9/29/2017

Os três cabelos de ouro do Diabo (Conto), dos Irmãos Grimm


Os três cabelos de ouro do Diabo

Coligidos por: Henrique Marques Júnior. Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Era uma vez uma pobre mulherzinha que deu à luz um filho, e como ele tivesse nascido num fole, não tinha ainda visto a luz do dia, e já prediziam que aos quatorze anos casaria com a princesa. Pouco tempo depois apareceu na aldeia, vindo incógnito, o rei, que, perguntando que novas havia, ouvira dizer:

— Não há muitos dias nasceu um rapazinho num fole, o que indica vir a ser muito feliz, demais que já lhe auguraram casamento com a princesa, quando chegasse aos quatorze anos.

O rei— que não tinha bom fundo — ficara agastado com a previdência; pediu para lhe indicarem a morada dos pais do rapaz, para onde se dirigiu com sorrisos. Em seguida falou assim:

— Sois pobres, por isso peço que me confieis o rapaz, a quem arranjarei um bom futuro.

Os pais, a princípio, recusaram semelhante proposta; mas o desconhecido ofereceu-lhes uma grossa maquia em ouro; lembrando-se eles da predição de que, tendo nascido num fole, nada de mau lhe podia acontecer, resolveram aceitar, separando-se do filho.

Assim que dali saiu, o monarca meteu o rapazinho numa caixa, que amarrou à sela do cavalo e continuou sua derrota. Não tardou a encontrar um ribeiro, com certa fundura, para onde atirou a caixa, exclamando:

— E assim livro minha filha de casar com tão desgraçado pretendente!

Mas o mais curioso é que a caixa não naufragou, bem pelo contrário singrou o rio ao sabor da corrente como se fora um barquinho, sem que uma só gota d'água lhe entrasse dentro. A caixa correu à tona d'água a uma distância de duas milhas da cidade; aí encontrou um obstáculo: as rodas de um moinho, onde encalhou. Um moço de moleiro, que por casualidade se encontrava a curtos passos dali, viu-a e rebocou-a com uma fateixa, crente de que encontraria uma riqueza. Abriu-a, pressuroso, mas a riqueza apareceu-lhe na figura de um menino esperto e risonho. Levou-o aos amos que, como não tinham filhos, bem contentes ficaram com o achado, e disseram em coro:

— É Deus que no-lo envia!

Por conseguinte, tomaram-no à sua conta e educaram na prática das boas ações o orfãozinho. Passados anos, o soberano, fugindo a um temporal, refugiou-se certa tarde em casa do moleiro, a quem perguntou se o rapaz que tinha ali era seu filho.

— Não — responderam o moleiro e a mulher. — É um menino abandonado, que há quatorze anos veio trazido pela corrente dentro de uma caixa até à calha do moinho; o moço, que estava perto, puxou-a e trouxe-a para terra.

A estas declarações, o rei percebeu logo que o rapaz não podia ser outro senão o menino que nascera num fole, e tanto que perguntou:

— Digam-me: este rapaz não podia ir fazer-me um recado, levar uma carta à rainha minha mulher? Dou-lhe duas moedas de ouro por este pequeno trabalho.

— Quando vossa majestade quiser! — redarguiram de pronto moleiro e moleira.

Em seguida mandaram pôr a postos o rapaz.

O rei, entretanto, dirigia esta carta à rainha:

“Apenas o rapaz, portador desta, aí chegue, dá-te pressa em mandá-lo matar e enterrá-lo em seguida; o resto será resolvido no meu regresso.”

O mocinho partiu com a carta e chegou pela noite a uma grande mata; por entre a escuridão avistou uma luzinha. Seguiu nessa direção e depressa parou perto de uma cabana. Entrou e viu sentada uma velha, sozinha, ao pé de uma lareira. Ao ver o rapaz ficou tranzida de medo, e gritou:

— De onde vens e para onde vais?

— Venho do moinho — respondeu — e vou ao palácio levar uma carta à rainha; como, porém, me perdi na mata, muito grato me seria passar aqui a noite.

— Infeliz criatura! — redarguiu a velha. — Vieste ter a uma caverna de salteadores, que, se aqui te encontram, são muito capazes de te darem cabo da pele!

— Venha quem vier, de nada me arreceio; estou bastante fatigado para que possa continuar a jornada.

Ditas estas palavras, sentou-se num banco e adormeceu.

Daí a pouco apareceram os salteadores que perguntaram irritados quem era aquele intruso.

— Ora — retorquiu a velha — é um pobre moço que se perdeu na mata e a quem recolhi por dó; foi encarregado de levar uma carta à rainha.

Os salteadores apoderaram-se da carta, partiram-lhe o sinete e leram, vendo pelo conteúdo que, apenas chegasse, o portador seria executado. Esta circunstância tão mal os impressionou que o capitão da quadrilha rasgou-a e escreveu outra em que dizia que apenas o portador chegasse lhe fizessem o casamento com a princesa.

Feito isto, deixaram-no dormir sossegadamente no banco até o dia seguinte; quando acordou, restituíram-lhe a carta e indicaram-lhe a estrada real.

Entretanto, a rainha apenas leu a carta, que passara como escrita pelo rei, ordenou grandes festas para o casamento da filha com o rapaz nascido num fole. Como este era perfeito, amorável e dotado de bom coração, a princesa vivia feliz e satisfeita.

Passado tempo, o soberano regressou ao palácio, e, com grande espanto seu, viu que a predição se realizara do rapaz nascido num fole, casar com a princesa.

— Como foi isto arranjado? — perguntou à rainha. — Havia dado outra ordem na minha carta!

A rainha apressou-se a mostrar-lhe a carta a fim de se certificar do que havia escrito. O rei leu-a, e viu que fora trocada. Perguntou ao rapaz o que havia feito da carta que lhe confiara, e como é que havia trazido outra.

— Não sei! — respondeu o rapaz. Só se me foi roubada na noite que passei na mata; aproveitando-se do meu sono.

O rei tornou irritado:

— Não me serve essa desculpa, e tanto que minha filha não te pertence, enquanto me não trouxeres do inferno três cabelos de ouro da cabeça do diabo; satisfeita esta condição, restituo-te a princesa.

O soberano, falando assim, cuidava que ficaria livre dele de uma vez para sempre. Como resposta, o rapaz nascido num fole disse ao rei:

— De boa vontade aceito a sua proposta de trazer os três cabelos de ouro, tanto mais que não me arreceio do diabo!

Ditas que foram estas palavras, despediu-se e pôs-se a caminho.

Esta estrada ia ter a uma cidade, às portas da qual estava uma sentinela que lhe perguntou em que ele poderia ser-lhe útil e o que é que sabia.

— Sei tudo — respondeu o rapaz nascido num fole.

— Nesse caso, podes-nos indicar com facilidade a razão porque a fonte do mercado de onde corria vinho, hoje não deita nem uma gota d'água?

— Depois o direi— respondeu o nosso viandante. — Espere que eu volte.

Em seguida, continuou o seu caminho até chegar às portas de outra cidade. A sentinela, que estava no seu posto, perguntou-lhe igualmente em que é que ele podia tornar-se útil e o que é que sabia.

— Sei tudo...

— Por conseguinte, só tu nos podes prestar um grande serviço em nos dizer qual o motivo porque a árvore da praça, que antigamente nos dava maçãs de ouro, hoje nem sequer folhas apresenta.

— Quando voltar darei explicação — respondeu.

E lá foi andando, andando até que chegou a um largo rio que precisava atravessar. O barqueiro, que estava próximo, perguntou-lhe também em que é que ele lhe poderia ser prestável e o que é que sabia.

— Sei tudo! — retorquiu o viageiro nosso conhecido.

— Pois tu é que estás nas melhores condições para me dizer qual a causa porque é que ando a remar neste barquinho de um lado para o outro sem que possa livrar-me deste encargo.               

— Dir-to-ei à volta — respondeu.

Assim que se viu na margem oposta, reparou logo na boca do inferno. Estava escuro, e chegava-lhe ao nariz o cheiro da fuligem. O diabo não estava em casa. Só lá estava a mãe, sentada numa larga poltrona que perguntou ao arrojado mocinho:

— Que queres tu daqui? — e olhava-o com certo ar de simpatia.

— Queria possuir três cabelos de ouro da cabeça do diabo, pois que se não os consigo, fico sem a minha noiva.

— É querer muito — retorquiu a velha — porque se o diabo entra e te vê aqui, não ganhas para o susto; mas tenho pena de ti e por isso te auxilio.

Quando acabou de falar, transformou-o numa formiga e aconselhou-o:

— Mete-te numa das pregas da saia, pois estás seguro do perigo.

— Está bem, mas eu desejava três respostas a três perguntas: qual a razão porque uma fonte que antigamente deitava vinho, agora nem uma gota d'água deita; porque é que uma árvore que dantes dava maçãs de ouro, agora nem folhas tem; e, finalmente, qual o motivo porque um pobre barqueiro tem de remar de uma banda para a outra, sem que se substitua.

— São problemas com certa dificuldade de solução, mas ouve com atenção e não dês palavra; escuta com cuidado as respostas que hão de coincidir com o arranque dos três cabelos de ouro.

Ao anoitecer, voltou o diabo. Ainda bem não tinha posto o seu pé-de-cabra dentro do inferno, e já notava um certo cheiro que lhe era estranho.

— Cheira-me a carne humana — dizia ele fungando. — Alguma coisa há aqui que não é costume!

E pôs-se a esquadrinhar por todos os cantos, mas nada encontrou. A mãe, então, ralhando-lhe, disse:

— Ainda agora arrumei a casa e andas tu a pôr tudo em polvorosa; não tens outro cheiro que não seja o de carne humana! Anda daí, senta-te e come, que o teu mal é fome!

Depois de ter comido e bebido bem, sentiu-se cansado, colocou a cabeça no regaço da mãe, a quem pediu para o embalar. Não tardou a adormecer, roncando que nem um porco e assobiando como uma locomotiva. A velha aproveitou esse ensejo para lhe arrancar um cabelo de ouro.

— Ai! — fez o diabo — que faz mãe?

— Ora, deixa-me cá: tive um sonho terrível, e por isso é que te arrepelei.

— Com que sonhou então?

— Sonhei que uma fonte que antigamente dava vinho, agora nem água deita. Por que será?

— Se soubesse! — respondeu o demo. — Debaixo de uma pedra vive um sapo; assim que o matem, a fonte continuará a deitar vinho.

A velha tornou a embalá-lo e daí a pouco Satã ressonava e assobiava em alto ruído, e com tal força que até as vidraças estremeciam. A velha, vendo-o assim, arrancou-lhe o segundo cabelo.

— Ui! — gritou sobressaltado o rei dos infernos — que pesadelo foi esse mãe?

— Não te apoquentes, filho, foi um outro sonho que tive.

— E de que constava ele? — interrogou Belzebu.

— De uma árvore que antes produzia maçãs de ouro e que atualmente está despida de folhas. Qual a razão do caso?

— Ora, é bem simples! tornou o demônio. É um rato que rói a raiz.

Matem-no que a árvore continuará a dar maçãs de ouro; do contrário, o rato continuará na sua obra de destruição e a árvore definhará. Mas deixe-me sossegado com sonhos; se me torna a acordar, não tenho outro remédio senão faltar-lhe ao respeito.

A velhota ameigou-o com boas palavras, e continuou acalentando-o, até que o viu de novo ferrado no sono; então, arrancou-lhe o terceiro cabelo. O diabo deu um pulo, soltou um grito e ia-se zangando deveras com a mãe, mas esta cortou-lhe os ímpetos, dizendo:

— Oh, filho, quem é que é superior aos sonhos!

— Que sonho foi esse para assim me despertar! Decerto é muito curioso!

— Sonhei que um barqueiro se lastima bastante em andar de uma banda para outra sem que seja substituído.

— Porque é um asno chapado! — exclamou Satanás — Ao primeiro passageiro que lhe peça para atravessar a margem, não tem mais do que entregar-lhe os remos e pirar-se!...

Agora a velha, que já tinha arrancado os três cabelos de ouro e que tinha na mão a chave dos três enigmas propostos, deixou em paz o diabo, que dormiu a sono solto até madrugada.

Logo que o demônio saiu dos lares, a velha pegou na formiga, deu de novo figura de gente ao rapaz nascido num fole, e disse-lhe:

— Aqui tens os três cabelos de ouro; quanto às respostas dadas pelo diabo às perguntas que formulaste, creio que as ouviste.

— Certamente que as ouvi e não me esquecem.

— E assim alcançaste o que querias — continuou a boa velha. — Agora podes tornar para de onde vieste.

O mocinho agradeceu muito o auxílio que a velha lhe havia prestado e saiu do inferno bem contente por haver conseguido os seus fins. Assim que chegou perto do barqueiro, este lembrou-lhe logo o cumprimento da promessa que lhe fizera.

Mas o rapazito, que era bastante sagaz, respondeu:

— Conduze-me à outra margem, que então te direi o que hás de fazer para te veres livre daqui.

Logo que pôs o pé na outra margem, o rapaz cumpriu a palavra:

— Apenas se apresente um novo passageiro para que o ponhas na outra margem, entrega-lhe os remos e safa-te.

Seguiu a sua rota, e depressa chegou às portas da cidade, onde existia a árvore estéril; a sentinela aguardava o rapaz para que não se esquecesse do prometimento.

— Matem o rato que rói a raiz da árvore, se querem ver a árvore carregadinha de maçãs de ouro — aconselhou o moço.

A sentinela, grata com a resposta, compensou-o com dois burros carregados de ouro. Para encurtarmos razões, o rapaz nascido num fole depressa alcançou as portas da cidade, onde havia a fonte que estava sequinha. Aqui, repetiu também à sentinela as palavras do diabo:

— Debaixo de uma pedra está um sapo; assim que o matarem, continuará a fonte a dar vinho abundantemente.

A sentinela agradeceu muito e, em paga, deu-lhe também dois burros carregados de ouro.

O rapaz nascido num fole estava, dali a pouco, em presença da noiva, a quem abraçou, e que ficou contente em tornar a vê-lo. Foi levar ao rei os três cabelos de ouro do diabo; e o soberano, ao ver os quatro burros carregados de ouro, demonstrou claramente a sua alegria, dizendo:

— Agora que satisfizeste todas as condições, tens minha filha por tua mulher. Mas dize-me, meu caro genro, como é que arranjaste todo esse ouro?

— Atravessei um rio, cuja margem é de ouro, em vez de areia. Foi aí que o apanhei.

— É muito difícil fazer igual colheita? — perguntou o monarca, cujos olhos cintilavam de cobiça.

— É facílimo tomar tanto quanto se deseje — continuou o rapaz nascido num fole. — Há um barqueiro próximo; peça-lhe que o conduza à outra margem, e desta maneira pode trazer os sacos que quiser cheios de ouro.

O monarca, mordido pela ambição, depressa se pôs em marcha. Chegado à margem do rio pediu ao barqueiro para o levar à outra margem. O barqueiro apressadamente disse ao rei para entrar no barco, e assim que chegaram ao outro lado do rio, o barqueiro entregou-lhe os remos e saltou lesto para terra.

— E ainda lá está o rei feito barqueiro? — perguntarão os meus amáveis e gentis leitorzinhos.

— Está e estará até que expie, por completo todas as suas culpas.

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