10/07/2017

A Húngara (Conto), de Júlio Diniz


A Húngara

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Cômodo de hotel. Um foco elétrico esverdinhava o azul papel das paredes.

Revolvido, o leito denunciava em duas covas a pressão de dois corpos que nele se afundaram.

Sarah, a húngara, recebia Guanabarino, o cronista teatral, com um estridente sinal de contentamento...

— Aqui estou. Nem sei como acertei.

— Estás apaixonado?

— Crês, Sara, que paixão desponte como um sorriso?

— Quem te disse o meu nome?

— Li-o nos programas.

— Ah! sim. Gostaste do meu canto?

— Não te ouvi.

— Como te agradei?

— Pertencendo a outro. A mulher sem dono custará a topar com um amante. Rolará uma eternidade como a pedra que não cria limo... Tenha um amante e dezenas surgirão...

— Como ele é experiente!

— Vejo todos os dias. Se quiseres arrebatar, deixa-te monopolizar por Gustavo. Ouve: agradei-me de ti porque, pelo braço dele, no teu longo manteau de sedas e rendas, pareceste-me uma conquista difícil. Vejo dezenas de mulheres no Café-Concerto. Tyroleanas, que encantam com o canariar de suas vozes; francesas, que arrebatam com o savoir-dire as malícias mais leves; espanholas, que excitam com o sensualismo de seus sapateados; americanas, que lembram bugios nos saltos do cake-walk... Todas são-me indiferentes, por todas passo na certeza de cruzar com cocottes para todo o mundo... De começo estive tentado a empreender uma ménage-à-trois com uma acrobata. Por que assim? A ginasta era um corpo proibido e vivia aferrolhado à concupiscência de seu próprio pai. Tive horror a essa monstruosidade e o desejo passou. Finalmente encontrei-me contigo...

— Ladrãozinho! Como ele sabe contar!

— Junto de Gustavo acendeste-me a centelha de um capricho: trair o teu amante. Tinha eu entrado no Teatro naquela hora mesmo. O grupo de amigos atraiu-me e a atração de todos eras tu. Olhei-te e fiz-te um cumprimento com a cabeça. Não me teres sido apresentada, significou que o teu galã zelava demais. Ah! A cultura humana tem o maior testemunho de seu progresso na sabedoria dos olhares que as pessoas cultas podem trocar. Viste como te compreendi e logo te apertei os dedos, no caminho para o buffet? Atinaste como consegui retirar, por um momento, Gustavo de junto de ti e como tratamos, quais velhos conhecidos este encontro? Na sombra dos pés da mesa, os nossos corpos se trocavam desejos nos encontros, animavam-se também com os prometimentos mais claros, e as nossas carnes se queimavam por detrás dos tecidos de nossas vestias. Tudo isto, porém, ainda não é paixão. É um grito do instinto animal. Só nos não apaixonaremos se não quisermos...

— Como sabes a vida!

— Precisas prender Gustavo. A época é das melhores. O dinheiro passa-lhe pelas mãos como as águas pelos rios para o mar. Segura-o bem, porque, além do mais, é um amante que, por força de ter mulher e filhos e morar longe, te dará muito tempo aos amores furtados.

— Não os quererei. Sempre fui parcimoniosa. Juro-te como o meu corpo não se tem dado a muitos. Fui concubina de um general, durante anos, e só o traí uma só vez: com o pai de meu filho. Gosto de um amor só, de ter um dono e de ser cobiçada. Nem sei como te recebi agora... Em todo o caso, o Gustavo não me agrada... Prefiro-te a ele, serás o meu amante...

— Errarás se assim preferires, Sara. Não tenho posses para te manter, ao passo que o Gustavo...

— Que tem isso? Tenho eu o meu ofício. O empresário paga-me bem, ganho para o luxo e para a mesa. Dou-me a quem eu quero...

— Neste caso ficarás com ele...

— Por que então?

— Conheceste-o primeiro.

— Não importa isso. A ele conheci na manhã, a ti à noite, ambos no mesmo dia. Vi-o a bordo. Trouxe-me ele para a terra. Encaminhou-me do hotel, e... má recomendação tem dado com os multifários obséquios, com os gastos e as gentilezas, somente com essas coisas... Ora, uma mulher como eu, ou quer o homem, ou não o quer... De minha parte dispenso as galanterias...

— Tudo isto concorre para lhe fazeres teu amante, para dispores de sua bolsa...

— E fico contigo para o meu verdadeiro amante, para o meu especial amor...

— Lá com isto combino eu.

— Assim, vá que seja e comecemos...

— Que tenho eu para tanto me olhares?...

— Fixo a tua imagem. Tens um olhar de fogo. Os teus olhos incandescentes são dois vulcões. Como te chamas?

— Guanabarino, um nome difícil.

— Como?

— Gua-na-ba-ri-no!

— Gua-na...

—... barino.

— Ah! sei. Guanabarino. É a primeira vez que ouço esse nome. És brasileiro?

— De corpo e alma. E tu?

— Filha do sul da Hungria. Vim criança para a tua terra. Fui noiva, aprendi a cantar com um meu amante e vivo disto...

— Tens percorrido meio-mundo, hein?

— Não: conheço a tua pátria e a minha, em pálida reminiscência...

— Dize outra vez esse termo...

— Reminiscência.

— Que lindo! Parece-me, Sara, que estás a dar uma serie de beijos...

— Como ele é ardente!

— De verdade?

— A tua alma está fugindo-te pelos olhos...

— Junto de um espírito como o teu, como ela não querer a transfusão carnal? Já notaste o frio que regela as mãos do homem emocionado junto da mulher que o escalda?...

— Ih!... Que gelo!

— Sabes explicar?

— Não. É difícil?

— Ao contrário. Bem fácil. O sangue todo afluiu-me ao coração. As extremidades resfriaram-se. Tudo isto já é começo de paixão... Falaste nos meus olhos! E os teus? São capazes de comprar o mundo com um só relance.

— Costumas ser gentil com todas as mulheres de teu conhecimento?

— Que graça! Se costumasse, haviam de estar bem gastas as minhas gentilezas.

— Tens gozado tanto?

— Inda perguntas?! Não sabes que o amor se fez para os temperamentos tropicais, para os homens das terras do Sol, como eu o sou? Tenho um desejo para cada mulher e, posso parodiar um dito desrespeitado a toda hora: sinto que todo o teu sexo não seja uma só mulher para esta ser a minha amante...

— Caloroso! Deita-te aqui, Guanabarino!

— Não.

— Desmentes o que asseguras.

— Já tiveste o teu quinhão.

— Como assim?

— Já te possuiu o Gustavo...

— Juro-te que não. Tem sido o meu apresentante, e, a verdade seja revelada, ainda não desejou...

— De fato?

— Juro-te eu.

— Ao depois dele... nunca!

— Mas, por quê? Metes-me medo...

— Por nada! O Gustavo é um homem para se temer...

— E por que me influis para ser a sua amante?

— Porque o encontrei no fastígio da tua posse, porque vejo que do seu concubinato bem podes usufruir grandes proventos. E, já agora te direi: pouco mais fará ele do que hoje... Entretanto, como homem de recursos, talvez ainda não te desse a menor prova do que seja...

— Fez-me hoje a oblata de um colar de libras...

— Um colar?

— Sim.

— De libras esterlinas?

— Conheces?

— Acho que não. Agora reparo que tens dois fachos lindíssimos...

— Foram presente.

— Fico esmorecido. Nem sei como hei de portar-me para contigo sem outros meios que não esta aparência palavrosa e este atrevimento que me trouxe aqui...

— Não amo os homens pelas riquezas. Tenho os meus rendimentos de chanteuse. Às vezes sucede amar os que podem. Neste caso, sou a primeira a não rejeitar o que me dão. Um deputado deu-me este anel...

— Adorável!

— Um advogado, ao depois de uma perseguição de meses, para eu o receber, ofertou-me estas pulseiras... No entanto, o pai de meu filho aquinhoou-me apenas com o seu amor... Assim vou passando, umas em cheio, outras...

— Muito em cheio, Sara!

— Tu falas? Um mineiro, hoje desesperançado de conseguir a minha retribuição, deu-me estes correntões para atilhos...

— Que lindas formas!

— Mostro-te apenas os atilhos e não as pernas...

— E eu vejo tudo! É admirável como o fraise das meias se destaca no gesso das tuas peles...

— Pois bem, Guanabarino! Permite que eu te diga; amantes que me cobrissem de ouro tenho tido às carradas... mas, um só que me dissesse coisas tão lindas, nunca tive... A palavra inescutada é também uma joia preciosa. E para retribuir tantas distinções inéditas só um beijo de muita paixão, só um beijo...

— Basta, Sara! Basta! Prometeste um e deste mais de mil...

— Longe disto, tu não me recompensaste com um só... Reparei bem...

— Desculpa. Mas, quando sou beijado, não beijo. Esta carícia deve ser sempre espontânea e impagável. E eu não cometo a grosseira sensualidade de pagar uma carícia...

— Ao depois de ti, nem mais sei como receba Gustavo, amanhã...

— Com todo o fervor...

— Não te enciúmas?

— Não. Estimarei que possas flutuar aos olhos do mundo na aeronave de ouro que ele te der.

— Queres ver o colar de hoje?

— Verei.

— Ele me prometeu para amanhã um relógio e um correntão.

— Aproveita, Sara! Gustavo desperdiça dinheiros de herança...

— Vês tu o belo colar?

— É lindo!... Ele to deu?

— Sim.

— Esta joia?

— Que significa o teu espanto?

— É que este colar é...

— Falso?

— Não! Uma joia de família, uma joia da mulher de Gustavo...

— Agora é minha!

— Estás no teu direito. Deixa-o amar-te e colhe os seus esbanjamentos...

— E só a ti amarei, Guanabarino!...

Pela madrugada, a libertina abria a porta para o sucessor de Gustavo evadir-se, e recebia, instantes depois, reticenciando o silêncio sonolento do casarão do hotel, a figura caprina de um mal conhecido vizinho de quarto...

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