A noite, esparzida de astros, silenciosa e morna, corria triste, sem os rumores dos outros anos, quando era vivo o venerando pároco centenário que fazia despertar a aldeia religiosa com a voz sonora do grande sino e com os repiques festivos das campanilhas.
Ia passar despercebida a grande hora da alva redentora em que Jesus nasceu. Campos desertos, choças apagadas, eiras emudecidas; apenas um ou outro campônio, saudoso do velho tempo, abria a porta da cabana para olhar os muros brancos do presbitério vazio, ou passava por entre as ramagens sob o esplendor infinito da noite constelada como o espectro errante da alegria extinta, tocando tristemente a viola.
O luar escorria pelas árvores alvo e diáfano, tornando de prata a água lisa de um lago, onde o gado descia a beber. A igreja fechada, branca, muito branca, era como uma miragem feita pela claridade do luar. Mas que diferença dos outros anos! Àquela hora as portas escancaram-se exalando o aroma santificante dos turíbulos, e o campo enchia-se com o clangor dos hinos do povo que saudava, no berço de palhas do presépio, o louro Jesus nascido, deitado, com simplicidade, entre a vaca e o jumento. Que diferença dos outros anos! Quem tivesse ouvido a palavra trêmula do velho pároco, narrando, ao fim da missa, diante do pequeno estábulo, o mistério de Belém: como nascera de Maria Sempre Virgem numa creche, para exemplo dos homens, Jesus, Rei dos reis, a Misericórdia Suprema, — teria saudades diante de tamanha tristeza.
Nos currais fechados, o gado, adivinhando a lúcida manhã, mugia profundamente. No céu puríssimo resplandecia radiosa a estrela-d’alva.
Um galo solitário cantou um quintalejo; logo outros responderam dos quintais vizinhos e de sítios distantes: e, súbito, o som profundo e grave do grande sino quebrou o silêncio melancólico da noite natalícia, e logo romperam, em bimbalhada estrídula, todas as campanilhas, justamente como nos outros anos quando era vivo o venerando pároco...
De repente abriram-se as portas das cabanas; os campônios atônitos apareceram nas soleiras em leves roupas, as cabeças nuas, com lanternas erguidas alumiando a noite.
As portas da igreja, abertas de par em par, deixavam ver o interior resplandecente de luzes.
O espanto foi grande entre os rústicos, e nenhum ousou aventurar um passo, posto que os sinos continuassem a soar festivamente.
Foi um boiadeiro quem primeiro falou:
— Deve ser alguém da vila que faz soar à missa para trazer-nos recordações do pároco, fazendo que não passe em silêncio a noite santa de Deus!
Os sinos repicavam a mais e mais, e já, em frente da igreja, havia uma esteira de luz dourada que os sírios alastravam.
— Se fôssemos? — propôs o boiadeiro.
Voltaram todos em busca dos gabões e dos cajados, e reunindo-se, com os olhos sempre fitos na igreja iluminada, foram seguindo em grupo cerrado, lentos, tímidos, parando de instante a instante, assustando-se ao mínimo ruído.
Ia à frente o boiadeiro, batendo fortemente com o cajado para animar a turba.
Longe, pelos quintais, ao frescor da madrugada, cantavam mais vivamente os galos.
De repente, um grito atroou no grupo: o boiadeiro, que ia à frente, caíra de bruço junto às escadas da igreja, clamando. Nem um só homem atreveu-se a avançar para acudi-lo: e só quando o viram erguer-se com os braços alçados, brandindo o cajado grosseiro, foram caminhando.
— O pároco! O pároco! — bradava o boiadeiro, subindo tremulamente os degraus. E os homens, que haviam corrido, extáticos, parados, balbuciavam, com os olhos postos no altar da igreja: — O pároco que morreu! O pároco!
Começava a missa de Natal.
Junto ao altar, revestido dos hábitos religiosos, estava um velhinho pálido, inclinado sobre o livro santo, as mãos juntas, orando. À sua esquerda, fúlgido, com um esplendor sideral, um anjo de asas cerradas, ajoelhado, agitava um turíbulo; outro, à direita, todo num grande limbo de luz, acolitava.
Nada se ouvia. De vez em vez o oficiante voltava-se para abençoar os campônios, e as suas pupilas fulguravam.
A pouco e pouco foi-se enchendo o templo; havia montes de cajados à porta.
Os anjos passavam de um para o outro lado, sem tocar o solo, aereamente, num adejo sutil.
Finda a cerimônia, a bênção do sacerdote caiu sobre toda as cabeças: e ele, lentamente, como nos outros anos, desceu para o meio da turba, e, flanqueado pelos anjos, fez a prédica consoladora, narrando o poema da simplicidade, paternalmente, com a palavra pausada e meiga. Por fim, passando pelos grupos, mais pálido que o luar que ainda alumiava, ia dando a beijar a mão gelada; e viram todos o santo e venerando padre alçar os braços em ofertório; depois voltou-se, e ficou muito tempo a olhar a vila; e uma lágrima silenciosa desceu-lhe pela face branca. Ajoelhou-se, curvando a fronte, e todos imitaram-no.
Quando os campônios levantaram os olhos, os sinos tinham emudecido no campanário, e, pelas tábuas do templo, havia estrias douradas de sol. O pároco e os anjos haviam desaparecido.
Entreolharam-se os campônios; e o boiadeiro, tomando o cajado, indagou:
— De onde terá vindo? De onde terá vindo?
— Do túmulo, decerto! — disse uma velha a tremer.
— Do céu, — disse um pastorinho — não há anjos na terra.
— Mas ele chorou, — disse o boiadeiro, — e não há lágrimas no céu.
— Saudades talvez! — falou alguém no grupo.
Então o boiadeiro, fazendo o sinal da cruz, suspirou:
— Se há saudade no céu, bem triste deve ser a vida eterna!
— Bem triste! — suspiraram todos.
E o boiadeiro ajuntou:
— Bem disse ele, antes de expirar, que havia de estar sempre conosco, acompanhando-nos em nossas dores e em nossas alegrias! Bem disse ele antes de expirar...
— Sempre estará conosco protegendo-nos à nossa mesa, à beira do nosso leito, junto ao sepulcro em que ficarmos! — disse um sertanejo.
E todos, movidos pelo mesmo sentimento, levantaram para o céu os olhos agradecidos. A manhã de Jesus resplandecia.
***
E eis porque não tem pároco a igreja de São José do Monte: os presbitérios é o céu, e o pároco é sempre o mesmo, que desce, em espírito, para abençoar as almas e as campinas.
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