaparecer no Rocio.
O interessante personagem encaminhou-se para a rua do Ouvidor. No adro de São Francisco de Paula um moço que passava, saudou-o, tirando o chapéu:
— Senhor comendador!...
Pouco mais adiante um homem parou-lhe em frente.
Era Vítor Meireles.
O nosso comendador fez um gracioso cumprimento ao pintor, que, sem preâmbulos, perguntou-lhe:
— Então, caro mio, como vai a sua Visão?
— Apenas desenhada...
— Olhe, Giacometo, afianço-lhe que vai ficar um quadro sublime... Já se pode ver pelo croquis... Aquele pequenino túmulo coberto de rosas, meio na sombra!... O jorro de luz celeste que cai da direita, vai dar ao quadro um brilho encantador... As roupinhas transparentes da menina e a túnica abundante e leve do anjo que arrebata a criança através da luz, prestam-se para um ensamble majestoso, não falando nas lindas combinações de reflexos que virão por... Oh! eu imagino!... O seu quadro vai fazer barulho... Vamos ver aqui no Rio um painel religioso digno da Renascença...
— Ora, Vítor!...
Qual ora!... Eu não o conheço e você não me conhece?... Quer ouvir o que eu digo?... Entusiasmo e perseverança, que você terá um sucesso...
— Qual! Não espero grande coisa...
— Verá... E depois mande-o à Itália, para experimentar...
— Que homem para dizer coisas bonitas!... Verdade é que você me está animando... Eu hei de trabalhar com gosto, fique certo... Olhe... além do croquis do schizzo que você viu... já executei estudos especiais das figuras... já fiz na tela o desenho do conjunto... Encontrei, porém, uma dificuldade. Falta-me um modelo... Quero dar ao meu anjo um rosto que seja ao mesmo tempo um reflexo deste mundo e do outro; um meio termo entre o idealismo do sobrenatural e a realidade terrena, que faça sentir que o anjo é do céu, mas acha-se na terra; em suma, a fusão da beleza etérea com a beleza que se apalpa. Quero um rosto que preste para receber os toques do meu ideal, uma carinha própria...
— Uma carinha de matar a gente, observou, rindo, Vítor Meireles...
— E não encontro...
— Não é fácil... não é fácil...
— Bem o vejo... Na Itália fora menos difícil. Há muita mocinha para modelo... Aqui está-se como num deserto... muita moça bonita... modelo... nenhum! Ninguém quer ser...
— Eu tenho um... talvez...
— Bonita?
— Admirável... da cabeça aos pés...
— Que idade?
— Vinte e três anos.
— É muito velha... Em todo o caso, se ela quiser...
— Pagando-se bem, ela quer.
— Se quiser e servir... Onde mora ela?
— Rua... número...
— Hei de vê-la... Preciso ver tudo... Ando sequioso como um conquistador...
— Tem motivos.
Algumas palavras mais trocaram os pintores; depois, cada um foi para sua banda.
O comendador, ou Giacometo, como o chamara Vítor Meireles, entrou na rua do Ouvidor e desceu até à dos Ourives, examinando com interesse o semblante das jovens transeuntes.
Pela rua dos Ourives dirigiu-se à da Ajuda, e lá entrou em um corredor do lado esquerdo.
II
Entremos. Tem-se primeiro que subir uma escada. No alto da escada há uma pequena sala de recepção, forrada de azul, bem arranjada, que dá para uma outra sala muito clara, muito arejada, com janelas para a rua e fisionomia de atelier. Grande mesa ao centro, coberta de pincéis, palhetas, tintas, rolos de tela, frascos de óleo e aguarrás, em ativa confusão. Por volta, as paredes encobertas sob uma nuvem de quadros bem acabados, mas sem moldura. Nos cantos, diversos cavaletes com pinturas por concluir, dos quais destacava-se um maior sobre o qual se via uma grande tela já riscada e com algumas pinceladas a esmo... Era a casa de Carlo Giacometo, um valente pintor, educado em Roma e Milão, que vira o dia na cidade do paganismo formidável e do catolicismo dos Papas, à sombra inspiradora do zimbório de São Pedro.
Estava no Brasil, havia dois anos somente. O seu coração de artista o trouxera. Haviam-lhe falado de um grande país, onde o homem se compreende pequeno ante a grandeza esmagadora de tudo o que o cerca. Nesse país não se sonha o ideal, porque o ideal palpita no céu profundo e azul, nas matas ínvias, na rocha esfolada pelas cachoeiras e no sol que dá fulgurações a tudo. Ele quisera ver.
Sim, que Giacometo era um artista.
Tinha maneiras de olhar e movimentos que pareciam estudados à vista de um ensaiador. Estava sempre como que apertado num círculo de conveniências artísticas com que se dava perfeitamente. As próprias dobras do vestuário amarrotavam-se-lhe graciosas, tal qual se fossem corrigidas a dedo. Um artista, da periferia até o âmago.
Não admira, pois, que ele houvesse feito viagem para o Brasil por amor do belo.
Graças aos auxílios de Júlio Mill, um notável paisagista francês, que aqui viveu obscuramente e na obscuridade morreu, Giacometo estabeleceu-se. Fez relações com os artistas mais distintos da nossa roda de pintores; arranjou discípulos e encomendas, que davam-lhe bastante para levar a vida sem tocar na pequena fortuna que possuía na Itália...
Até à época da nossa narrativa, Giacometo não tinha executado senão pequenos quadros e retratos, muito apreciados pelos conhecedores, mas impróprios para fazer sensação. O seu sucesso devia ser a Visão, o belo projeto que conhecemos.
Era encomenda de um rico visconde, que queria ter no seu gabinete a lembrança viva de uma filhinha que perdera havia tempo. O visconde tomava imenso interesse pelo quadro, e não apertava os cordões da sua generosidade para recompensar o artista.
O motivo do quadro era delicadamente arrebatador, para uma alma como a de Cario Giacometo.
A recompensa era deslumbrante. Tudo convidava.
Carlo atirou-se à empresa com toda a vontade, com todo o fervor, com toda a consciência.
Não era para menos. Tratava-se da sua reputação em país estrangeiro, da sua glorificação talvez. Away!
Em pouco tempo estavam feitas as despesas urgentes: tintas, tela, pincéis novos. E Carlo preparava croquis, ensaiando-se para a grande execução. O fogo do seu entusiasmo foi vivamente atiçado pelo aplauso dos artistas de nota que examinaram os croquis. Houve até um pintor que pediu-lhe antecipadamente o pincel que rematasse o trabalho.
Giacometo começou. Traçou o desenho na tela. Apareceu-lhe então um sério embaraço. Faltava um modelo. Para a criança que ele queria pintar levada para o céu, possuía excelentes fotografias e as informações do visconde. Mas o anjo?...
Carlo daria à menina a expressão da felicidade metafísica de além-sepulcro, representada no sorriso incompreensível e doce das boas crianças, quando sonham com flores e passarinhos nos pequeninos sonos do berço...
A dificuldade era o anjo.
Para o rosto do anjo convergiam os esforços de Giacometo. Aí a sua verdadeira criação. Aí o momento estético da concepção, por assim dizer. Carecia-se de um modelo excepcional.
Giacometo saiu à caça.
Apesar dos seus cinquenta anos e das suas octogenárias cãs, o pintor desenvolveu uma atividade de fanático.
Percorria as ruas observando atentamente, varava rótulas e sacadas com uns olhares sedentos. Nem uma só moça escapava-lhe. Era como D. Juan de barbas brancas.
Uma vez, andou escandalosamente atrás de uma criadinha. Não pôde falar-l. A criadinha desconfiou e apressou o passo para casa. Cano não insistiu. A criadinha, conquanto bonita, não era exatamente o seu ideal; além disso, não pareceu-lhe de um branco muito puro... Não servia.
Em outra ocasião, parou muito à vontade diante de uma jovem senhora, que na sua janela via os bondes e abanava vagarosamente um leque. Quando a moça deu com aquele sujeito todo elegante, de barbas cor de espuma, ficou admirada, e, retirando-se vivamente atirou-lhe uma risada. Giacometo não percebeu a desfeita, mas sentiu... Aquela rapariga aproximava-se bem...
Passou-lhe pelo cérebro o pensamento de apresentar-se à moça.
Por que não? O que lhe faltava era simplesmente uma pessoa que se quisesse deixar retratar em uma grande tela. Não se tratava exatamente de um modelo vivo... Que dúvida haveria...
Refletindo mais, lembrou-se da dificuldade em que se veria, caso um exame de perto lhe mostrasse que a moça não prestava. Com que cara havia de dizer:
— Vossa excelência não serve para meu anjo...
Giacometo desistiu.
Desistir não é desanimar. E o pintor procurava... Visitou os arrabaldes, as ilhas da baía, fez mesmo algumas viagenzinhas... Entretanto, quando alguém que sabia da sua empresa perguntava-lhe:
— E o anjo?
— Não achei ainda!... respondia.
III
Por esse tempo abriu-se a exposição de Belas Artes. Giacometo mandara alguns quadros. Para ver que figura fazia o seu trabalho, no meio do dos demais expositores, Cano Giacometo foi visitá-la. No primeiro dia não pôde entrar. Três dias depois voltou à carga. Não havia a mesma afluência do primeiro dia. O pintor entrou...
Passou rapidamente os olhos pelas pinturas expostas na saleta fronteira à entrada, nessa onde se vê uma estátua de Pedro II, muito branca, de espada pendente à esquerda, fitando tranquilo um cavaleiro de bronze, que galopa nos ares ao longe e acena-lhe com um rolo de papel.
Seguiu depois pelo corredor que leva à pinacoteca, e, na porta da primeira sala à direita parou. Tinha avistado um dos seus quadros.
Giacometo foi vê-lo de perto.
Entretanto, a vista encontrou-lhe uma grande tela pendurada à esquerda.
Um assunto delicado. Representava uma bela rapariguinha de quatorze ou quinze anos, braços e ombros nus, debruçada numa janela, tentando quebrar com os dedos o pedúnculo de uma rosa. A janela ou trapeira era do tamanho da moldura, de sorte que a figura parecia inclinar-se para fora do painel. Tinha uma execução magistral esse trabalho.
Giacometo sentiu-se preso pelo quadro. Esqueceu completamente os sentidos. Era o maravilhoso semblante da rapariguinha que quebrava o pedúnculo e ria para o espectador...
O pintor consultou o catálogo que lhe haviam oferecido na porta do edifício. Rezava assim:
— Sessenta e quatro. Cópia do natural; trabalho do Sr. F.C. Rua da Ajuda n...
Que felicidade! F. C. era um pintor seu vizinho, que o tinha em muita consideração e se mostrava seu amigo...
Giacometo contemplou por mais algum tempo o belo quadro, e depois, esquecendo completamente a exposição, retirou-se apressado.
Um conhecido, que o viu andando muito precipitado, perguntou-lhe:
— Onde vai tão apressado, comendador?
— Já tenho o anjo! respondeu ele, sem saber se falava a uma pessoa que tivesse notícia de sua empresa.
Em poucos minutos chegava à rua da Ajuda e batia à porta de F.C.
Veio recebê-lo uma espécie de criada, raquítica, sem sangue e sem carne, metida em uma saia cheia de rugas verticais, que escapava-se-lhe dos ossudos quadris como de dois cabides. Parecia bem moça. Tinha, porém, o rosto escalavrado, o que duplicava-lhe a idade.
— O Sr. F. C. está em casa? perguntou Giacometo.
— Sim, senhor...
— Quero falar-lhe.
— Entre...
E a magra porteira, retirando-se pata um lado, deu caminho ao pintor.
Giacometo encaminhou-se logo para o atelier de F.C. e foi surpreendê-lo em trabalho.
— Oh! meu grande Giacometo, o que significa esta visita? Você custa tanto a aparecer...
— Sabe?... Venho aqui por causa do meu anjo...
— Ainda o teu anjo...
— É exato... Com certeza os do céu não custaram tanto trabalho a quem os fez...
— Mas em que posso eu servir-lhe...
— Vai dar-me o modelo...
— Como?!
— É muito simples... Quem é o autor do quadro nº 64 da exposição?...
— Oh!... Mas você não é homem de copiar...
— Sei... sei... O que eu quero não é o seu lindo quadro; é o precioso modelo que lhe serviu... Deve ser uma perfeição.
— É impossível achar-se coisa que mais satisfaça... É quase o meu sonho... Com algum fulgor mais na fisionomia... está feito o meu anjo... Diga-me quem foi o seu modelo... Juro-lhe que qualquer despesa que haja de fazer não me amedronta...
Um sorriso amargo, inexplicável, traçou-se no rosto de F.C.
— Ai, meu caro Giacometo, eu vou apresentar-te o meu modelo... É minha sobrinha, uma órfã que minha mulher acolheu... Está comigo há meses... Talvez você a tenha visto...
— Nunca! protestou fortemente Carlo... O meu anjo não passaria despercebido!
— Pobre anjo!...
— Não o compreendo...
— Vai compreender... Espere um pouco...
F. C. afastou-se da tela diante da qual conversava com Giacometo, e, oferecendo-lhe uma cadeira, desapareceu no interior da casa.
Instantes após, voltava, impelindo delicadamente pelos ombros a mesma pessoa que recebera o nosso comendador.
— Aqui está o modelo... disse em tom de tristeza.
— O modelo? perguntou Giacometo de um modo estranho.
F. C. afirmou com a cabeça.
A pobre mocinha curvava a cabeça com um acanhamento doloroso.
Esta cena foi de efeito fulminante para Carlo Giacometo. O desgraçado fixava na moça um olhar de louco.
— Ah! meu bom Carlo, as bexigas podem arruinar um modelo...
O artista da Visão deixou pender a cabeça e cobriu o rosto com a mão...
Parecia um condenado. As lágrimas passavam-se por entre os dedos e iam desaparecer-lhe na longa barba.
No dia seguinte, o visconde que fizera a Giacometo encomenda da Visão recebeu uma cartinha:
"Meu caro Sr. visconde. — Com profundo pesar declaro a vossa excelência que não me é possível de modo algum satisfazer a sua honrosa incumbência...
"Etc. — Cano Giacometo."
O visconde recorreu a outro.
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